segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Já ninguém quer ser professor: mal visto, mal pago, maltratado


A 28 de outubro passado, o Público online dava à luz um texto de João André Costa, professor que vive, há 11 anos, em Inglaterra e criou o blogue “Dar aulas em Inglaterra”, em que é referido que, em Portugal, 48% dos professores têm 50 ou mais anos e ensinam por paixão e devoção numa profissão em que “o melhor do mundo são mesmo as crianças”. Todavia, a pari, assegura que também ensinam por falta de alternativa viável num país onde o professor é visto como apenas capaz de ensinar e pouco mais, sendo o desemprego a única saída. E acrescenta: o desemprego ou a emigração. Emigrar foi o que este cidadão fez!
Ora, como ninguém quer ficar desempregado ou ver-se forçado a deixar tudo para trás, muitos dos professores sujeitam-se a contratos temporários, viajam por todo o país todos os anos, ensinando em duas ou três escolas ao mesmo tempo, substituindo um colega de baixa num extremo do país e, no mês a seguir, noutro extremo, prescindindo de casa, família e filhos em prol de casas, famílias e filhos dos outros, na luta diária da preparação de crianças, adolescentes e adultos para os desafios de um mundo em tudo distante da ilusão das redes sociais.
A tudo isto acresce a constante ameaça física e psicológica de alunos e pais aos professores – muitos deles nos quadros e com muitos anos de serviço dado à educação e ensino – em escolas “onde as direções se trancam a sete chaves, longe dos professores, dos alunos e respetivos pais”, cabendo aos auxiliares de ação educativa (hoje rotulados de assistentes operacionais) a tarefa de arriscar a integridade física em casos de polícia, de modo a salvar professores em apuros (as agressões e as acusações difamatórias a professores multiplicam-se) e chamar alunos à razão. São casos em que o aluno é sempre a vítima e o professor o algoz, responsabilizado pela incapacidade de, por si, resolver os dramas sociais de turmas inteiras onde grassam a violência doméstica, a toxicodependência, o desemprego, divórcios, a perda de familiares e de amigos diretos, responsabilizado por não ser pai e mãe, irmão e irmã, psicólogo e assistente social, o super-herói de todos os alunos das escolas de todo o país (condições e misteres que o professor não pode assumir). 
Como é do conhecimento público um juiz estagiário recebe no fim do mês em remuneração mais do que um professor no topo da carreira. E, na pré-carreira e no início de carreira, o professor, se tiver horário completo percebe um vencimento bruto mensal de 1200 euros. No entanto, multiplicam-se os casos de horários reduzidos a ocupar por docentes contratados (não ganham para alojamento ou deslocação), alguns a lecionar há mais de 20 anos, ainda no início da carreira, mercê da não vinculação e alongada precariedade sem esquecer o congelamento das carreiras para quem, ao fim de 30 anos, teve a sorte de vincular em QZP (Quadro de Zona Pedagógica) já com a aposentação no horizonte, embora longínquo. E diz o articulista:
Quando, há 20 anos e a meio do curso universitário, decidimos, erradamente, enveredar pelo ramo de ensino, os nossos professores juraram a pés juntos haver emprego à espera. Não demorou um ano após o fim do curso para nos vermos na condição de desempregados. Vergados, humilhados, preocupados para não dizer desesperados, sujeitámo-nos a tudo. Sujeitámo-nos à degradação do ensino em Portugal. As nossas agruras fizeram manchete nos jornais, ano após ano, entre agressões, internamentos hospitalares, perseguições da parte de alunos e encarregados de educação, instabilidade, falta de meios de subsistência onde as nossas famílias, perdão, os nossos pais, foram, e ainda são, a tábua de salvação porque o dinheiro não chega, nunca chegou, não vai chegar.”.
Assim, o país é confrontado diariamente com a imagem duma carreira cada vez menos apetecida: os mais velhos estão cansados, os mais novos sentem-se inseguros e desapoiados. O Estado paga mal, sobrecarrega (se não é com aulas, é com papeladas, bibliotecas, salas de estudo, ludotecas, fichas, relatórios, etc.), não dá autoridade e até desautoriza o professor. O professor é o único responsável pelo insucesso escolar, pela indisciplina (que aumenta a olhos vistos), pelo mau estar do aluno, pelas faltas (que praticamente não têm consequências, a não ser dar mais trabalho ao professor e ao diretor de turma). Enfim, a receita para os professores é a sobrevivência!
Contam-se pelos dedos os professores com menos de 30 anos. Mil num universo de mais de 126.000 professores (menos de 1%). E daqui a 10 anos, 48% destes 126.000, cerca de 60.000 professores, estarão na aposentação ou a caminho dela. 
Daqui por 10 anos, precisaremos de pelo menos 60.000 professores, a não ser que aumente o número de alunos por turma (para burocratas, quem ensina 30 alunos também ensina 40: tudo ao molho e fé em Deus). Professores a menos (na que é a maior classe profissional do Estado) será visto como ensejo para melhorar a racionalização de meios e restabelecer e reforçar os contratos de associação com estabelecimentos de ensino privado, daqui a 10 anos, dados como a única “alternativa viável”.
Com efeito, num país onde a formação é vista não como investimento, mas antes ameaça a quem está acima, não haverá mestrados nas áreas de educação e ensino. E, como diz André Costa, “rapidamente voltaríamos todos a assinar de cruz”.
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Em setembro do ano passado, o relatório “Education at a Glance 2018”, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), concluía que, ao invés da maioria dos países da OCDE, os nossos professores ganham mais que os restantes trabalhadores com formação superior e que “também os diretores das escolas estão entre os que ganham mais”.
Os dados revelados então mostravam que só os professores do Luxemburgo recebiam mais do que os portugueses quando se compara o seu rendimento médio com o de trabalhadores com formação superior semelhante. Assim, Luxemburgo, Portugal e Grécia eram os três países do topo da lista comparativa da OCDE, que põe os alemães e os finlandeses em 4.º e 5.º lugares. E referiam que, por cá, os professores ganhavam, desde a educação pré-escolar até ao ensino secundário, mais que os outros trabalhadores com formação superior, variando entre 35% mais no ensino básico e secundário até 50% mais na educação pré-escolar.
Ora, sendo a carreira igual nos diversos níveis de educação e ensino não superior, essas diferenças apenas se justificam pela idade e antiguidade na carreira docente, diferentes nos diversos níveis de educação e ensino. E, nesse campo, Portugal tem a classe docente mais envelhecida da OCDE: Entre 2005 e 2016, as nossas escolas viram aumentar em 16% os docentes com mais de 50 anos, ao passo que nos restantes países, o envelhecimento foi, em média, de apenas 3%. Em 2016, apenas 1% dos professores das nossas escolas do ensino básico e secundário tinha menos de 30 anos, enquanto na OCDE representavam 11%. Já os docentes com pelo menos 50 anos eram 38% do total dos professores portugueses.
Mais: em Portugal, segundo contas feitas da OCDE, o salário dum professor no topo da carreira é duas vezes superior ao de um professor em início de carreira. Quando começam a trabalhar, os docentes portugueses recebem cerca de 28.500 euros anuais. Uma realidade diferente da de muitos países da OCDE, onde a média dos vencimentos vai aumentando consoante se vai estando responsável por ensinar uma turma de alunos mais velhos. Aqui isso acontecia há muitos anos em que o professor que lecionasse apenas turmas do ensino secundário tinha a redução do seu horário semanal em dois tempos letivos. Assim, os números do relatório mostram que na educação pré-escolar os professores da OCDE ganham, em média, menos do que os portugueses, mas no ensino secundário já têm um ordenado superior. No caso dos diretores, segundo as contas do relatório, o vencimento em Portugal chega a ser o dobro quando comparado com outros trabalhadores com a mesma formação académica, independentemente de estarem à frente de escola de ensino pré-primário ou de secundária. “Este rácio é um dos mais elevados da OCDE e muito acima da média da OCDE”, lê-se no texto, que sublinha que um salário atrativo é um “passo importante para recrutar, desenvolver e manter professores altamente qualificados e capazes”. É de perguntar onde estão as escolas pré-primárias e seu diretor, quando todos os jardins de infância e escolas básicas estão sob a égide dum agrupamento de escolas.
Os docentes portugueses aparecem no relatório como um grupo privilegiado em relação aos colegas estrangeiros no que toca ao horário:
Em Portugal, os professores desfrutam de um horário mais leve do que a média da OCDE e têm, comparativamente, mais tempo para atividades não docentes, como preparar aulas e corrigir trabalhos de casa”.
Chamará a OCDE preparação de aulas aos tempos passados nas reuniões de grupo e dos conselhos de turma, na biblioteca, na ludoteca, na sala de estudo e quejandos? Ou a componente não letiva onde cabe tudo (desde apoios educativos, substituições de professores, codocências, etc.)?
E o relatório refere que os nossos professores do ensino secundário dão 616 horas de aulas por ano, enquanto a média na OCDE é de 701 horas. Cá, os docentes estão 920 horas na escola, enquanto a média nos países analisados é de 1.178 horas anuais. Esquece a OCDE o tempo que se passa em provas de aferição, provas finais, exames nacionais e exames de equivalência à frequência? E vem ainda falar das horas de redução da componente letiva de professores com uma certa idade conjugada com um certo número de anos de serviço, quando isso implica normalmente permanecer na escola e estar ocupado com alunos, o que dantes não acontecia.
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Também no mês de setembro de 2018 e segundo o Notícias ao Minuto, o biólogo Joaquim Jorge defendia a classe docente, questionando o que sentiriam os portugueses “se perdessem mais de nove anos de serviço e que não tivesse efeitos para progredirem na sua vida profissional”.
No entendimento do fundador do Clube dos Pensadores, o predito relatório “prestou um mau serviço à educação portuguesa”. Está em causa, como alega, o facto de “os portugueses que, por sistema, são invejosos e só pensam na sua vida e no seu emprego”, terem “muita dificuldade em colocar-se no lugar dos outros” e terem um “hábito gratuito: dizer mal dos outros”.
Na sua ótica, “o Governo e os portugueses têm, de uma vez por todas, de dizer se querem uma escola pública de qualidade. Se querem, têm que ter professores bem pagos e satisfeitos com a profissão. Se não, no futuro, não teremos professores portugueses, eles virão dos países lusófonos: “No futuro ninguém quer ser professor: mal visto, mal pago, maltratado”. E frisava:
Não podemos continuar a dividir os portugueses que trabalham no privado e no público. Há muitas pessoas que trabalham no privado e que afirmam, de uma forma espúria, que são elas que pagam os salários dos professores! Pura ignorância, os professores pagam tantos ou mais impostos que um privado.”.
Dizia, com razão, que os dados da OCDE “ são erróneos”, não se entendendo aonde os foram buscar” (sabemos que os dados são fornecidos por gente de cá, a jeito do interesse do Governo). E sustentava:
Era bom um professor no topo de carreira com mais de 40 anos de serviço ganhar 56.401 euros brutos. Pelas minhas contas, aufere brutos 47.096 euros, uma diferença de quase 10.000 euros. Já um professor no início de carreira aufere 21.420 euros brutos anuais, e não, 28.349 euros.”.
E adiantava que este relatório “saiu na hora exata para, mais uma vez denegrir, e manipular a opinião pública contra os professores”, que “veio na altura certa e colocá-lo a favor do Governo, neste braço-de-ferro e que “até parece que foi encomendado pelo Governo”.
Joaquim Jorge gostava que a OCDE publicasse relatório sobre salários dos políticos portugueses e as respetivas benesses (carros, cartões de crédito, viagens, etc.), em comparação com os políticos de outros países, bem como relatório sobre os salários dos bancários e suas benesses, comparando com os bancários de outros países.” E ainda “dos médicos”. E justificava:
O que explica em grande medida, enquanto atitude mental, o nosso atraso secular é a inveja, o ressentimento e o queixume como fatores que obstruem o progresso. Eu acrescento outro: comparar o incomparável.”.
E Joaquim Jorge concluía:
A idiossincrasia da profissão docente não se compagina em comparações, lida com seres humanos diversos, é peculiar; e não é algo que tenha que dar lucro e se resuma a despesa. Uma sociedade que não investe na educação dos seus filhos não tem futuro.”.
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O XXI Governo Constitucional reduziu as retenções e abandono escolar no ensino básico de 7,9% (em 1015) para 5,1% (em 2018), alegadamente sem reduzir o padrão de exigências na avaliação. E o Programa do XXII Governo vai “criar um plano de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelam mais dificuldades”. Intenção ambígua, pois não garante a abolição dos chumbos.
Apesar do PNPSE (Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar), com os PAE (Planos de Ação Estratégica) e da flexibilização curricular (com alguma gestão local do currículo), dos Apoios Tutoriais e das candidaturas aos PPIP (Projetos-Piloto de Inovação Pedagógica, que visam “promover o sucesso e a qualidade das aprendizagens de todos os alunos, através do reforço da autonomia das escolas na conceção e adoção de projetos educativos próprios, que poderão passar pela introdução de alterações de âmbito organizacional e pedagógico”), e do reforço da ação social escolar e do desporto, os chumbos continuam a afetar um terço dos alunos do ensino básico (50 mil alunos). E o Programa do Governo prevê intervir no combate ao insucesso no ensino secundário onde o insucesso é maior (afeta 50 mil alunos). Isto acarreta custos ao Estado e torna-se massivo por afetar sobretudo os alunos que provêm de famílias mais desfavorecidas económica e socialmente. Por conseguinte, o Ministério da Educação quer aprofundar e alargar as medidas que estão lançadas. E o Ministro disse (vd Público, do dia 3 de novembro) que há que sistematizar os programas e medidas existentes e desenvolver um plano de geometria variável, com a necessária adequação aos diversos contextos e com o envolvimento de cada comunidade. Lindas palavras! Também referiu que muitas famílias não acolheram o apoio tutorial por ser novidade (Filinto Lima diz que foi pela conotação com o foro judiciário de menores). Aposta no acompanhamento individualizado, quer no ensino básico, por ser fundamental, quer no secundário, dado que as retenções são claramente superiores neste nível de ensino (em termos relativos); e considera que a chave “é encontrar as melhores estratégias para apoiar e alavancar o sucesso de todos os alunos”.
Talvez esqueça que a mola do sucesso não está só no professor, a quem incumbe o ensino ou a dinamização das aprendizagens com as melhores metodologias. Mas é preciso olhar a escola como um todo e reforçar o elenco de auxiliares de ação educativa e assistentes administrativos, nomeadamente ao nível da ação social e escolar e no acompanhamento dos alunos, dotar a escola de técnicos superiores do âmbito da psicologia, serviço social, saúde e regime alimentar correto, encarar, prevenir e combater a indisciplina e comportamentos inadequados dos alunos, moderar o hipercriticismo dos encarregados de educação e reforçar a autoridade dos professores e boas condições do seu trabalho, a começar pela sua autonomia profissional.
De resto, inventar disciplinas a gosto dos alunos ou trabalhar para estatísticas é beco sem saída!
2019.11.04 – Louro de Carvalho

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