quinta-feira, 7 de novembro de 2019

As universidades católicas devem desenvolver a mente e o coração



No passado dia 4 de novembro, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, os participantes – reitores e professores – no Simpósio da Federação Internacional das Universidades Católicas (FIUC), sobre o tema “Novas fronteiras para os líderes das universidades. O futuro da saúde e o ecossistema da universidade”.
Depois da saudação proferida pela Presidente da FIUC, Prof. Doutora Isabel Gil Capeloa, Reitora da Universidade Católica Portuguesa, o Pontífice pronunciou um discurso em que, além de agradecer a saudação da Presidente da FIUC e o facto de ter sido proferida em castelhano, vincou o compromisso da Federação com o estudo e a investigação. E sugeriu que, neste âmbito, a Igreja e os intelectuais católicos devem seguir, o caminho que exprime sinteticamente o Patrono da FIUC, o recém-canonizado Cardeal João Henrique Newman: “A Igreja não teme o conhecimento, antes o purifica todo, não cala nenhum elemento da nossa natureza, antes o cultiva todo.
Segue, em síntese, o teor da alocação papal.
Face aos desafios inesperados que as universidades hoje enfrentam, por via do desenvolvimento da ciência, da evolução das novas tecnologias e das necessidades da sociedade, “que requerem das instituições académicas respostas adequadas e atualizadas”, Francisco entende que as universidades devem interrogar-se sobre o tipo de contribuição que podem e devem dar à saúde integral do homem e a uma ecologia solidária. Com efeito, os novos desafios e a “forte pressão, sentida nos vários âmbitos da vida socioeconómica, política e cultural interpelam a própria vocação da universidade e, em particular, a tarefa dos professores de ensinar, fazer pesquisa e preparar as jovens gerações para que se tornem não só profissionais qualificados nas várias disciplinas, mas também protagonistas do bem comum, líderes criativos e responsáveis da vida social e civil com uma correta visão do homem e do mundo. 
Ora, se os preditos desafios dizem respeito a todo o sistema universitário, as universidades católicas deveriam senti-los com maior intensidade. E o Papa chama a atenção para a abertura universal delas (universitas) e vinca o poder que elas têm para se constituírem em espaço de soluções para o progresso civil e cultural das pessoas e da humanidade, em termos de solidariedade, constância e profissionalismo, nunca perdendo de vista o valor mais geral, mesmo quando está em causa um valor contingente. Assim, na ótica de Francisco, os problemas – velhos e novos – devem sempre ser estudados na sua especificidade e imediaticidade, mas também num horizonte pessoal e global, pelo que se requer a interdisciplinaridade, a cooperação internacional e a partilha de recursos “de modo que a universalidade se traduza em projetos solidários e frutuosos em prol do homem, de todos os homens e do contexto em que crescem e vivem”.
Tendo em conta que o desenvolvimento das tecnociências se repercute cada vez mais na saúde física e psíquica das pessoas, bem como nos modos e processos dos estudos académicos, impõe-se considerar que todo o ensino implica – hoje mais que no passado – uma reflexão sobre os fundamentos e os fins de cada disciplina. Com efeito, diz o Santo Padre, “uma educação reduzida a mera instrução técnica ou a mera informação torna-se uma alienação da educação e considerar que se pode transmitir conhecimento subtraindo-o da sua dimensão ética seria como renunciar a educar”. Mais: é necessário superar a herança do iluminismo e considerar que educar, em geral, mas sobretudo, nas universidades não é só encher a cabeça de conceitos. E Francisco põe em evidência a necessidade da utilização coordenada de três linguagens: a da mente, a do coração e a da mão, de modo “que se pense em harmonia com o que se sente e se faz, se sinta em harmonia com o que se pensa e se faz e se faça em harmonia com o que se sente e se pensa”. Em suma, “uma harmonia geral, não extraída da totalidade”.
Segundo o Pontífice, há que partir da ideia de educação concebida como processo teleológico, ou seja, necessariamente orientado para um fim e, por conseguinte, para uma visão precisa do homem. Por outro lado, é preciso incluir no campo educativo a perspetiva da abordagem da questão dos porquês, da esfera ética. É o caráter tipicamente epistemológico, que afeta todo o universo do saber, isto é, os conhecimentos humanistas, bem como os naturais, científicos e tecnológicos. E Francisco tira consequências da aplicação destes considerandos:
A ligação entre conhecimento e finalidade leva ao tema da internacionalidade e ao papel do sujeito em todo o processo cognitivo. Assim chegamos a uma nova episteme. (…) A epistemologia tradicional tinha sublinhado este papel considerando o caráter impessoal de todo conhecimento como condição de objetividade, requisito essencial da universalidade e da comunicabilidade do saber. Hoje, ao invés, numerosos autores asseguram que não há experiências totalmente impessoais: a forma mentis, as convicções normativas, as categorias, a criatividade, as experiências existenciais do sujeito representam uma ‘dimensão tácita’ do conhecimento, mas sempre presente, um fator indispensável para a aceitação do progresso científico. Não podemos pensar numa nova episteme de laboratório, não dá, mas sim da vida.”.
Nestes termos, a universidade tem uma consciência e uma força intelectual e moral cuja responsabilidade vai além da pessoa a educar e se entende às necessidades de toda a humanidade. Assim, para o Santo Padre, a FIUC está vocacionada para assumir o imperativo moral de trabalhar para “lograr uma comunidade académica internacional mais unida, fundando com maior convicção as suas raízes no contexto cristão em que surgiram as universidades e consolidando a rede entre as universidades de origem antiga e as das gerações mais jovens, com vista a desenvolver um espírito universalista orientado para a melhoria da qualidade de vida cultural das pessoas e dos povos”. E o Papa infere:
O ecossistema das universidades constrói-se se cada universitário cultivar uma sensibilidade particular, que procede da sua atenção ao homem, a todo o homem, ao contexto em que vive e cresce e a tudo o que contribui para a sua promoção”.
E, como não podia deixar de acontecer, há uma palavra para a formação de líderes:  
A formação dos líderes atinge os seus objetivos quando logra investir o tempo académico com o fim de desenvolver a mente, o ‘coração’, a consciência e as capacidades práticas do estudante; os conhecimentos científicos e teóricos devem mesclar-se com a sensibilidade do erudito e investigador para que os frutos do estudo não se adquiram num sentido autorreferencial, mas que se projetem num sentido relacional e social. Em última instância, assim como todo o cientista e todo o homem de cultura têm a obrigação de servir mais, porque sabem mais, assim também a comunidade universitária, especialmente se é de inspiração cristã, e o ecossistema das instituições académicas devem responder juntos à mesma obrigação.”.
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Em suma, o Papa Francisco, face aos novos desafios, pede “constância e profissionalidade” com vista a soluções que levem a um “progresso civil e cultural”, marcado pela “solidariedade”, para as pessoas e para a humanidade. Quer respostas adequadas, para o que entende que devem conceber-se e desenvolver-se projetos solidários, com base na interdisciplinaridade. Entende que as universidades católicas devem dar “com maior acuidade” toda a atenção às exigências do ser universidade, estudando as “problemáticas antigas e novas” na sua especificidade e rapidez, “mas sempre dentro de uma ótica pessoal e global”. E considera que os professores devem “investigar e preparar as gerações mais jovens para que se convertam não apenas em profissionais qualificados nas diferentes disciplinas, mas também em protagonistas do bem comum, em líderes criativos e responsáveis pela vida social e civil com uma visão correta do homem e do mundo”.
Para tanto, impõe-se a utilização concertada das preditas três linguagens: a da mente, a do coração e das mãos; almeja-se uma comunidade académica mais unida; propõe-se a ideia de educação concebida como “um processo teológico”, orientado para um fim e, portanto para uma exata visão do homem, ao qual une também um “caráter tipicamente epistemológico” que se refere universalmente a todos os saberes: humanistas, naturalistas, científicos e tecnológicos.
Isto configura uma nova episteme e o Papa entende que a construção duma episteme comporta um grande desafio.
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Tenha-se em conta que episteme (ἐπιστήμη) é o conjunto do conhecimento metodologicamente construído de determinados assuntos num determinado momento histórico, em oposição às opiniões individuais. Não se trata dum conhecimento em si, nem duma forma de racionalidade, como não tem como objetivo construir um sistema de postulados e axiomas, mas pretende delinear um campo de relações, continuidades e descontinuidades entre práticas discursivas.
A episteme não é propriamente uma criação humana, mas o “lugar” onde o homem se instala, um espaço virtual em que o homem conhece e age segundo as regras estruturais da própria episteme. Deste modo, pode-se dizer que as ciências humanas são parte da episteme moderna.
Do ângulo das ciências da complexidade e de acordo com as teses de Carlos Eduardo Maldonado, episteme, no sentido da filosofia da Grécia Antiga, deve ser concebida como um conceito amplo que poderia referir-se ao estudo de assuntos tão diversos como Matemática, Física, filosofia e artes, ou seja, o estudo da episteme era muito mais do que o estudo da ciência ou da filosofia. Com efeito, no platonismo, episteme significa o conhecimento verdadeiro, racional e científico por oposição à doxa, opinião, o que parece ser melhor; e em Foucault (filosofo francês, 1926-1984), é o paradigma comum, numa determinada época, de todos os saberes humanos, que partilham determinadas caraterísticas gerais, independentemente das suas especificidades.
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Resta saber se as universidades católicas, nomeadamente a portuguesa, têm a coragem de pôr em prática os ensinamentos do Papa Francisco, mormente os contidos no discurso à FIUC, ou se a competitividade se sobrepõe à solidariedade e a especialidade se sobrepõe ao caráter holístico dos estudos superiores (o especialista não pode perder de vista a totalidade do homem e do mundo), ou ainda se o cientismo e as pressões mecanicistas e economicistas se sobrepõem à ética e à cidadania. Enfim, resta saber se a tentação individualista e neoliberal não britará todo o ecossistema académico que deve ser fortemente personalizado e inter-relacional e levar ao aprofundamento das matérias sem perder a dimensão holística, gerar conhecimento com vista ao progresso e bem-estar humanos.
2019.11.06 – Louro de Carvalho

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