No passado
dia 4 de novembro, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, os participantes –
reitores e professores – no Simpósio da Federação Internacional das
Universidades Católicas (FIUC), sobre o
tema “Novas fronteiras para os líderes
das universidades. O futuro da saúde e o ecossistema da universidade”.
Depois da
saudação proferida pela Presidente da FIUC, Prof. Doutora Isabel Gil Capeloa,
Reitora da Universidade Católica Portuguesa, o Pontífice pronunciou um discurso
em que, além de agradecer a saudação da Presidente da FIUC e o facto de ter
sido proferida em castelhano, vincou o compromisso da Federação com o estudo e
a investigação. E sugeriu que, neste âmbito, a Igreja e os intelectuais
católicos devem seguir, o caminho que exprime sinteticamente o Patrono da FIUC,
o recém-canonizado Cardeal João Henrique Newman: “A Igreja não teme o conhecimento, antes o purifica todo, não cala
nenhum elemento da nossa natureza, antes o cultiva todo”.
Segue, em
síntese, o teor da alocação papal.
Face aos
desafios inesperados
que as universidades hoje enfrentam, por via do desenvolvimento da ciência, da
evolução das novas tecnologias e das necessidades da sociedade, “que requerem
das instituições académicas respostas adequadas e atualizadas”, Francisco
entende que as
universidades devem interrogar-se sobre o tipo de contribuição que podem e
devem dar à saúde integral do homem e a uma ecologia solidária. Com efeito, os
novos desafios e a “forte pressão, sentida nos vários âmbitos da vida
socioeconómica, política e cultural”
interpelam “a própria vocação da universidade e, em particular, a
tarefa dos professores de ensinar, fazer pesquisa e preparar as jovens gerações
para que se tornem não só profissionais qualificados nas várias disciplinas,
mas também protagonistas do bem comum, líderes criativos e responsáveis da vida
social e civil com uma correta visão do homem e do mundo”.
Ora, se os
preditos desafios dizem respeito a todo o sistema universitário, as
universidades católicas deveriam senti-los com maior intensidade. E o Papa
chama a atenção para a abertura universal delas (“universitas”) e vinca o
poder que elas têm para se constituírem em espaço de soluções para o progresso
civil e cultural das pessoas e da humanidade, em termos de solidariedade,
constância e profissionalismo, nunca perdendo de vista o valor mais geral,
mesmo quando está em causa um valor contingente. Assim, na ótica de Francisco,
os problemas – velhos e novos – devem sempre ser estudados na sua
especificidade e imediaticidade, mas também num horizonte pessoal e global,
pelo que se requer a interdisciplinaridade, a cooperação internacional e a
partilha de recursos “de modo que a universalidade se traduza em projetos solidários
e frutuosos em prol do homem, de todos os homens e do contexto em que crescem e
vivem”.
Tendo em
conta que o desenvolvimento das tecnociências se repercute cada vez mais na
saúde física e psíquica das pessoas, bem como nos modos e processos dos estudos
académicos, impõe-se considerar que todo o ensino implica – hoje mais que no
passado – uma reflexão sobre os fundamentos e os fins de cada disciplina. Com
efeito, diz o Santo Padre, “uma educação reduzida a mera instrução técnica
ou a mera informação torna-se uma alienação da educação e considerar que se
pode transmitir conhecimento subtraindo-o da sua dimensão ética seria como
renunciar a educar”. Mais:
é necessário superar a herança do iluminismo e considerar que educar, em geral, mas sobretudo, nas universidades
não é só encher a cabeça de conceitos. E Francisco põe em evidência a necessidade
da utilização coordenada de três linguagens: a da mente, a do coração e a da
mão, de modo “que se pense em harmonia com o que se sente e se faz, se sinta em
harmonia com o que se pensa e se faz e se faça em harmonia com o que se sente e
se pensa”. Em suma, “uma harmonia geral, não extraída da totalidade”.
Segundo o
Pontífice, há que partir da ideia de educação concebida como processo teleológico, ou seja, necessariamente orientado
para um fim e, por conseguinte, para uma visão precisa do homem. Por outro
lado, é preciso incluir no campo educativo a perspetiva da abordagem da questão
dos porquês, da esfera ética. É o caráter tipicamente epistemológico, que
afeta todo o universo do saber, isto é, os conhecimentos humanistas, bem como
os naturais, científicos e tecnológicos. E Francisco tira consequências da
aplicação destes considerandos:
“A ligação entre conhecimento e finalidade
leva ao tema da internacionalidade e ao papel do sujeito em todo o processo
cognitivo. Assim chegamos a uma nova episteme. (…) A epistemologia tradicional
tinha sublinhado este papel considerando o caráter impessoal de todo
conhecimento como condição de objetividade, requisito essencial da universalidade
e da comunicabilidade do saber. Hoje, ao invés, numerosos autores asseguram que
não há experiências totalmente impessoais: a forma mentis, as convicções normativas,
as categorias, a criatividade, as experiências existenciais do sujeito representam
uma ‘dimensão tácita’ do conhecimento, mas sempre presente, um fator
indispensável para a aceitação do progresso científico. Não podemos pensar numa
nova episteme de laboratório, não dá, mas sim da vida.”.
Nestes
termos, a universidade tem uma consciência e uma força intelectual e moral cuja
responsabilidade vai além da pessoa a educar e se entende às necessidades de
toda a humanidade. Assim, para o Santo Padre, a FIUC está vocacionada para
assumir o imperativo moral de trabalhar para “lograr uma comunidade académica
internacional mais unida, fundando com maior convicção as suas raízes no
contexto cristão em que surgiram as universidades e consolidando a rede entre as
universidades de origem antiga e as das gerações mais jovens, com vista a desenvolver
um espírito universalista orientado para a melhoria da qualidade de vida
cultural das pessoas e dos povos”. E o Papa infere:
“O ecossistema das universidades constrói-se
se cada universitário cultivar uma sensibilidade particular, que procede da sua
atenção ao homem, a todo o homem, ao contexto em que vive e cresce e a tudo o
que contribui para a sua promoção”.
E, como não
podia deixar de acontecer, há uma palavra para a formação de líderes:
“A formação dos líderes atinge os seus
objetivos quando logra investir o tempo académico com o fim de desenvolver a
mente, o ‘coração’, a consciência e as capacidades práticas do estudante; os conhecimentos
científicos e teóricos devem mesclar-se com a sensibilidade do erudito e
investigador para que os frutos do estudo não se adquiram num sentido
autorreferencial, mas que se projetem num sentido relacional e social. Em
última instância, assim como todo o cientista e todo o homem de cultura têm a
obrigação de servir mais, porque sabem mais, assim também a comunidade universitária,
especialmente se é de inspiração cristã, e o ecossistema das instituições
académicas devem responder juntos à mesma obrigação.”.
***
Em suma, o Papa Francisco, face aos novos desafios, pede “constância
e profissionalidade” com vista a soluções que levem a um “progresso
civil e cultural”, marcado pela “solidariedade”, para as pessoas e
para a humanidade. Quer respostas adequadas, para o que
entende que devem conceber-se e desenvolver-se projetos solidários,
com base na interdisciplinaridade. Entende que as universidades
católicas devem dar “com maior acuidade” toda a atenção às exigências do ser
universidade, estudando as “problemáticas antigas e novas” na sua
especificidade e rapidez, “mas sempre dentro de uma ótica pessoal e global”. E considera
que os professores devem “investigar e preparar as gerações mais jovens para
que se convertam não apenas em profissionais qualificados nas diferentes
disciplinas, mas também em protagonistas do bem comum, em líderes criativos e
responsáveis pela vida social e civil com uma visão correta do homem e do
mundo”.
Para tanto, impõe-se a utilização concertada das preditas três linguagens: a da mente, a do coração e das mãos; almeja-se uma comunidade
académica mais unida; propõe-se a ideia de educação
concebida como “um processo teológico”,
orientado para um fim e, portanto para uma exata visão do homem, ao qual une
também um “caráter tipicamente epistemológico” que se refere universalmente a
todos os saberes: humanistas, naturalistas, científicos e tecnológicos.
Isto
configura uma nova episteme e o Papa entende que a construção duma
episteme comporta um grande desafio.
***
Tenha-se em conta que episteme (ἐπιστήμη) é o conjunto do conhecimento metodologicamente construído de
determinados assuntos num determinado momento histórico, em oposição às
opiniões individuais. Não se
trata dum conhecimento em si, nem duma forma de racionalidade, como não tem
como objetivo construir um sistema de postulados e axiomas, mas pretende delinear
um campo de relações, continuidades e descontinuidades entre práticas
discursivas.
A episteme
não é propriamente uma criação humana, mas o “lugar” onde o homem se instala,
um espaço virtual em que o homem conhece e age segundo as regras estruturais da
própria episteme. Deste modo, pode-se dizer que as ciências humanas são parte
da episteme moderna.
Do ângulo das
ciências da complexidade e de acordo com as teses de Carlos Eduardo Maldonado, episteme, no sentido da filosofia da
Grécia Antiga, deve ser concebida como um conceito amplo que poderia referir-se
ao estudo de assuntos tão diversos como Matemática, Física, filosofia e artes,
ou seja, o estudo da episteme era muito mais do que o estudo da ciência ou da
filosofia. Com efeito, no platonismo, episteme significa o conhecimento
verdadeiro, racional e científico por oposição à doxa, opinião, o que parece ser melhor; e em Foucault (filosofo francês, 1926-1984), é o paradigma comum, numa
determinada época, de todos os saberes humanos, que partilham determinadas
caraterísticas gerais, independentemente das suas especificidades.
***
Resta saber
se as universidades católicas, nomeadamente a portuguesa, têm a coragem de pôr
em prática os ensinamentos do Papa Francisco, mormente os contidos no discurso
à FIUC, ou se a competitividade se sobrepõe à solidariedade e a especialidade
se sobrepõe ao caráter holístico dos estudos superiores (o especialista não pode perder de
vista a totalidade do homem e do mundo), ou ainda se o cientismo e as pressões mecanicistas e
economicistas se sobrepõem à ética e à cidadania. Enfim, resta saber se a
tentação individualista e neoliberal não britará todo o ecossistema académico
que deve ser fortemente personalizado e inter-relacional e levar ao aprofundamento
das matérias sem perder a dimensão holística, gerar conhecimento com vista ao
progresso e bem-estar humanos.
2019.11.06 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário