terça-feira, 19 de novembro de 2019

Cada um pode ser falso profeta e ter em semente o Anticristo


Ocorreu esta ideia a partir da leitura da homilia do Papa na celebração da Missa do III Dia Mundial dos Pobres. Habitualmente, quando falamos em falsos profetas ou de falsa profecia, pecados e erros o pensamento vai sempre para os outros e a nossa autocrítica fica para as calendas gregas. Nós é que somos os bons e merecemos o prémio; os outros são réprobos e só merecem o anátema. O alerta para a existência de falsos profetas e proferição de falsas profecias está subjacente e até expresso em vários textos bíblicos.
No Antigo Testamento (AT) sobressai o capítulo 13 de Ezequiel contra os falsos profetas e contra as falsas profetizas, em paralelo com Dt 18,9-22;Jr 23; Mq 2,6-13.
Ezequiel invoca o mandato do Senhor contra os profetas de Israel dizendo:  
Escutai a palavra do Senhor. (…) Ai dos profetas insensatos que seguem o seu próprio espírito, sem nada verem! Como raposas entre ruínas, são os teus profetas, ó Israel. (…) Têm visões vãs e oráculos enganadores os que dizem: ‘Oráculo do Senhor’, sem que o Senhor os tivesse enviado; e, contudo, esperam que Ele realize a sua palavra.” (Ez 13,2.3-4.6). 
Por isso, o Senhor declara-se contra “os profetas que têm visões vãs e proferem oráculos falsos” e a mão divina estará sobre eles. Com efeito, em vez de denunciarem as más atitudes do povo, alinhavam com os seus comportamentos repreensíveis, como reza o texto metafórico:  
Eles enganaram o meu povo, ao anunciarem a salvação, quando realmente não há nenhuma salvação; e, se o meu povo construía um muro, eis que eles o cobriam de reboco” (Ez 13,10).
Também o Senhor quer que o seu profeta se volte para as filhas do seu povo, que profetizam por sua iniciativa e se vendem por uma bagatela, e profetize contra elas:
Assim fala o Senhor Deus: Ai daquelas que cosem faixas para os pulsos e fabricam véus para as cabeças de todas as medidas, para apanhar os outros. Será que apanhando a vida do meu povo poupareis a vossa? Vós profanais-me entre o meu povo, por um punhado de cevada e uns bocados de pão, fazendo morrer pessoas que não deviam morrer e poupando as que não devem viver, enganando, assim, o meu povo que ouve mentiras.” (Ez 13,18-19).
Por isso, não terão mais visões vãs, nem proferirão oráculos falsos, pois o Senhor arrancará o seu povo das mãos delas.
Já o Livro do Deuteronómio alertava:
O profeta que tiver a insolência de anunciar em meu nome palavras que não lhe mandei dizer e o que falar em nome de deuses estrangeiros, esses profetas morrerão. Poderás perguntar-te a ti mesmo: Como distinguiremos a palavra que não proferiu o SENHOR? Quando o profeta falar em nome do SENHOR e essas palavras não se realizarem, então essa palavra não veio do SENHOR, o SENHOR não a disse. É insolência da palavra deste profeta. Não tenhais medo dele.” (Dt 18,20-22).
Em Jeremias (cap. 23) Deus queixa-se de que os profetas têm planos perversos e a sua força é a injustiça; são hipócritas, mentirosos e adúlteros; e “fortalecem o braço dos maus, para que nenhum se converta da sua maldade”. E, no texto de Miqueias, o Senhor acusa:  
Retirais a capa e a túnica aos que passam em segurança, ao regressarem da guerra. Expulsais as mulheres do meu povo dos seus lares queridos, e dos seus filhos retirais o meu esplendor para sempre.” (Mq 2, 8-9).
O Novo Testamento (NT) adverte para a existência dos falsos profetas. Nos sinópticos lê-se:
Tende cuidado em não vos deixardes enganar, pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu’; e ainda: ‘O tempo está próximo.’ Não os sigais.” (Lc 21,8). “Surgirão muitos falsos profetas, que hão de enganar a muitos” (Mt 24,11). “Acautelai-vos para que ninguém vos iluda. Surgirão muitos com o meu nome, dizendo: ‘Sou eu’. E seduzirão a muitos.” (Mc 13, 3-8).”.
 E a 1.ª Carta de João exorta e esclarece:  
Não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, pois muitos falsos profetas apareceram no mundo. Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus; e todo o espírito que não faz esta confissão de fé acerca de Jesus não é de Deus. Esse é o espírito do Anticristo, do qual ouvistes dizer que tem de vir; pois bem, ele já está no mundo.” (1Jo 1-3).
O verdadeiro profeta testemunha Jesus Cristo, que está entre nós, e apaga-se para que Ele brilhe.
***
A propósito do Anticristo, esquecemos que a sua principal referência é a postura contrária à de Cristo, mas aparentando probidade proferindo sedutoras palavras. Remetemos para empolgantes figuras apocalípticas e olvidamos as nossas tentações de desdém pelo plano divino ou de ataque ao projeto de Deus em nós. A 1.ª Carta de João põe o dedo na ferida:
Ouvistes dizer que há de vir um Anticristo; pois bem, já apareceram muitos anticristos. Por isso, reconhecemos que é a última hora.” (1Jo 2,18).
Ora, São Policarpo afasta-se da literatura apocalíptica e diz, na sua Carta aos Filipenses, que todo o que pregasse uma falsa doutrina seria um Anticristo.
Então é de inferir que, no AT, o falso profeta é aquele que, pela palavra supostamente vinda de Deus e pelo comportamento desumano ou devasso, desvia o povo do rumo que havia de levar ao Messias (Cristo). Hoje, o falso profeta será o que, em vez da Palavra de Deus, expõe sua própria palavra ou a palavra de Deus a seu gosto pessoal (conhece-se pelos frutos – cf Mt 7,15-16); prenuncia como vindo de Deus facto que não se realiza (cf Dt 18,21-22); prega Evangelho diferente do de Jesus (cf Gl 1,8). O falso profeta não ensina a verdade. Pode usar a Escritura, mas fá-lo-á de modo distorcido, tirando versículos fora do contexto, ignorando partes da Bíblia ou acrescentando outros ensinamentos sem base bíblica alguma.
E o Papa Francisco é claro na sua Mensagem para a Quaresma de 2018:
Quantos homens e mulheres vivem fascinados pela ilusão do dinheiro, quando este os torna escravos do lucro ou de interesses mesquinhos! Quantos vivem pensando que se bastam a si mesmos e caem vítimas da solidão! Outros falsos profetas são aqueles ‘charlatães’ que oferecem soluções simples e imediatas para todas as aflições, mas são remédios que se mostram completamente ineficazes [, por exemplo], o falso remédio da droga, de relações passageiras, de lucros fáceis mas desonestos!”.
E, na homilia do passado dia 17, é ainda mais claro quando fala da tentação do “eu”:  
Não é suficiente ter o rótulo de ‘cristão’ ou de ‘católico’ para ser de Jesus. É preciso falar a mesma linguagem de Jesus: a linguagem do amor, a linguagem do tu. Não fala a linguagem de Jesus quem diz eu, mas quem sai do próprio eu. Todavia quantas vezes, mesmo ao fazer o bem, reina a hipocrisia do eu: faço o bem, mas para ser considerado virtuoso; dou, mas para receber em troca; ajudo, mas para ganhar a amizade daquela pessoa importante. Isto é falar a linguagem do eu. Ao contrário, a Palavra de Deus incita-nos a um amor não hipócrita (cf Rm 12,9).”.
Quem, pelo seu desejo imparável de protagonismo e de carreirismo, se sobrepõe a Jesus e aos seus interesses, seja por vaidade, seja por ânsia de domínio, está na via do falso profetismo e prestes a resvalar para a postura de Anticristo. Deus nos livre da vã glória e da ânsia do poder!
O autêntico profeta reconhece-se indigno de pregar, mas sabe que pregar é um dever e um risco. E sente, na docilidade ao Espírito e na atenção aos anseios dos homens, a paixão evangélica.  
2019.11.19 – Louro de Carvalho

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