quarta-feira, 6 de novembro de 2019

“Igreja em saída” não é uma expressão de moda que o Papa inventou


É Francisco quem o assegura no livro-entrevista de Gianni Valente, publicado pela LEV (Livraria Editora Vaticana) e Edições São Paulo, que está nas livrarias desde 5 de novembro e que pretende assinalar a conclusão do mês missionário extraordinário. Aí o Pontífice aponta formulações essenciais do ser cristão, do ser e estar em Igreja, tais como:Sem Jesus não podemos fazer nada”; e “A Igreja ou é anúncio ou não é Igreja”.
Recorda-nos o autor a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, que este Papa mandou publicar 8 meses depois o Conclave que o elegeu Sucessor de Pedro, e que se inicia com a afirmação de que “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida daqueles que se encontram com Jesus”. Com efeito, este documento programático do pontificado incitava à ressintonização, por parte de todos, de cada ato, reflexão e iniciativa eclesial “sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual”. Passados quase 6 anos, Francisco anunciou o Mês Missionário Extraordinário e a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos dedicada à Região Amazónica para sugerir novas rotas de anúncio do Evangelho no “pulmão verde”, martirizado pelo sofrimento predatório que violenta e fere os irmãos e também a nossa irmã terra.
Entretanto, o magistério papal vem disseminando insistentemente referências à natureza da missão da Igreja no mundo. Assim, vem repetindo que anunciar o Evangelho não é “proselitismo”, que a Igreja cresce “por atração” e por “testemunhos” – expressões que sugerem qual há de ser o dinamismo para cada obra apostólica e qual pode ser a sua fonte.
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Com base na antecipação de textos que a Agência Fides apresentou pode fazer-se ideia do conteúdo do livro-entrevista.
Uma curiosidade é que Bergoglio, quando era jovem, queria ser missionário no Japão, mas não sabe responder à pergunta provocatória se “é um missionário não completo”. Diz ter entrado para os jesuítas por o impressionar a vocação missionária deles e por “sempre procurarem novas fronteiras”. E, embora na época não pudesse ir ao Japão, sempre sentiu que “anunciar Jesus e o seu Evangelho quer dizer sair e colocar-se a caminho.
Quanto à possibilidade de a expressão Igreja em saída”, tantas vezes relançada, se tornar um slogan de que abusam os que passam o tempo a dar lições à Igreja sobre como deveria ser ou não ser, Francisco diz com humilde determinação, citando o Evangelho de Marcos:
Igreja em saída não é uma expressão de moda que eu inventei. É um mandamento de Jesus, que no Evangelho de Marcos (Mc 16,15) pede aos seus discípulos que vão pelo mundo inteiro e anunciem o Evangelho a ‘toda criatura’. A Igreja ou é em saída ou não é Igreja. Ou é em anúncio ou não é Igreja. Se a Igreja não sai corrompe-se, perde a sua natureza. Torna-se outra coisa.”.
E discorre chamando-lhe, no caso de não ser em saída e de não ser anúncio, uma associação espiritual, uma multinacional para lançar iniciativas e mensagens de conteúdo ético-religioso. E, embora não seja coisa má, contudo, não é a Igreja. E, ao mesmo tempo, adverte que é um risco de qualquer organização estática na Igreja, terminando por “domesticar Cristo”: 
Não se dá mais testemunho da ação de Cristo, mas fala-se de uma certa ideia de Cristo. Uma ideia possuída e adomesticada por você mesmo. Você organiza as coisas, torna-se um pequeno empresário da vida eclesial, onde tudo acontece segundo o programa pré-estabelecido, isto, é, seguindo apenas as instruções. Mas o encontro com Cristo não se repete mais. Não se repete o encontro que tinha tocado o seu coração no início.”.
Todavia, o Papa avisa que “a missão, a ‘Igreja em saída’, não são um programa, uma intenção para a ser realizada por boa vontade”. Ao invés, “é Cristo que faz a Igreja sair de si mesma”, pois, na missão de anunciar o Evangelho, movemo-nos porque o Espírito Santo nos impele e leva. E quando nós chegamos, damo-nos conta de que Ele chegou antes e está à nossa espera. Ele previne, também para preparar o nosso caminho, e já está em ação.
O autor entrevistador sublinha que o Pontífice sugeriu num encontro com as Pontifícias Obras Missionárias a leitura dos Atos dos Apóstolos e não a dum manual de estratégia missionária moderna. E a resposta não se fez esperar, surgindo com a frescura do Espírito:
O protagonista dos Atos dos Apóstolos não são os apóstolos. O protagonista é o Espírito Santo. Os Apóstolos são os primeiros que o reconhecem e o confirmam. Quando comunicam aos irmãos de Antioquia as indicações estabelecidas pelo Concílio de Jerusalém, escrevem: ‘Decidimos, o Espírito Santo e nós’. Eles reconheciam com realismo o facto de que era o Senhor que adicionava todos dias à comunidade ‘os que estavam salvos’, e não os esforços de persuasão dos homens.”.
No atinente à diferença entre aquela época e a nossa, Francisco aponta que “a experiência dos Apóstolos é como um paradigma que vale para sempre”. Assim, nos Atos dos Apóstolos, as coisas sucedem gratuitamente, sem artifícios, porque “os discípulos chegam sempre depois do Espírito Santo que age por primeiro”. É Ele que “prepara e trabalha os corações”. E, “quando chegam os problemas e as perseguições, o Espírito Santo trabalha ali também, de maneira ainda mais surpreendente, com o seu conforto, o seu consolo”. E o Papa desenvolve:
Inicia-se [após o martírio de Estêvão] um tempo de perseguição, e muitos discípulos fogem de Jerusalém, vão para a Judeia e Samaria. E ali, enquanto estão espalhados e fugitivos, começam a anunciar o Evangelho, mesmo se estão sozinhos e sem os Apóstolos, que ficaram em Jerusalém. São batizados, e o Espírito Santo lhes dá a coragem apostólica. Ali se vê pela primeira vez que o batismo é suficiente para se tornarem anunciadores do Evangelho. (…) Precisa apenas de se pedir que se faça novamente em nós a experiência para que possamos dizer: decidimos, o Espírito Santo e nós.”.
E, se não houver esta experiência, sem o Espírito, a missão torna-se “um projeto de conquista, pretensão de uma conquista feita por nós, uma conquista religiosa, ou talvez ideológica, talvez feita com boas intenções, mas é uma outra coisa”.
Instado a explicar o sentido da afirmação de que a Igreja cresce por atração, responde que são palavras de Jesus no Evangelho de João: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32); e “Ninguém vem a mim, se não for atraído pelo Pai que me mandou” (Jo 6,44). Assim, a Igreja sempre viu nesta a forma de todo o lema que aproxima a Jesus e ao Evangelho, não na convicção, raciocínio, tomada de consciência, pressão ou constrição. Já o profeta Jeremias rezava: “Tu me seduziste e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7). Isto vale para os apóstolos e missionários. E o Santo Padre não deixa de insistir, observando:  
O mandato do Senhor de sair e anunciar o Evangelho vem de dentro, por paixão, por atração amorosa. Não se segue Jesus e muito menos se torna anunciador d’Ele e do seu Evangelho por uma decisão prática, uma militância autoinduzida. O próprio impulso missionário só pode ser fecundo se acontece dentro desta atração e que se transmite aos outros.”.
Por consequência, ao invés, quem pensa ser protagonista ou empresário da missão, com todos os bons propósitos e declarações de intenção muitas vezes termina por não atrair ninguém.
Com efeito, prossegue o Pontífice, a missão não é um projeto empresarial bem organizado, nem um espetáculo organizado com a contabilização dos participantes mercê da nossa propaganda. “O Espírito Santo age como quer, quando e onde quiser”. E o cume da liberdade repousa “neste deixar-se levar pelo Espírito, renunciado a calcular e controlar tudo”. Nisto “imitamos o próprio Cristo, que no mistério da sua Ressurreição aprendeu a repousar na ternura dos braços do Pai”. Assim, a fecundidade da missão não consiste nas nossas intenções, métodos, lançamentos e iniciativas, mas repousa “na vertigem que se adverte diante das palavras de Jesus, quando diz Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). Depois, a atração para Cristo e para o Evangelho faz-se testemunho em nós. Ora, a testemunha comprova o que a obra de Cristo e do seu Espírito realizaram na sua vida. Mais: após a Ressurreição, o próprio Cristo nos torna visível aos apóstolos. É ele a sua testemunha. E o testemunho não é um desempenho próprio, pois mostra as obras do Senhor.
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O autor entrevistador estranha que o Papa fale tanto em chave negativa: a Igreja não cresce por proselitismo e a missão da Igreja não é fazer proselitismo. E pergunta se “é para manter as boas relações com as outras Igrejas e o diálogo com as tradições religiosas”. Mas Francisco esclarece que o problema do proselitismo não é só contradizer o caminho ecuménico e o diálogo inter-religioso, mas ser uma tentação recorrente e explana:
Há proselitismo em todos os lugares, há a ideia de fazer com que a Igreja cresça deixando de lado a atração de Cristo e da obra do Espírito, apostando tudo nos chamados ‘discursos sábios’. (…) O proselitismo tira o próprio Cristo e o Espírito Santo da missão, mesmo quando quer agir em nome de Cristo, de maneira nominalista. O proselitismo é sempre violento pela sua natureza, mesmo quando é dissimulado ou feito ‘com luvas de pelica’. Não suporta a liberdade e a gratuitidade com que a fé se pode transmitir, pela graça, de pessoa a pessoa. Por isso o proselitismo não é apenas o do passado, dos tempos do antigo colonialismo, ou das conversões forçadas ou compradas com a promessa de vantagens materiais. Hoje também pode haver proselitismo, nas paróquias, nas comunidades, nos movimentos, nas congregações religiosas.”.
Ao invés, o anúncio do Evangelho consiste em entregar com palavras sóbrias e claras o próprio testemunho de Cristo como fizeram os apóstolos. O anúncio do Evangelho, que até pode ser sussurrado, passa sempre pela força arrebatadora do escândalo da cruz e segue o caminho indicado na 1.ª Carta de Pedro, que consiste em dar razão aos outros da própria esperança (cf 1Pe 3,15), “esperança que permanece escândalo e tolice aos olhos do mundo” (1Cor 1,23).
Nestes termos, é caraterístico do missionar cristão o ser facilitador e não controlador da fé. É preciso tornar fácil (e não lhe pôr obstáculos) o desejo de Jesus de abraçar, curar e salvar a todos, sem seleções e sem “triagens pastorais”, não fazendo parte dos que se põem à porta para controlar se os que se aproximam têm requisitos para entrar. E o Papa argentino conta:
Recordo os párocos e as comunidades que em Buenos Aires tinham colocado em campo várias iniciativas para facilitar o acesso ao Batismo. Deram-se conta de que, nos últimos anos, estava a aumentar o número dos que não eram batizados por vários motivos, mesmo sociológicos, e queriam recordar a todos que ser batizado é uma coisa simples, que todos podem pedir para si e para seus próprios filhos. O caminho que os párocos e aquelas comunidades tomaram era um só: não complicar, não pretender nada, eliminar todas as dificuldades de caráter cultural, psicológico ou prático que poderiam levar as pessoas a adiar ou perder a intenção de batizar os seus próprios filhos.”.
Relativamente à discussão dos missionários, na América, no início da evangelização, sobre quem seria “digno” de receber o Batismo, Francisco recorda que o Papa Paulo III recusou a teoria que sustentava serem os índios por natureza “incapazes” de acolher o Evangelho e confirmou a escolha dos que lhes facilitavam o Batismo. E comenta: 
Parecem coisas passadas, mas ainda hoje há círculos e setores que se apresentam como ‘ilustrados’, iluminados, e sequestram o anúncio do Evangelho nas suas lógicas distorcidas que dividem o mundo entre ‘civilização’ e ‘barbárie’. A ideia de que o Senhor tenha entre os seus preferidos muitas ‘cabecitas negras’ irrita-os, deixa-os de mau humor. Consideram boa parte da família humana como se fosse uma entidade de classe inferior, inadequada a alcançar, segundo os seus padrões, níveis decentes de vida espiritual e intelectual.”.
Ora, neste contexto antropossocial, pode-se desenvolver um desprezo pelos povos considerados de segundo nível. E este tema veio à tona por ocasião do Sínodo dos Bispos para a Amazónia.
Quanto à tendência hodierna de colocar em alternativa dialética o anúncio claro da fé e as obras sociais, não sendo alegadamente preciso fazer missão para sustentar as obras sociais, Francisco sublinha que “tudo o que está dentro do horizonte das Bem-Aventuranças e das obras de misericórdia está de acordo com a missão, já é anúncio, já é missão”. E reitera o que tantas vezes proclama aos quatro ventos:  
A Igreja não é uma ONG, a Igreja é uma outra coisa. Mas a Igreja é também um hospital de campo, onde se acolhe todos, assim como são, cuidando das feridas de todos. E isso faz parte da sua missão. Tudo depende do amor que move o coração dos que atuam. Se um missionário ajuda a escavar um poço em Moçambique, porque se deu conta de que é fundamental para os que ele batizou e aos quais prega o Evangelho, como se pode dizer que a obra é separada do anúncio?”.
E, sobre as novas atenções e sensibilidades a exercer nos processos destinados a tornar fecundo o anúncio do Evangelho, nos vários contextos sociais e culturais, frisa que “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural”. E citando São João Paulo II, vinca:
Permanecendo plenamente si mesmo, na total fidelidade ao anúncio evangélico e à tradição eclesial, o cristianismo carregará também o rosto das várias culturas e dos vários povos nos quais foi acolhido e enraizado”.
Com efeito, na conjugação da diversidade com a unidade, “o Espírito Santo embeleza a Igreja, com as expressões novas das pessoas e das comunidades que abraçam o Evangelho”, pelo que “a Igreja, assumindo os valores das várias culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis(“a esposa ornada de suas joias”), de que fala o profeta Isaías (cf Is 61,10). Ora, se algumas culturas foram construídas em estreito liame com a pregação do Evangelho e com o desenvolvimento de um pensamento cristão, também hoje “se torna ainda mais urgente considerar que a mensagem revelada não se identifica com nenhuma cultura”. Por outro lado, “no encontro com novas culturas ou com culturas que não acolheram a pregação cristã, não se deve tentar impor uma determinada forma cultural junto com a proposta evangélica”. E sugere o Papa que hoje, “na obra missionária convém mais do que nunca, não carregar bagagem pesada”.
Por fim, surge uma palavra reflexiva quanto à relação entre a missão e o martírio. E Francisco aponta que o martírio e a proclamação do Evangelho a todos têm a mesma origem: o amor de Deus derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo a doar força, coragem e consolação. E diz que “o martírio é a máxima expressão do reconhecimento e do testemunho feito a Cristo, que representam o cumprimento da missão, da obra apostólica”. Exemplifica com os coptas trucidados na Líbia a pronunciar em voz baixa o nome de Jesus ao serem degolados ou com as Irmãs de Santa Madre Teresa que, no Iémen, ao serem mortas enquanto cuidavam dos pacientes muçulmanos duma casa de idosos com deficiências, estavam com o avental de trabalho sobre o hábito religioso. E conclui que “são todos vencedores, não vítimas”, e que “o seu martírio, até ao derramamento de sangue, ilumina o martírio que todos podem sofrer na vida todos os dias, com o testemunho dado a Cristo todos os dias”, o que se pode ver na visita a asilos de idosos missionários, por vezes debilitados pela vida que levaram, a ponto de alguns perderem a memória, não recordando nada do bem que fizeram. Porém, como dizia um missionário, “disso o Senhor se recorda muito bem”.
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Um livro cuja leitura será útil para oportuna e pertinente reflexão sobre o ser da Igreja, entendido à luz da Palavra de Deus, e a forma genuína de encarar a missão e o testemunho, quer no martírio extremo, quer no martírio paulatino do quotidiano – na certeza de que o Espírito previne, guia e ajuda, embora peça a nossa devotada cooperação, no entusiasmo da Boa Nova, mas no respeito pela liberdade do outro, que merece, não o tempo da desistência ou do anátema, mas a bondade do diálogo, o tempo e a paciência da espera e a força da esperança.  
2019.11.06 – Louro de Carvalho

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