quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Um Primeiro-Ministro tem de saber explicar o que quer dizer


Decorreu hoje, dia 13, o primeiro debate parlamentar com o Primeiro-Ministro na XIV Legislatura. E, se é verdade que António Costa esteve à vontade no discurso inicial, deixou coisas por explicar ou mal explicadas nas réplicas aos deputados. Neste aspeto sobressaem questões como a sugestão de professores emigrarem e o plano de não retenção no ensino básico.     
Neste primeiro debate quinzenal da legislatura, o Governo apareceu só pela metade na bancada do Governo, ao invés do que sucedia nas legislaturas anteriores, onde habitualmente todos os ministros tomavam os seus lugares. A isto o gabinete do Primeiro-Ministro esclareceu o critério: só os ministros coordenadores dos 4 eixos temáticos do Programa de Governo e os ministros das áreas em debate é que se sentarão na bancada do Governo nos debates quinzenais, isto é:
Além do Primeiro-Ministro (e seus secretários de Estado), os ministros de Estado, os ministros Coordenadores dos 4 Eixos temáticos do Programa do Governo (que são, na maioria, coincidentes com os ministros de Estado) e os ministros ou secretários de Estado dos temas do debate (quando escolhidos pelo Governo) ou os que o Governo considere necessários para os temas escolhidos pela oposição”.
Pelos vistos, a prática é comum e também no primeiro debate quinzenal da anterior legislatura só compareceram 8 ministros. E a explicação é:
Quando os debates quinzenais são inaugurados pela intervenção inicial do Primeiro-Ministro, o único membro do Governo que pode responder aos deputados é o próprio Primeiro-Ministro. Assim, o Executivo faz-se representar apenas pelos ministérios que tutelam as áreas escolhidas para o discurso.”.
***
Na abertura do debate quinzenal, Costa destacou o que julga ser “um dos resultados mais importantes da mudança de política económica” do último Governo: “redução para metade da taxa de desemprego” – apoiado nos números do INE, divulgados na semana passada, que deram conta duma taxa de desemprego de 6,1%, “o valor mais baixo dos últimos 17 anos”. E, sobre este dado, o Chefe do Governo apontou outros dois: 95% dos postos de trabalho líquidos criados na legislatura anterior “consistiram em contratos sem termo”; o rendimento salarial médio “melhorou em 9%”. Não obstante, diz que “ainda há muito caminho a percorrer”.
No tocante à política de rendimentos – e no dia em que o Governo anunciou querer salário mínimo de 635 euros no próximo ano – o Primeiro-Ministro apontou as prioridades nesta área para a legislatura. Afirmou a necessidade de “garantir um horizonte de vida estável e previsível para quem trabalha”; prometeu “maior capacidade de fiscalização” dos contratos a prazo; colocou a promoção de uma “maior conciliação entre a vida pessoal e familiar e a atividade profissional”; e disse esperar concluir “em breve” na concertação social” o acordo nesta matéria. Por outro lado, disse que não se trata de dar atenção apenas à “componente salarial”, mas também à fiscalidade sobre o trabalho, às transferências não monetárias no acesso aos serviços públicos de qualidade e a outros rendimentos como as prestações ou pensões. E acabou por verbalizar a necessidade de “melhorar os rendimentos de quem trabalho”, desafiando para um “movimento generalizado de subida dos salários” e para o qual chama sindicatos e patronato.
Enfim, o Governo quer um “pacto para o crescimento, com mais investimento, melhor conhecimento e maior rendimento”, onde se inclui a questão dos jovens qualificados, “a geração mais bem preparada de sempre”, mas que “ainda não tem a remuneração mais justa de sempre”. E quer fixar um referencial, na contratação coletiva, dum “prémio de qualificação aplicável a quem tem uma licenciatura e quem frequentou um curso técnico e profissional”.
Quanto ao salário mínimo nacional, o Primeiro-Ministro recusou que o seu aumento seja feito com base na inflação, argumentando que isso faria com que crescesse “apenas 12% até 2032, atingindo os 672 euros”. Isto quando o objetivo deste Governo é, no final da legislatura, de 750 euros. No momento de resposta à deputada do Livre que dizia que era uma questão de amor e o queria em 900 euros e já, Costa clamou que não é uma questão de amor, mas de justiça. Porém, não explicou a diferença nem porque não passava a ambicionar a meta dos 900 euros e para já.
Disse apenas que este aumento vai “ainda mais longe” do que aquele que se fez na legislatura anterior: “Se nos últimos quatro anos o salário mínimo aumentou 95 euros, nos próximos quatro aumentará 150 euros”. E anunciou no plenário o que já tinha sido anunciado de manhã: vai aprovar no Conselho de Ministros o valor do salário mínimo de 635 euros para o próximo ano – valor que, na ótica do Governo, é “adequado à situação económica e social e perfeitamente compatível com o objetivo de legislatura” – quod erat demonstrandum.
Entretanto, Tiago Barbosa Ribeiro, do PS anotou que há “um consenso parlamentar” sobre um política salarial “digna”, registando “com agrado” que “algumas destas forças políticas achavam impossível conciliar o crescimento da economia e a melhoria das condições de vida dos cidadãos”. O deputado socialista disse que a ambição é “ir mais além”, nesta matéria, do que o Governo fez na última legislatura.
***
João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, questionou António Costa sobre o englobamento de rendimentos em sede de IRS prevista pelo Governo, eliminando as diferenças entre taxas. E deu um exemplo: “Uma portuguesa com um salário mensal de 630 euros com uma renda de 50 euros por mês tem um aumento de IRS de 60%. Para o PS, faz parte dos ricos”. E questionou o Primeiro-Ministro sobre se “pode confirmar que não vai haver aumentos globais de impostos nesta legislatura”.
Costa respondeu que o Programa do Governo “prevê que haja um progressivo englobamento de rendimentos”, mas que não está em lado nenhum que acontecerá já no próximo ano e também diz que “qualquer especulação ou exercício de figuração que aqui fez não assenta em mais nada do que pura imaginação”. Aliás, diz mesmo ser “patético” este exercício porque “o englobamento pode isentar a tal senhora” ou “pode ser apenas para rendas de valores mais elevados”: “É tão patético o exercício feito pelas consultorias como o exemplo que aqui deu”. Costa devia ter explicado em vez de fazer juízos de valor sobre o questionamento feito. Porém, foi mais longe. Com efeito, quando Cotrim passou à questão sobre a assiduidade na função pública ser premiada, pressupondo-se que a assiduidade é um dever do trabalhador, o Chefe do Executivo intrigou-se e defendeu que o “bom desempenho deve ser incentivado”. E atirou: fixista 
Acho estranho que erga a sua voz para defender uma visão fixista dos recursos humanos da Administração Pública. Começo a arrepender-me de ter dito que tínhamos um liberal na Assembleia da República, pelos vistos mais depressa se apanha um falso liberal do que alguém que quer fugir”.
***
Esqueceu o Chefe de Governo que os liberais querem pouco Estado e com menos funcionários, mas quer que estes sejam bem pagos e assíduos para que o Estado possa ser bom árbitro.
A críticas do PCP e PEV sobre a atenção que o Governo deve dar a setores chave como a saúde e a educação, com destaque para a falta de funcionários nas escolas e o grande número de alunos sem aulas, António Costa respondeu com a agilização das contratações e substituições e com a desculpa da descentralização ou com o recorrente pressuposto de que a saúde está melhor, com o Bloco de Esquerda a acusar a irresponsabilidade de chutar as falhas da administração central para as autarquias.
Contudo, o que fez aquecer o debate foram as questões da emigração para suprir a falta de emprego em Portugal, veiculadas por André Ventura, do Chega, e o plano de não retenção dos alunos do ensino básico, apontada pelo PSD e pelo CDS.
O deputado do Chega afirmou que António Costa “disse que os professores de Português que não tivessem colocação poderiam emigrar“. Costa abanou a cabeça como sendo negativo e a bancada do PS protestou. Mas Ventura insistiu: “Disse, disse, disse, senhor Primeiro-Ministro”. Na resposta, Costa remeteu para uma declaração de Passos Coelho em 2011, que lhe ficaria colada à pele durante todo o mandato como sendo o Primeiro-Ministro que sugeriu que os jovens portugueses emigrassem. E atirou:
Creio que se confundiu com o primeiro-ministro que fez essa sugestão”.
André Ventura ainda lembrou a Costa, que a sugestão estava plasmada nas notícias da altura que davam conta disso mesmo. De facto, Costa fez uma declaração em que sugeria a professores portugueses que podiam procurar colocação em França: A 12 de junho de 2016, em Paris, visitou uma exposição de Amadeo de Souza-Cardoso no Grand Palais e, fazendo o balanço da visita de três dias à capital francesa, sublinhava o “compromisso” do Presidente francês de “investir na educação do português nas escolas francesas, não só para as comunidades de origem portuguesa, mas para todos os estudantes em geral, reconhecendo nos portugueses uma das grandes línguas globais”. E o Primeiro-Ministro disse:
É muito importante para a difusão da nossa língua. É também uma oportunidade de trabalho para muitos professores de português que, por via das alterações demográficas, não têm trabalho em Portugal e podem encontrar trabalho aqui em França.”.
Ora, como lembrou André Ventura, os jornais fizeram essa leitura, como se pode ver em notícias de órgãos de comunicação diversos como o Expresso, a SIC Notícias, a Rádio Renascença e o Observador, que se deram ao cuidado de comparar as declarações de Passos Coelho e de António Costa, que eram, de facto similares.
A oposição aproveitou a onda e era incoerente ao considerar as declarações de Costa como um apelo à emigração, mas insistindo que as de Passos Coelho não eram um apelo. Costa, desde essa altura, desdobrou-se em esforços para negar que tinha incentivado à emigração. Acusava os jornais e a oposição de confundir o inconfundível:
A estrada da Beira e a beira da estrada não são a mesma coisa, pois não? Pois… Eu também não apelei à emigração!”.
Também Pedro Passos Coelho sempre negou ter apelado à emigração, mas fez de facto uma sugestão muito similar à de Costa, quando disse a 18 de dezembro de 2011, numa entrevista ao Correio da Manhã, na linha do que haviam sugerido publicamente corifeus do seu partido:
Estamos com uma demografia decrescente, como todos sabem, e portanto nos próximos anos haverá muita gente em Portugal que, das duas uma: ou consegue nessa área fazer formação e estar disponível para outras áreas ou, querendo manter-se sobretudo como professores, podem olhar para todo o mercado da língua portuguesa e encontrar aí uma alternativa”.
Pedro Passos Coelho sugeriu, de facto, que os professores portugueses saíssem da “zona de conforto” e pudessem encontrar alternativa no mercado da língua portuguesa (países da Comunidade Países de Língua Portuguesa). E Costa também sugeriu que os professores de Português pudessem emigrar para França, tendo classificado mesmo essa emigração como “oportunidade”. Costa quis dizer que Ventura estava a confundi-lo com as declarações de Passos Coelho em 2011, o que é errado. Ventura referia-se mesmo às declarações de Costa em junho de 2016. Não obstante, há diferença: Passos Coelho encaminhava os professores portugueses e Costa encaminhava os professores de Português a responder aos propósitos do Presidente francês de incremento do ensino da nossa língua. Mas, se pensasse nas consequências das declarações antes de falar, teria omitido a razão da eventual falta de emprego, bem como a oportunidade para a colmatar. Bastava-lhe ter dito que eram lá necessários professores de Português. 
***
Sobre o plano do Governo de não retenção no ensino básico, Rui Rio questionou o Primeiro-Ministro se o plano que está em marcha é para facilitar as “passagens administrativas” dos alunos, mesmo dos que não estão preparados para passar de ano, ou seja, se tem em vista acabar com as retenções e reprovações até aos 14 anos, independentemente de o aluno saber ou não saber as matérias. E, quando António Costa começou a explicar-se, as bancadas do PSD e do CDS faziam-se ouvir no hemiciclo em apartes: “Passa ou não passa?”.
E Rio continuou o ataque questionando “a caminho do quê” vai o aluno que “passa sem saber. Não tem futuro académico de certeza. É uma medida injusta e pode dar-se o nome mais sofisticado, mas na prática corresponde às passagens administrativas: se sabe, passa; e, se não sabe, passa também”. E conclui: “Nesta matéria temos visão contrária e esta é mesmo estruturalmente diferente”.
Costa aduziu as “recomendações” da OCDE e do CNE (Conselho Nacional de Educação), segundo as quais “a retenção não favorece a aprendizagem mas a multiplicação da retenção”. E relevou:
Aquilo que se prevê é que dentro do ciclo não haja retenção, mas sim continuação do estudo”.
As esquerdas aplaudiram e as direitas protestaram. Costa hesitou na resposta e refugiou-se na ideia de que o Governo “não se limita a chumbar e a desistir do aluno” em causa. Lindo!
Para António Costa, “a taxa de retenção elevada não favorece o sucesso educativo, pelo contrário até o compromete”. E até recordou que o parecer do CNE é do tempo da presidência de David Justino, agora vice-presidente do PSD.
É certo que David Justino era ao tempo presidente do CNE e que o parecer vinculava o CNE e não propriamente Justino, como este chegou a esclarecer. Porém, Justino veio mais tarde afirmar o seu alinhamento com o parecer.
Enfim, Costa repetiu aquilo que é conhecido de todos, não explicou nada mais que pudesse desmantelar a ideia do facilitismo e das passagens administrativas. Aliás nem o Ministro da Educação, que devia estar assessorado por técnicos competentes na matéria o tem explicado.
E, como se tem dito, o problema do insucesso não se resolve verdadeiramente com o tirar dos alunos da pressão dos testes e multiplicando as modalidades e instrumentos de avaliação, como apontam os políticos da área educativa. A cultura quase exclusiva do teste, que a escola já não tinha, foi imposta pela sociedade a que o ME respondeu com os dados para rankings. Por outro lado, criar novas disciplinas a gosto dos alunos e flexibilizar os programas das disciplinas em consonância com os interesses dos alunos (não digo com o nível etário e com as insuficiências socioeconómicas) é desviar a escola de um dos seus maiores deveres – a produção e inculcação do conhecimento e dos saberes (saber, saber ser, saber estar, saber relacionar-se, preparar o futuro).
Ora, ninguém – nem Primeiro-Ministro, nem PS, nem partidos da oposição – esclareceu o povo representado no hemiciclo de modo a espantar o fantasma do facilitismo. Porquê?
E terão os demais temas ficado esclarecidos, a não ser a não garantia de não haver aumento dos impostos indiretos?
2019.11.13 – Louro de Carvalho     

Sem comentários:

Enviar um comentário