Disseram,
há anos, as más-línguas que o Papa Bento XVI tirou o burrinho e a vaquinha do
presépio, ou seja, que aquilo que a tradição cristã porfia sobre dois animais
que ladearam a Sagrada Família na gruta de Belém, onde Maria deu à luz o seu
Filho Primogénito, O envolveu em panos e O reclinou sobre a manjedoura, não
seria verdade, mas ficção.
É de
recordar que “presépio” (em grego, phátnê)
tanto designava a manjedoura onde os animais comiam, como o espaço que a
envolvia, a “gruta” de abrigo de animais ou mesmo o “estábulo” ou o “redil”. Depois,
passou a designar todo o cenário do nascimento de Jesus. E hoje falar de presépio
é falar do local do nascimento de Jesus ou de objetos arquitetónicos, escultóricos
ou pictóricos que o representem.
Deve dizer-se,
em abono da verdade e da leitura ad
litteram, que Joseph Ratzinger – Bento XVI, no livro Jesus de Nazaré – A Infância de Jesus, não expulsou os animais do
presépio. Apenas refere, com verdade, que os Evangelhos da Infância não os
mencionam. E, como sabemos, Lucas, embora se tenha proposto fazer a história de
Jesus (não
uma biografia), não
a faz segundo os critérios dos historiadores de hoje, nem o seu intento é o
relato puramente histórico, mas sim uma sólida catequese baseada em dados
históricos de Jesus de Nazaré, dando prioridade ao núcleo fundamental da Boa
Nova do Reino.
Santiago
Martín, no seu relato romanceado Evangelho
Secreto da Virgem Maria, da Paulus (cuja leitura é
interessante e pode ser proveitosa),
põe na boca da Mãe de Jesus a explicação a Lucas para a presença dos dois
animais no presépio. Quando, depois do parto, Maria e José estavam, já de dia,
em relativo sossego por o menino estar a dormir, chegou o camponês que ali guardava
a sua vaca, estando o burrico que transportou Maria de Nazaré a Belém a comer, do
lado de fora, pois não o quiseram meter na gruta durante o dia (tinha
lá estado durante a noite).
O predito camponês começou a discutir com os novos ocupantes, porque a aquele
local era para a vaquinha dele, mas que, depois da ordenha, não a pôde trazer
na noite anterior por falta de tempo.
Quando viu
que Maria não queria que José discutisse com o homem, estando disposta a
abandonar o local, o camponês, mal-humorado consigo próprio, atirou-lhes uma manta
sem dizer nada e quis meter a vaca na gruta, mas ela não se mexia, por mais
tentativas que o dono fizesse, mesmo batendo-lhe. Então, voltou-se para os
ocupantes e disse:
“Aí tendes a vaca. (…) Talvez ela tenha mais coração do que eu. (…)
Ficai em paz e dar-me-eis o que puderdes pelo aluguer da gruta e do animal.”.
Ora,
para Santiago Martín, a presença do burro dentro ou fora da gruta foi um dado
normal, enquanto a presença da vaca se deve ao facto, talvez romanceado, da mudança
de humor do seu dono. Assim, é natural que burro e vaca tenham contribuído com
o seu bafejar para amenizar a agrura do frio noturno junto do menino e que a
vaquinha, em maré de dar leite, como deixara entender o camponês, seu dono,
desse à aquela família algum proveito alimentar.
Também a
Revista do Expresso, de 9 de novembro, publicou um inédito conto de Natal Os Burros (escrito
em 2016) ou O Burro do presépio e todos os outros, do
Cardeal José Tolentino Mendonça, com ilustrações de Alex Gozblau e que vale a
pena ler pelo seu peso didático e valor poético. Aí destaca o autor:
“Diz-se que os burros podem percorrer quatro quilómetros
por hora e 24 quilómetros por dia. Penso, por vezes, que essa é a velocidade
com que a tristeza caminha sobre a terra.”.
Confesso
que tive certo em perceber como esse maravilhoso texto poderia ser catalogado
como conto. Porém, recorrendo à terminologia, de Anatol Rosenfeld, parece que encaixa na forma
da Skizze (esboço, sketch em inglês), que apresenta
uma cena impressionista, sem nítida linha narrativa, mas com “atmosfera” de
alguma ficção. E desemboca didática e poeticamente num belo desfecho contista.
O texto de Tolentino parte dum apontamento do “Dispensário
para Animais Doentes”, em Londres, que recorda, numa inscrição, todos os
animais que foram mortos na I Guerra Mundial (1914-1918). E refere a quantidade
enorme de burros que os ingleses importaram de África do Sul para, graças à sua
resistência (raramente adoecem), servirem na
guerra em transporte de armamento e víveres, dando relevo a um que, mesmo cego
mercê dum projétil que o atingiu, passava por entre feridos e mortos no cumprimento
da sua função. Igualmente
menciona do British Museum um achado sumério com dois painéis, sendo que um
representa o tempo de paz e o tempo de guerra. E, na parte do painel dedicado à
guerra, veem-se muitos carros puxados por burros.
Diz o
autor que “os burros estão associados historicamente às estações de pobreza e
aos pobres”. E, embora Alexandre Magno tenha sido escoltado por 64 burros magnificamente
ornamentados, de Babilónia a Alexandria, não foi num burro assim que Abraão
subiu ao monte Moriá, nem Maria e José viajaram para o Egito para salvar Jesus.
Por outro lado, o burro é utilizado nos trabalhos agrícolas e similares e em
transportes entre caminhos difíceis que só ele sabe abrir, resistindo a todo o tipo
de intempérie. E, após dar conta de que a Bíblia menciona 3594 vezes os
animais, sendo o primeiro a serpente (Génesis) e o último o cordeiro (Apocalipse), e depois de apresentar várias
referências bíblicas sobre o cuidado a ter com os animais, Tolentino, supõe que
o burro do presépio seria “um dos asnos anónimos do acampamento dos
pastores”, que terá ouvido com eles o anúncio angélico do nascimento do
Messias. Terá começado por se revolver a secundar a agitação e o cantar dos
pastores, mas depois deu conta de que sob as patas brilhava o rasto luminoso da
estrela que indicava o caminho para Belém e, quando os pastores chegaram à
gruta, o burro, que se lhes antecipara, já lá estava como figurante. Não obstante,
apesar da postura humilde de figurante e deitado, protegia com o calor do pelo
corporal a jovem parturiente e aquele filho que os esbugalhados olhos asininos não
cessavam de contemplar.
A propósito,
já atinámos com o caminho do Presépio, dispusemo-nos a servir de figurantes para
proteger o menino que vive no pobre e no doente e a contemplar o rosto de Jesus
onde Ele estiver? Ou queremos rebentar com a humidade e serviço e armar-nos em protagonistas
da criação do mundo e da sua redenção? Ou arriscamos a que o Natal passe sem o que
o topemos?
2019.11.14 – Louro
de Carvalho
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