quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Mais uma vez o Prémio LeYa não foi atribuído por falta de qualidade


É a terceira vez que o júri decidiu não atribuir este que é um dos maiores prémios literários da lusofonia – as outras duas foram em 2010 e em 2016 –, tendo o presidente do júri vindo a terreiro esclarecer que a decisão é tomada “independentemente do valor do prémio”.
Prémio LeYa ou Prémio LeYa de Romance foi instituído em 2008 pelo grupo editorial LeYa e a sua atribuição coroa um concurso que visa estimular a produção de obras inéditas de autores de todo o mundo de língua portuguesa e galardoar anualmente uma obra original da área do romance que não tenha sido anteriormente premiada. Trata-se de um dos prémios mais valiosos da literatura lusófona, com o valor de 100 mil euros para o autor da obra vencedora, a que acresce um contrato de publicação editorial.
As obras enviadas devem ser inéditas e assinadas pelo autor sob pseudónimo e enviadas em suporte digital e físico (papel formato A4) junto com outras informações acerca do escritor, clarificadas no regulamento do concurso. Precludido o prazo estabelecido para o envio de originais, um júri escolhido pelo grupo editorial LeYa e constituído por, pelo menos, sete destacadas figuras do mundo literário e cultural da língua portuguesa, analisará todas as obras e escolherá a que considerar melhor, fundamentando sempre a escolha feita. Caso, eventualmente, o júri considere que nenhuma obra tem qualidade, poderá optar por não atribuir o prémio.
O vencedor receberá a quantia de cem mil euros e a publicação do seu original, seja diretamente pelo grupo editorial LeYa, seja através duma das suas editoras, sendo posteriormente distribuído em todos os países de língua portuguesa. Em contra partida, o autor cede à LeYa o direito exclusivo de o explorar comercialmente sob todas as formas e em todas as modalidades pelo mundo inteiro.
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Pelas 17,30 horas do dia 29 de outubro, chegou por correio eletrónico às redações um comunicado oficial assinado em primeiro lugar pelo presidente do júri, o poeta Manuel Alegre, que ainda se encontrava, com os outros seis jurados, nas instalações do grupo LeYa, em Alfragide, nos arredores de Lisboa. Por esse comunicado tornava-se público conhecimento de que, este ano, o Prémio LeYa, o maior galardão lusófono para um romance inédito, correspondente a 100 mil euros e a um contrato de publicação num grupo editorial de grande escala, não tem vencedor, pois o júri deliberou por unanimidade que “as obras concorrentes não correspondem aos parâmetros de qualidade literária exigidos”. Foi a desilusão relativamente às expectativas de centenas de escritores, resultante dum veredicto concertado numa reunião de pouco mais de duas horas (A reunião tinha começado às 15 horas).
Estavam em concurso 409 originais provenientes de 14 países, mas só três chegaram à final e não convenceram os jurados. E as dúvidas vêm à tona e incidem sobre a eventual falta de mérito dos escritores concorrentes, sobre a cautela a ter na decisão em virtude do elevado valor do prémio, sobre a incerteza do êxito editorial da obra, ou mesmo sobre as perplexidades do júri.
Dificilmente se entende que em mais de 4 centenas de originais não se encontrasse um com o valor esperado. Pelos vistos, no meio literário sussurra-se que não haveria interesse, por parte da LeYa, em distinguir um autor de fraco potencial comercial, ainda que o romance deste fosse muito bom, pelo facto de o grupo empresarial pensar no retorno dos 100 mil euros, pois vê o montante como um adiantamento ao romancista vencedor, que terá o livro publicado e só recebe direitos de autor após a venda de 85 mil exemplares, patamar dificilmente atingível.
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O regulamento do prémio estabelece que o júri “delibera com total independência e em plena liberdade de critério, por maioria dos votos dos seus membros”, sendo a decisão “definitiva e não suscetível de apelo”. E prevê que, “se as obras concorrentes não apresentarem a qualidade exigida, o júri poderá deliberar não atribuir o prémio”, tendo sido esta a fundamentação para a deliberação em 2010, 2016 e 2019.
Se compararmos este com o Prémio Planeta, atribuído em Espanha, desde 1952, pela Editorial Planeta, da Catalunha – que em quase 70 anos de existência, nunca ficou por atribuir – e aberto a escritores de qualquer nacionalidade que apresentem romances inéditos escritos em espanhol, deveremos anotar que o montante deste ano foi de 601 mil euros, próximo dos 836 mil do Nobel da Literatura 2019. Todos os vencedores têm sido espanhóis ou de países hispânicos.
Antigos vencedores do Prémio LeYa reconhecem que é normal haver incertezas, porque os concorrentes e o público não têm acesso aos originais para poderem avaliar a respetiva qualidade. Tudo se baseia na credibilidade e confiança de que o júri é merecedor. Segundo os antigos galardoados, não há qualquer suspeita. E o grupo empresarial diz o mesmo. Com efeito, “o júri deste prémio não é um clube de amigos, as pessoas conhecem-se, mas têm total independência”. Ora, as dúvidas também se referem à fase em que o júri nem está em ação.
Atualmente o júri nomeado pelo grupo LeYa tem a seguinte composição: Manuel Alegre, que preside, Lourenço do Rosário (antigo reitor da Universidade Politécnica de Maputo), José Carlos Seabra Pereira (professor de literatura portuguesa na Universidade de Coimbra), Nuno Júdice (académico e escritor português), Ana Paula Tavares (académica e escritora angolana), Isabel Lucas (jornalista e crítica portuguesa) e Paulo Werneck (escritor e jornalista brasileiro). Alegre é um dos principais autores da Dom Quixote, editora integrada no grupo LeYa, mas os restantes são externos.
Não obstante a capacidade de crítica literária da parte dos jurados, o certo é que eles não leem cada um dos romances concorrentes: tomam a decisão com base numa shortlist que lhes é enviada. Nos termos do regulamento, uma “comissão formada por editores do grupo” LeYa “realizará a leitura de todas as obras admitidas a concurso”. Depois, “elaborará um relatório sobre cada uma dessas obras e selecionará as que considerar melhores, até um máximo de dez”.
Os romances candidatos têm obrigatoriamente pelo menos 200 mil carateres. São remetidos à LeYa até 30 de abril, em duas cópias em papel e uma em formato digital, sob pseudónimo. Com eles, é obrigatório seguir um envelope fechado onde constam documentos com dados pessoais que permitirão conhecer mais tarde a identidade do autor. E o regulamento é omisso sobre o momento em que esse envelope deve ser aberto: se durante a pré-seleção, se após a decisão do júri. No entanto, a interpretação vigente não possibilita enganos: tratando-se de um prémio para obra inédita e original sob pseudónimo do autor, decorre daí que o envelope só pode ser aberto no fim da primeira reunião do júri.
Com a predita comissão trabalha o secretário do Prémio LeYa, João Amaral, ex-presidente da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) e ex-diretor de edições gerais da LeYa. Pelo menos 20 editores do grupo (não são estagiários nem outros funcionários do grupo) são responsáveis pela leitura dos originais. Nem sempre os editores leem as propostas de ponta a ponta. Sendo pessoas experimentadas, podem rejeitar um romance após apreciarem negativamente alguns capítulos. E, em caso de dúvida, mandam o romance para o júri. Depois, os textos finalistas seguem para João Amaral com relatórios de leitura dos editores e são distribuídos pelos jurados. Para a decisão final, só há duas reuniões na sede da LeYa. A primeira costuma acontecer na véspera da cerimónia de entrega do prémio, num dia de outubro, das 15 às 19 horas. A segunda é no dia da cerimónia, às 9 da manhã, caso tenha havido vencedor.
Desta feita, houve só três finalistas, com os pseudónimos Carlos Cavalieri, Marco Gregorio e Diana Pena. Dificilmente se saberá algum dia a que pessoas correspondem.
A LeYa não faz comentários oficiais sobre a não atribuição do prémio e remete para o júri as explicações pertinentes.
Manuel Alegre declarou que “a possibilidade de não atribuição é, em si mesma, um instrumento fundamental para proteger o prestígio do prémio e salvaguardar o valor dos livros e dos autores premiados anteriormente e dos que futuramente hão de ser premiados”. E frisou que “atribuir o prémio a uma obra sem qualidade não contribuiria certamente para o prestígio do concurso”. Em suma, disse que os critérios de qualidade tidos em conta na análise dos originais são “a história, a estrutura da narrativa, a densidade das personagens e a qualidade da escrita”.
Questionado sobre se faltam bons ficcionistas em português, Manuel Alegre respondeu que “não sabemos” e acrescentou:
Sabemos, sim, que esses bons ficcionistas ou não concorreram a esta edição do prémio ou apresentaram obras sem qualidades suficientes para serem galardoadas”.
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Como ficou dito, o Prémio LeYa foi instituído em 2008 pelo grupo editorial do mesmo nome, sendo o “maior prémio literário para romances inéditos de todo o mundo de língua portuguesa”.
Monetariamente é o maior prémio literário da lusofonia, sendo inteiramente suportado pela LeYa, sem qualquer apoio público”, disse Manuel Alegre.
Por sua vez, o grupo LeYa, fundado em 2007 por Miguel Pais do Amaral, ex-patrão da TVI, é detido por Isaías Gomes Teixeira, Tiago de Morais Sarmento e Pedro Marques Guedes, além do fundo português de investimento Atena. É, a par da Porto Editora, um dos maiores grupos editoriais portugueses, com presença em Portugal, Brasil, Angola e Moçambique. Detém marcas notáveis e influentes, como a ASA, a Caminho, a Dom Quixote, a Oficina do Livro ou a Texto Editora e publica nomes como os de Lídia Jorge, Mário Cláudio ou António Lobo Antunes.
O ano de 2010 foi o primeiro em que o Prémio LeYa ficou por atribuir, tendo os responsáveis do grupo ficado surpreendidos. Com efeito, ao criar um prémio para distinguir um romance inédito, escrito por qualquer autor de qualquer país, desde que em língua portuguesa, a LeYa passou a deter os louros duma iniciativa prestigiante e uma fonte rica de originais. Mesmo os romances que ficam pelo caminho no processo concursal podem vir a ser publicados. Se o texto vencedor é dado à estampa tal como está (salvo a correção de gralhas), qualquer dos preteridos pode ser trabalhado pelos autores, com a ajuda dos editores e dar num romance publicável. E é aqui que encaixa a frase de Alegre: Qualidade para publicar não significa qualidade para ganhar”.
Seria quase impossível que nenhum escritor lusófono consagrado tivesse alguma vez concorrido em 12 edições do Prémio LeYa. Porém, pessoas com anos de carreira e reconhecidas qualidades de ficcionistas nunca o ganharam. Todos os distinguidos foram escritores mais ou menos iniciantes ou assim percecionados pelo público. Estão neste caso, por exemplo, Murilo Carvalho (2008), Nuno Camarneiro (2012), Gabriela Ruivo Trindade (2013), Afonso Reis Cabral (2014) ou Itamar Vieira Júnior (2018).
Um caso famoso referido no meio literário é o do ficcionista Mário de Carvalho, que concorreu a uma das primeiras edições sob pseudónimo e nem sequer foi escolhido para a shortlist. Mário de Carvalho já então pertencia ao catálogo da LeYa (através da Caminho), mas em 2012 mudou-se para a Porto Editora.
O facto pode ser interpretado como prova de ligeireza dos critérios de seleção do prémio, pois a falta de qualidade não se poderá apontar a um autor como este, a quem a APE (Associação Portuguesa de Escritores) atribuiu o seu “Grande Prémio de Romance, Conto e Teatro” pelo seu “Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde, de 1994. Contudo, o escritor entende que “os nomes do júri que têm vindo a lume são inatacáveis”. É uma postura de respeito.
A LeYa afirma que o prémio resulta duma prova cega para jurados e editores. Assim, o romance dum autor consagrado pode ser mau, pelo que não levará o prémio, mas também pode ser bom e não o recebe se concorre num ano em que um autor emergente tem melhor proposta (Aliás os bons não são sempre bons). Haverá mesmo autores consagrados que não concorrem por recearem entrar nesta dinâmica, preferindo apresentar-se a prémios em que o nome aparece no manuscrito ou no livro publicado, porque isso reduz o risco de preterição, dado o peso da assinatura.
Alguns autores têm dúvidas e autoexcluem-se do Prémio LeYa, convictos de que se sabe a meio do processo o nome dos concorrentes e creem não interessar à LeYa premiar escritores pouco comerciais ou ligados a editoras concorrentes. Porém, Manuel Alegre descarta quaisquer teorias da conspiração, mas refere que, “independentemente do valor do prémio, nenhum júri deseja consagrar um livro que não corresponda aos seus padrões de qualidade”. E acrescenta:
Em todos estes anos houve edições com vencedor e finalistas publicados, outras com vencedor e sem finalistas publicados e outros, ainda, sem vencedor e com finalistas publicados: ter qualidade para ser publicado não significa ter qualidade para ganhar o Prémio LeYa”.
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Face ao exposto, penso que a leitura dos romances concorrentes não deveria ficar a cargo dos editores da LeYa, pois dificilmente se desprenderão do intuito comercial podendo prejudicar o mérito literário qua tali. Além disso, a comissão indicada supra não deveria ser exclusivamente nem maioritariamente formada por editores do grupo LeYa. Porque não serem também alguns de outras editoras e pessoal não editor? E, apesar de tudo, não é de todo sensato selecionar um máximo de 10 obras para finalistas. Os jurados deveriam ter hipótese de ler mais romances (são sete elementos).
Acresce que o presidente do júri é um escritor e poeta presentemente conotado com o grupo LeYa. Ora, do meu ponto de vista, o júri deveria ser presidido por um académico não vinculado a qualquer editora para não haver margem para suspeitas.
De resto, também creio na honorabilidade e esforço de independência dos elementos do júri, mas não ponho de parte a prevalência do interesse comercial do grupo editorial, que afinal tem, pelos vistos, por sua conta a maior parte do trabalho de seleção. E, um prémio é instituído para ser atribuído, pelo que, só em último caso e com fundamentação inequívoca e dificilmente refutável, é que deveria ser não atribuído. Mas isto não passa de opinião minha.
2019.11.07 – Louro de Carvalho  

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