sábado, 16 de novembro de 2019

Tesouros da Igreja da Igreja e mestres em humanidade


Celebra-se no dia 17 de novembro, 33.º domingo do Tempo Comum, o III Dia Mundial dos Pobres, que o Papa dedicou ao tema “A esperança dos pobres jamais se frustrará”.
Recorde-se que o Dia Mundial dos Pobres, que Francisco instituiu, é fruto do Jubileu Extraordinário da Misericórdia e se realiza no domingo anterior ao da Solenidade de Cristo Rei.
O Sumo Pontífice, na sua mensagem para este dia, mostra-nos, a partir da Oração do Salmo 9, a via do nosso compromisso como sinal concreto na realização da Esperança Cristã. E os instrumentos da Esperança são postos principalmente na consolação que exprime a proximidade de toda a pessoa a quem se encontra em situação de pobreza. Com efeito, o Salmo 9 é um ato pessoal de agradecimento dirigido a Deus, protetor dos pobres e humildes, apresentado como protetor do salmista pobre e oprimido, a quem a justiça de Deus dá coragem para enfrentar o mundo de pagãos, iníquos, ímpios, inimigos, opressores… E, no Salmo 10 (também um ato pessoal de ação de graças: os Salmos 9 e 10 devem ter constituído inicialmente um só), a proteção do Senhor estende-se aos indefesos, infelizes, inocentes, miseráveis, vítimas de toda a espécie de prepotências.
A mensagem papal, difundida a 13 de junho, desenrola-se em duas vertentes principais: a evocação das novas formas de pobreza que patentes diariamente aos nossos olhos; e a ação concreta dos que podem oferecer esperança através do seu testemunho. Ora,  porque o pobre não será esquecido eternamente, nem para sempre se há de perder a esperança dos infelizes, o salmista pede ao Senhor que julgue as nações na sua divina presença, faça com que os homens O temam e lhes faça saber que são simples mortais (cf Sl 9,20-21). E o Santo Padre faz o paralelo entre a sorte do pobre no tempo do salmista e a atual e, notando que pouco mudou, diz:
Passam os séculos, mas permanece imutável a condição de ricos e pobres, como se a experiência da história não ensinasse nada. Assim, as palavras do salmo não dizem respeito ao passado, mas ao nosso presente submetido ao juízo de Deus.”.
Menciona as “muitas formas de novas escravidões”, como: famílias obrigadas a deixar a sua terra; órfãos que perderam os pais; jovens em busca de realização profissional; vítimas de tantas formas de violência, da prostituição à droga; milhões de migrantes instrumentalizados para uso político. E fala das periferias das cidades, repletas de pessoas que vagueiam pelas ruas em busca de alimento, tornadas elas próprias parte duma lixeira humana e sendo tratadas como lixo, “sem que isto provoque qualquer sentido de culpa em quantos são cúmplices”, se não autores deste escândalo. Não obstante a descrição de injustiça e sofrimento no salmo, há uma definição do pobre: é quem “confia no Senhor” (cf 9, 11), pois tem a certeza de que nunca será abandonado.
Por isso, segundo o Sumo Pontífice, “o grito dos pobres torna-se mais forte a cada dia”, mas “a cada dia é menos ouvido, porque abafado pelo barulho de poucos ricos, que são sempre menos e sempre mais ricos”. Porém, como “na Escritura, o pobre é o homem da confiança”, como escreve o Papa, “é precisamente esta confiança no Senhor, esta certeza de não ser abandonado, que convida o pobre à esperança”, pois “sabe que Deus não o pode abandonar”.
Por ocasião deste Dia Mundial, Francisco não pede só iniciativas de assistência, mas faz votos de que aumente em cada um a atenção plena que é devida a toda a pessoa que se encontra em dificuldade. E, enaltecendo o trabalho de inúmeros voluntários pelo mundo, recorda que os pobres não precisam somente duma “sopa quente ou duma sanduíche”. Precisam das nossas mãos para se reerguerem, dos nossos corações para sentirem de novo o calor do afeto, da nossa presença para superar a solidão. “Precisam simplesmente de amor...”.
Agora, numa mensagem enviada, a 15 de novembro, aos peregrinos da associação “Fratello” reunidos no Santuário de Lourdes (França), por ocasião do III Dia Mundial dos Pobres, Francisco diz que precisa deles, de cada um deles, garantindo:
Vós que estais aos pés da cruz, talvez sozinhos, isolados, abandonados, sem abrigo, forçados a abandonar a vossa família ou o vosso país, vítimas do álcool, da prostituição, da doença, ficai cientes de que Deus vos ama. Deus escuta em particular a vossa oração. O mundo sofre e a vossa oração comove o Senhor.”.
Numa ação concreta, nesta semana de preparação para o Dia Mundial do Pobre, como já ocorreu no ano passado, voltou à Praça São Pedro o Posto de Saúde para atender os pobres e necessitados. Foram disponibilizadas consultas médicas com especialistas, cuidados especiais, análises clínicas e outros exames específicos – tudo gratuito e oferecido a pessoas que têm normalmente dificuldade de acesso a este tipo de serviço. O Posto fica aberto domingo, dia 17, quando o Papa celebra a Santa Missa na Basílica vaticana.
Na homilia da Missa do ano passado, Francisco lembrou que “o grito dos pobres se torna mais forte a cada dia e a cada dia é menos ouvido, porque abafado pelo barulho de poucos ricos que são sempre menos e sempre mais ricos”. Desta vez, na sua mensagem aos peregrinos reunidos em Lourdes, disse que são “pequenos, pobres, frágeis”, mas “são o tesouro da Igreja”: estão no coração do Papa, no coração de Maria, no coração de Deus. E porfiou:
O amor salva o mundo e Deus quer passar através de nós para salvar o mundo. Dizei ao mundo qual é o vosso tesouro, ‘Jesus’. O Papa ama-vos e confia em vós.”.
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O mau tempo de Roma, na tarde do dia 15, não impediu Francisco de se deslocar à Praça de São Pedro. Chegou de surpresa ao Posto de Saúde instalado no local desde o início da semana, que atende gratuitamente os pobres e mais necessitados. Quem estava em exames naquele momento sentiu-se privilegiado por encontrar o Papa que, em seguida, inaugurou um novo Centro de Acolhimento diurno e noturno para moradores de rua.
Desde o início da semana, 8 ambulatórios atendem gratuitamente no local os pobres e mais necessitados, por ocasião do III Dia Mundial dos Pobres.
A visita-surpresa (no âmbito das Sextas-Feiras da Misericórdia do Papa Francisco) a este “hospital temporâneo” foi emocionante sobretudo para quem estava no local na hora em que o Pontífice chegou (pouco depois das 16 horas), acolhido com calorosos aplausos e querendo todos saudá-lo e abraça-lo. O Papa estava acompanhado de Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, que apresentou ao Pontífice os médicos, enfermeiros e voluntários que trabalham nos 8 ambulatórios. Francisco ficou muito satisfeito com a estrutura montada para oferecer um verdadeiro serviço de emergência. Recebeu palavras de agradecimento da parte dos profissionais sanitários que realizam um trabalho voluntário, inclusive alguns que decidiram antecipar o gozo de dias de férias para poderem compartilhar a experiência em prol de tantos necessitados. Fez uma breve oração, saudou todos os presentes e concluiu a visita-surpresa no meio de muita gratidão e alegria dentro do Posto de Saúde.
Centenas de pobres estão efetivamente a usufruir todos os dias dos serviços especializados, disponíveis aos pobres até domingo, no seguimento da orientação da Associação Nacional dos Médicos Genéricos, com o auxílio das enfermeiras da Cruz Vermelha.
Depois de visitar o Posto de Saúde, o Papa inaugurou o Centro de Acolhimento para moradores de rua que vai atender tanto de dia como de noite no Palácio Migliori. O edifício do Vaticano de 4 andares, dotado dum elevador para facilitar o acesso de idosos e pessoas com algum tipo de deficiência, foi construído em 1800 e fica a poucos metros da Colunata da Praça de São Pedro. O local, confiado à Elemosineria Apostólica, tem capacidade para receber 50 pessoas e será administrado pela Comunidade de Santo Egídio, uma organização italiana não-governamental.
Francisco foi acolhido pelo cardeal Konrad Krajewski, esmoleiro do Papa, que o conduziu a uma breve visita ao local, inclusive à capela do Centro de Acolhimento dedicada a São Jorge. “A beleza cura” – exclamou Francisco ao contemplar os ambientes bem decorados. Depois, visitou os andares dedicados aos quartos e ao refeitório, onde aproveitou para fazer um lanche com algumas pessoas que vivem no local e também com voluntários – entre eles, alguns que moravam pela estrada e que agora encontraram um trabalho e uma renda estável e se empenham como voluntários na estrutura.
Durante o breve encontro com eles, o Papa falou da cultura do descarte e da necessidade de recuperar um sentido de responsabilidade pelos pobres. Escutou a história de vida dos voluntários, que há muitos anos levam o jantar a quem vive pela estrada, e as dificuldades enfrentadas para organizar os funerais deles. E lembrou que, quando era jovem, tinha o hábito de deixar um prato pronto durante as refeições, especialmente nos dias de festa, para quem precisasse. Dessa forma, o Pontífice mostrava a necessidade de “educar os jovens à compaixão”.
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O Papa insiste em chamar aos pobres o tesouro da Igreja e em dizer que conta com eles. Está na linha do diácono São Lourenço, que intimado por ordem do Imperador, devido à calúnia de que os cristãos eram um grupo social muito rico, a apresentar todos os tesouros da Igreja, apresentou uma caterva de pobres. Mas Francisco, além de professar a convicção numa Igreja que só o será se for predominantemente e preferencialmente dos pobres, quererá contar com a voz e o protagonismo dos pobres para imprimir a constante reforma da sociedade, obnubilando os esforços contra dos detratores. Dito de outro modo, o Pontífice não considera o encargo eclesial com os pobres uma despesa, um fardo, mas um investimento. E um investimento nos pobres tem sempre retorno. Quando não for outro, o retorno será a recuperação da dignidade humana refeita e reconhecida e a certeza da utilidade social da pessoa humana para a ação comunitária, bem como a disponibilidade para a cooperação nas grandes causas.  
E não posso deixar de fazer breve referência à crónica de Tolentino Mendonça na Revista do Expresso de hoje, em que chama aos pobres “mestres de humanidade”, em discreto alinhamento com o Papa. Fala sobretudo dos sem-abrigo, que entram na rua por diversas razões de desconstrução e que regressam só quando alguém lhes desperta a chama da confiança em si mesmos, pois “os pobres não são dados estatísticas nem abstrações”, mas “seres humanos que precisam de outros seres humanos”. Vinca a obrigação do Estado, como a nossa (pessoal) e a da comunidade, podemos aprender muito com os voluntários que tratam deles e que os pobres têm direito a ocupar o espaço público contra uma arquitetura hostil que quer desembaraçar-se deles. Censura que os cúmplices de situações de miséria ou quaisquer outros os tratem como ameaçadores, incapazes ou lixo. E diz que, “se abrirmos os olhos e o coração, os pobres tornam-se nossos mestres de humanidade”. E nada como um exemplo pessoal: olhando do seu apartamento para uma praça que lhe parecia “um lugar desarrumado, anódino, cheio de entraves”, demorou-se a falar com um romeno que dorme numa das arcadas. Ao perguntar-lhe o que achava da Praça, ouviu: “Esta praça é a minha família”. E o homem nomeou, um por um, os seus residentes. Num mundo cujos moradores não se conhecem nem se saúdam, boa lição!  
2019.11.16 – Louro de Carvalho

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