domingo, 17 de novembro de 2019

“Falar de raças, do ponto de vista genético, não tem sentido”


Quem o assegura é o geneticista, conferencista e escritor britânico (divulgador de ciência) Adam Rutherford, que veio a Lisboa participar na conferência Ciência e Universo, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e para apresentar o seu livro Uma Breve História de Todas as Pessoas que já Viveram (edição: Desassossego, outubro de 2019) – um olhar sobre a humanidade a partir da genética, com muitas histórias à mistura.
Segundo a crítica, o livro é uma introdução brilhante, surpreendente e cativante à genética humana, uma história sobre cada pessoa, a história de quem é e de como se tornou quem é, a única para cada um dos 100 mil milhões de seres humanos que já viveram e também a nossa história coletiva, porque “em cada um dos nossos genomas transportamos a história da nossa espécie – nascimentos, mortes, doença, guerra, fome, migração e sexo, muito sexo”. Em viagem cativante pela expansão da genética, Rutherford revela o que nos dizem os nossos genes sobre a história humana e o que a história nos pode dizer sobre os nossos genes. Dos Neandertais ao homicídio, dos ruivos à raça, dos reis às pragas, da evolução à epigenética, este é um retrato desmistificador e esclarecedor de quem somos e de como nos tornámos no que somos.
Em entrevista ao DN, conduzida e registada por Filomena Naves a 16 de novembro, o cientista fala do que a genética nos conta sobre nós e como a ciência ajuda a pôr em causa preconceitos e ideias feitas, como os da raça.
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Começa por advertir queainda estamos só a arranhar a superfície das coisas na genética”, pois “não sabemos o que faz a maioria dos genes”. Fazemos leve ideia de como genes produzem os nossos corpos mas, sabemos menos de “como constroem as nossas personalidades e comportamentos”. Enfim, só conseguimos retirar dos nossos genes “uma pequeníssima porção do que lá está contido”. Com efeito, “só conhecemos a molécula do ADN há 50 anos e só temos a compreensão de como funciona, de forma mais sofisticada, há 20”.  
Para exemplificar que “há ainda tudo para aprender”, aborda o tema da interação dos genes com o ambiente. Diz que “somos um produto do nosso genoma que herdamos dos nossos pais e que está nas nossas células” e, avisando que “isso não é o nosso destino”, explica:
O que nos trouxe até onde estamos agora, a falar um com o outro, foi a forma como o nosso ADN interage com o resto do universo. (…) As nossas personalidades e comportamentos são influenciados pela genética, e nós não sabemos como isso funciona. Não sabemos muitas vezes como funcionam os genes nas doenças. Sabemos que os cancros são doenças genéticas, mas não sabemos como a maior parte deles funciona. Até em coisas mais simples, como a cor dos olhos, que é ensinada nas escolas. Há um gene para olhos castanhos e quem tem uma versão diferente tem olhos azuis. Na verdade, não compreendemos como isso acontece.”.
Tendo-lhe sido solicitado que especificasse “o que não entendemos exatamente”, explana:
Não sabemos como os genes, que são sucessões de letras de um código, se traduzem na cor. Não conseguimos prever com muito rigor de que cor vão ser os olhos dum bebé. E a razão para isso é que a genética tem que ver com probabilidades e não com destino.”.
Na verdade, duas pessoas podem ter a mesma versão do gene para a cor dos olhos e podem ter os olhos de cor diferente; e não se sabe porque é assim.
Há muitas formas diferentes para fazer estes estudos. Uma delas consiste na recolha de muitos dados, pois “os dados em genética são os genomas, que nos dão informações sobre a pessoa e os seus antepassados, sobre probabilidades de determinadas doenças”. E comparar dois genomas dá muito mais informação que um só um genoma. E, “se tivermos os genomas de toda a gente, o que é inimaginável”, teremos “muito mais informação para comparar”.
Ao ser-lhe anotado que diz no livro que a ciência devia estudar os genomas de toda a gente, reitera-o, mas aconselhando prudência, porque “não temos gente suficiente para processar a quantidade de dados que isso implica”. E sustenta:
Cientificamente gostaria de ter todos os genomas para estudar, mas não temos resolvidos os problemas em termos de privacidade, de segurança dos dados ou de como essa informação poderia ser mal utilizada, vendida, etc. Tudo isso está ainda no Oeste Selvagem da nossa legislação e do nosso conhecimento.”.
Cita uma personagem de um dos grandes filmes sobre questões da genética, o Parque Jurássico [Steven Spielberg, 1993], que diz isto: “O ADN é a coisa mais poderosa que já existiu e vós tratai-lo como um miúdo que encontrou a arma do pai”. E confessa:
Faço o que faço para ajudar as pessoas a estarem mais bem informadas sobre genética e sobre o que o ADN de facto significa, para que possamos ter um diálogo sensato sobre que tipo de investigação devemos fazer nesta área e como devemos criar e respeitar a privacidade das pessoas e manter as bases de dados de genomas em segurança.”.
Interroga-se se “devemos fazer testes de ADN para conhecer os nossos antepassados, mas sem saber para onde vão os nossos dados”. E, em resposta, refere que não lhe compete dizer às pessoas o que devem ou não fazer, mas que pode explicar o que isso implica. Mais diz ter feito mais que um teste, mas por razões profissionais, de contrário, não o teria feito, porque “não há nada que nos possam dizer [com os testes] que não diriam olhando para nós”. Trata-se apenas de probabilidades. E acusa os racistas que defendem a supremacia branca de estarem a usar muito os testes genéticos, obcecados que estão com a genética, por suporem que ela mostrará que têm pureza racial. Mas “ isso não existe”.
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Aqui apetece recordar o poema “Lágrima de Preta”, de António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho, professor de Físico-Química no ensino secundário, poeta, pedagogo, investigador da História da Ciência em Portugal e divulgador de ciência):
Lágrima de Preta
Encontrei uma preta
Que estava a chorar,
Pedi-lhe uma lágrima
Para a analisar.

Recolhi a lágrima
Com todo o cuidado
Num tubo de ensaio
Bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
Do outro e de frente:
Tinha um ar de gota
Muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
As bases e os sais,
As drogas usadas
Em casos que tais.
Ensaiei a frio,
Experimentei ao lume,
De todas as vezes
Deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
Nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
E cloreto de sódio

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Sobre o facto de a descodificação do genoma humano ter mostrado que o conceito de raça não existe do ponto de vista genético, o cientista apelou à necessidade de a linguagem aqui ter de ser muito específica. De facto, não tendo reflexo na genética o modo como falamos de raça, então a raça “é uma construção social”, ou seja, a raça existe porque nós decidimos que existe. E Rutherford sustenta que os conceitos de raça que hoje usamos foram inventados no século XVII pelos exploradores britânicos, espanhóis e portugueses. Mas a genética mostra que isso não faz sentido do ponto de vista biológico. E especifica:
Dizemos ‘as pessoas negras’, mas hoje sabemos que há mais diferenças entre os genomas das pessoas que vivem em África do que nas pessoas de todo o resto do mundo. E também sabemos, e esta é uma informação muito recente, que há mais variações na cor da pele na população de África do que na do resto do mundo. E, no entanto, falamos das pessoas negras. Não tem qualquer sentido do ponto de vista científico, do ponto de vista genético.”.
Porém, ressalva que, do ponto de vista social, isso ajuda a categorizar as pessoas. E as pessoas negras categorizam-se a si próprias como tal, especialmente nos EUA onde o conhecimento dos antepassados se perdeu em razão da escravatura. Não sabem donde vieram os antepassados, porque não há registos: foram levados à força. Nesse aspeto pode ser útil, para definir quem são os antepassados, mas, do ponto de vista genético, dizer que alguém é negro não tem significado.
Não obstante a questão das raças, dependendo do contexto social pode ter aspetos perigosos. Com efeito, a genética é constantemente instrumentalizada pelos supremacistas brancos e vê-se mais isso agora que antes. Basta passar algum tempo em chatrooms de supremacistas brancos. E este cientista passa muito tempo nissopara monitorizar as conversas que ali há sobre genética e raça e as visões sobre isso das pessoas que os frequentam, porque estão frequentemente obcecadas com a raça e a pureza racial e usam os testes genéticos para tentar demonstrar a sua pureza racial”. É o abuso da genética para promover uma ideologia. “São sobretudo pessoas dos Estados Unidos e da Europa Ocidental e este é um fenómeno real” – diz.
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Sobre este tema escreveu o livro How to Argue with a Racist, a publicar em fevereiro no Reino Unido. E, questionado se sentiu a necessidade de falar mais em pormenor, declarou:
Sou um cientista e lido com pessoas e a sua variabilidade genética. A genética humana é uma área que historicamente está intimamente ligada à ideia de eugenia e de raça. A antropologia emergiu da expansão europeia e a genética emergiu da antropologia, estudando as diferenças entre as pessoas no mundo.”.
Mas precisa que a eugenia foi fundada pelo cientista britânico Francis Galton (1822-1912), em cujo laboratório trabalhou três gerações depois dele e que foi desmentida pela genética, que Galton ajudou a fundar, “mostrando que a raça é uma construção social”. E assegura:
Esse é o poder da ciência: o conhecimento destrói os preconceitos. A minha motivação para escrever sobre a questão das raças é mostrar que não é possível usar a ciência para justificar as raças.”.
Espera que a mensagem passe facilmente, embora isso dependa dos leitores. Testemunha a sua motivação para escrever sobre o tema ligado aos estereótipos que criamos, mesmo não sendo racistas. E aponta o desporto como fonte de estereótipos. E exemplifica:
Quando olhamos para uma final olímpica de cem metros e a velocidade e vemos que todos os atletas são negros afro-americanos ou jamaicanos, parece que estamos perante uma questão de biologia. Mas essa visão é produto de um estereótipo, porque há outras questões envolvidas como as socioeconómicas e ambientais. (…) A perspetiva da ciência ao constatar esse facto é que isso é o ponto de partida para fazer perguntas.”.
Também refere que a sexualidade se evidencia como fonte de estereótipos. Há, como diz, “uma fetichização dos corpos dos negros, tal como no desporto, mas não há correspondência com os dados científicos de que dispomos”.
Confirma que é preciso olhar para lá dos estereótipos e que a ciência o está a fazer, embora não de “uma forma perfeita”, pois a genética, sendo “só uma parte para podermos compreender estes fenómenos, funciona melhor quando integramos a ciência, a história e os estudos culturais”.
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Sendo-lhe perguntado como se tornou comunicador de ciência, diz que “não foi planeado”, mas descobrira que “era melhor a falar de ciência do que a fazê-la”. E conta:
Fui descobrindo uma voz para falar das complexidades da genética de uma forma acessível ao público, o que é realmente muito difícil. (…) Mas é importante porque é um tema muitas vezes mal compreendido, ou mal utilizado, e há um grande espaço para pegar no que os investigadores fazem, usando a matemática, a estatística e a biologia molecular, e traduzir isso em algo que é importante para vida do dia-a-dia.”.
E, dado que, por um lado, “a genética é o estudo de famílias e de sexo e toda a gente está interessada em família e sexo” e, por outro, os cientistas tornam “isso muito técnico para tentar entender como funciona” e Rutherford diz que transforma isso “em histórias” e as conta, pois “todos os seres humanos gostam de contar e ouvir histórias” (assegura que as suas são verdadeiras).
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Aqui se espelha quão mal avisados estavam os cientistas do círculo de Hitler (entre os quais o português José Ayres Azevedo Barreto) ao sustentarem a origem biológica da raça judia e, nessa base, a fundamento da sua postergação, o que redundou num terrificante genocídio. Parce, Domine!
2019.11.17 – Louro de Carvalho

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