Na homilia
da missa das 12 horas do 31.º domingo do Tempo Comum no Ano C, na igreja dos
Passionistas, em Santa Maria da Feira, o Padre Porfírio Sá comentava o
Evangelho assumido para a Liturgia da Palavra que narra a história do encontro
de Jesus com Zaqueu (Lc 19,1-10) e, ao
falar do encontro destas duas personagens, sublinhava que não foi Zaqueu quem
tomou a iniciativa de falar a Jesus e convidá-lo a ir a sua casa, mas que foi
Jesus quem olhou para Zaqueu e lhe disse: “Zaqueu,
desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa”.
Referia o sacerdote passionista que Jesus falou como se fosse
devedor para com Zaqueu e não como credor. E, ao entrar em casa de Zaqueu, não
aproveitou a oportunidade para lhe dar um forte puxão de orelhas, pôr toda vida
do pecador em evidência ou pregar-lhe um incontornável e solene sermão. Não, o
Mestre dos mestres utilizou o seu olhar de empatia e misericórdia.
Zaqueu vivia em Jericó, o oásis situado nas margens do mar
Morto, a cerca de 34 quilómetros de Jerusalém. Era a última etapa dos
peregrinos que, da Pereia e da Galileia, se dirigiam a Jerusalém para as
grandes festividades (o “caminho de
Jerusalém”, que Jesus vem a percorrer, segundo Lucas, está a chegar ao fim). Jericó uma cidade
próspera (sobretudo graças à produção de palmeiras
e bálsamo), com grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, e seu filho Arquelau, que
fizeram desta cidade a sua residência de inverno). Sita em lugar privilegiado de importante
rota comercial, era espaço de oportunidades e grandes negócios (e de negócios “duvidosos”).
Segundo
Flávio Josefo, Jericó possuía um importante polo de produção de palmeiras e
bosques de bálsamo. E o unguento derivado deste bálsamo de Jericó era muito
desejado na época. Isto significa que aquela área era uma fonte muito
significativa de impostos, uma das três principais coletorias de impostos da
Palestina, e Zaqueu era um dos principais responsáveis por essa arrecadação.
O nome hebraico de Zankkaîos
(Zaqueu) é contração de Zacarias, a significar “aquele de quem Yahweh se lembra” ou “aquele que
é justo” (o antípoda da vida que levava). E ele era um
“chefe de publicanos”, portanto, um homem que o judaísmo considerava um pecador
público, um explorador dos pobres, um colaboracionista ao serviço dos
opressores romanos e, portanto, um excluído da comunidade da salvação. Como os
demais publicanos servia-se do cargo para enriquecer de modo ilícito (exigia impostos muito acima do fixado pelos romanos e arrecadava
para si a diferença). E, se os publicanos eram considerados ladrões, então o
chefe seria um superladrão.
A designação
de “chefe de publicanos” traduz o grego arkhitelónês e indica
que ele era um subcontratante de outros coletores. Portanto, tinha a supervisão
de alguns responsáveis por arrecadar os impostos indiretos para o império
romano, pelo que era um homem importante, uma pessoa proeminente na região. Por
isso, o texto bíblico completa a informação dizendo que era um homem rico. Era, pois, um
pecador público sem hipótese de perdão, excluído do convívio com as pessoas
decentes e sérias, um marginal, considerado amaldiçoado por Deus e desprezado
pelos homens. A sua pequena estatura – mais que indicação de caráter físico –
pode significar a sua pequenez e insignificância do ponto de vista sociomoral.
Porém, este pecador procurava ver Jesus. Ora, este ver indicará aqui mais do que a simples curiosidade:
a procura, a vontade firme de encontro com algo novo, talvez o desejo de fazer
parte dessa comunidade de salvação que Jesus anunciava. Entretanto, o Mestre parecer-lhe-ia distante e inacessível, rodeado dos
“puros” e “santos” que desprezavam os marginais. O subir “a um sicómoro” indica
o desejo de encontro com Jesus, desse por onde desse, muito mais forte do que o
medo do ridículo ou das vaias da multidão.
Jesus lança o olhar para o homem que espreita o Mestre do
meio dos ramos do sicómoro. E incute o seu interesse em entrar em comunhão com
Ele, estabelecer laços de familiaridade. Parece, em quadro escandaloso, esquecer-se
dos “puros” que O rodeiam e O escutam, que agora ficam como que suspensos à
espera do que vai acontecer naquela casa de pecador e marginal.
É a concretização do “deixar as noventa e nove ovelhas para
ir à procura da que estava perdida”. É o espelho da fragilidade do coração de
Deus que, ante o pecador que busca a salvação, deixa tudo para ir ao seu
encontro.
Obviamente a multidão reage murmurando: “Foi hospedar-se em casa de um pecador”. É a postura de quem se
considera “justo” e despreza os outros, de quem vive das suas certezas, de quem
está convicto de que a lógica de Deus é a lógica de castigo, marginalização,
exclusão. No entanto, Jesus mostra que a lógica de Deus é diferente da lógica
dos homens e que a oferta de salvação que Deus faz não exclui nem marginaliza
ninguém; é mesmo para todos.
Tudo termina com um banquete, onde está Zaqueu, o chefe dos
publicanos, que simboliza o “banquete do Reino”. Assim, Jesus mostra que os
pecadores têm lugar no “banquete do Reino”, que Deus os ama, que quer integrá-los
na sua família e estabelecer com eles laços de comunhão e de amor. Jesus mostra
que Deus não exclui nem marginaliza nenhum dos seus filhos – mesmo os pecadores
– mas a todos oferece a salvação.
Dizia
o Padre Porfírio Sá que não houve da parte do hospedeiro do Senhor um formal
ato de contrição, uma demonstração, por palavras, do arrependimento que se
exige. Mas a troca de olhares iniciada por Jesus provocou as condições de
aceitação do Reino, da conversão: dar metade dos bens aos pobres e restituir o
quádruplo de quanto terá roubado. E Zaqueu, feita a experiência do amor de Deus, acolhe
o dom de Deus, converte-se ao amor, torna-se generoso. A repartição dos bens
pelos pobres e a restituição de tudo o que foi roubado em quádruplo, vai muito
além do que a lei judaica exigia; é sinal da transformação do coração. O amor
de Deus não se derramou sobre Zaqueu depois de ele ter mudado de vida, mas foi
o amor de Deus – que Zaqueu experimentou quando ainda era pecador – que
provocou a conversão e que converteu o egoísmo em generosidade e levou o
pecador a seguir Jesus. Assim se conclui que só a lógica do amor pode
transformar o mundo e os corações dos homens.
É
interessante notar que, apesar da ansiedade de Zaqueu em querer ver Jesus, ele
parece ter ficado surpreendido pelo facto de a iniciativa do contacto entre
eles ter partido do próprio Senhor, e não dele. Isto sugere que Zaqueu desejava
vê-Lo, mas era Jesus quem estava à procura dele. Além disso, Jesus não pediu
permissão a Zaqueu para entrar e permanecer em sua casa. E este também não
propôs uma possibilidade de encontro. Literalmente o Senhor simplesmente
disse: “hoje eu vou ficar em sua casa”.
Face à
atitude de Jesus, a multidão começou a reclamar. Ficaram indignados porque
Jesus havia dito que visitaria a casa de Zaqueu e não a de outrem. Os judeus
odiavam os publicanos: e agora emergiu a inveja à mistura com o ódio. Consideravam
os coletores de impostos como ladrões, extorquidores e traidores. Mas Jesus
havia decidido ficar na casa do principal desses coletores, pois estava em
busca de um dos homens mais detestados da cidade, pois todos têm lugar no Reino
de Deus.
No encontro
com Jesus, Zaqueu demonstrou realmente um arrependimento genuíno, que não ficou
na teoria ou em palavras vazias. Revelou o arrependimento na prática ao
declarar a doação aos pobres. Não estava a tentar obter a salvação com as boas
obras, mas a entregar diante de Jesus a sua oferta de ação de graças. Mas não
parou neste ponto: comprometeu-se ainda a devolver em quádruplo qualquer
quantia com que tivesse defraudado alguém.
Normalmente
a Lei Mosaica exigia que numa restituição fosse acrescentado um quinto do valor
como um tipo de juros (Lv 6,1-5; Nm 5,7). Zaqueu,
no entanto, decidiu fazer ainda mais do que isso. Não ofereceu um quinto de
acréscimo na restituição, mas quatro vezes mais.
Considerando
o facto de ter doado metade dos seus bens aos pobres e de ter declarado na
presença de todos uma restituição tão generosa, é de inferir que Zaqueu tinha
sido desonesto ao longo da sua vida. Direta ou indiretamente, o chefe dos
cobradores de impostos havia permitido e também feito uma cobrança excessiva.
Muitos tentam
provar que Zaqueu não teria sido um extorquidor, como se Cristo não pudesse
jamais ter olhado para um corrupto. Todavia, o contexto da história de Zaqueu
aponta noutra direção. Naquele dia, Jesus mostrou compaixão para com alguém que
certamente não a merecia. É caso parecido com o da eleição de Mateus para o
seguimento de Jesus, como se lê em Mateus:
“Partindo dali, Jesus viu um homem chamado
Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: ‘Segue-me!’ E ele
levantou-se e seguiu-O.
“Encontrando-se Jesus à mesa em sua casa, numerosos
cobradores de impostos e outros pecadores vieram e sentaram-se com Ele e os seus
discípulos. Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: ‘Porque é que o
vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?’
“Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: ‘Não são os que têm
saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender
o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu
não vim chamar os justos, mas os pecadores’.” (Mt 9,9).
Zaqueu pôde
ouvir de Jesus as doces palavras: “Hoje
a salvação entrou nesta casa, porque até este homem é um filho de Abraão” (Lc 19,9). Jesus não disse que havia entrado na casa de Zaqueu
um mero conforto, uma alegria superficial ou uma prosperidade terrena e
passageira. Foi claro ao dizer que a salvação, não menos que isto, havia
entrado naquela casa. Zaqueu e as demais pessoas daquele lar estavam diante da
maior bênção que poderiam receber.
Consequentemente,
Jesus declarou que Zaqueu era filho de Abraão. Obviamente o objetivo de Jesus
não era dizer que o publicano era um descendente biológico do
grande patriarca (não podia ser). Mas, ao
dizer que também ele era um filho de Abraão, vincava o sentido espiritual. Zaqueu
estava a juntar-se, pela fé no Filho de Deus, à verdadeira descendência de
Abraão (cf GL 3,9.29).
A história
termina com a confirmação por parte de Jesus de que havia sido Ele quem
encontrou o chefe dos publicanos, e não o contrário. Ele disse: “Porque o Filho do homem veio buscar
e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Jesus buscou, encontrou e salvou Zaqueu. O Bom
Pastor encontrou uma das suas ovelhas perdidas (Lc 15,1-7). Poucos dias depois, Aquele a quem Zaqueu recebeu em
casa, derramaria o seu sangue e entregaria a sua vida também em seu favor.
***
Também o Papa Francisco comentou esta perícopa
evangélica antes da recitação do Angelus
com os fiéis e peregrinos concentrados na Praça de São Pedro. E, exortando a
que, a exemplo de Zaqueu, nos deixemos converter pelo olhar misericordioso de
Jesus, observou:
“Quem nunca se sentiu procurado pela misericórdia de Deus tem
dificuldade em compreender a extraordinária grandeza dos gestos e palavras com que
Jesus se aproxima de Zaqueu”.
E, ao concluir
a sua alocução, pediu que a Virgem Maria obtenha para nós a graça de sempre
sentirmos sobre nós o olhar misericordioso de Jesus, para então, com
misericórdia, irmos ao encontro dos que praticam o mal. Com efeito, como
referiu, “o desprezo e o fechamento em
relação ao pecador não fazem senão isolá-lo e endurecê-lo no mal que ele faz
contra si e contra a comunidade”.
O fio
condutor da reflexão papal foi a conversão de Zaqueu, que muda radicalmente de
mentalidade pela atenção e acolhimento que recebe de Jesus e que, ao encontrar
o Amor e descobrir que é amado, se torna capaz de amar os outros, restituindo
quatro vezes mais a quem havia prejudicado. Diz o Pontífice que este chefe de
“publicanos”, isto é, dos judeus cobradores de impostos “era rico não devido a
ganhos honestos, mas por exigir a gratificação adicional (Como o império lhes pagava mal, eles cobravam em
excesso), o que
aumentava o desprezo por ele”. Mas, ao saber da passagem de Jesus por ali, fica
curioso em ver quem era Ele, pois ouvira dizer coisas extraordinárias a
seu respeito. Sendo de baixa estatura, sobe a uma árvore. Mas é Jesus quem,
entre tantos rostos que o cercavam, “olha para cima e o vê”. E diz o Papa:
“Isso é importante: o primeiro
olhar não é de Zaqueu, mas de Jesus, que entre os muitos rostos que o cercam,
procura exatamente aquele. O olhar misericordioso do Senhor alcança-nos antes
mesmo que nós percebamos que temos necessidade de sermos salvos.”.
E foi
precisamente com esse olhar do divino Mestre – salienta o Santo Padre – que
se iniciou “o milagre da conversão do pecador”. Jesus chama-o pelo nome e
pede que desça depressa, pois quer estar com ele em sua casa. E, como dizia o
Padre Porfírio Sá, também Francisco enfatiza que Jesus não censura Zaqueu, não
lhe faz um ‘sermão’, mas mostra-lhe que deve ir até ele: ‘deve’, porque é a
vontade do Pai”. As pessoas murmuram por Jesus optar pela entrada na casa de um
pecador público, desprezado por todos. E o Pontífice comentou:
“Nós também teríamos ficado
escandalizados com esse comportamento de Jesus. Mas o desprezo e o fechamento
em relação ao pecador não fazem senão que isolá-lo e endurecê-lo no mal que ele
faz contra si e contra a comunidade. Em vez disso, Deus condena o pecado, mas
tenta salvar o pecador, vai procurá-lo para trazê-lo de volta ao caminho reto.
(…) Quem nunca se sentiu procurado
pela misericórdia de Deus tem dificuldade em compreender a extraordinária
grandeza dos gestos e palavras com que Jesus se aproxima de Zaqueu.”.
Frisou o
Santo Padre que a atenção de Jesus e a forma como foi acolhido levaram Zaqueu a
uma mudança de mentalidade. Naquele instante percebeu quanto é mesquinha uma
vida movida pelo dinheiro, à custa de roubar os outros e ser desprezado por
eles”. E o Bispo de Roma vincou:
“Ter o Senhor ali, em sua casa,
faz com que ele veja tudo com olhos diferentes, também com um pouco da ternura
com que Jesus olhou para ele. E muda também o seu modo de ver e de usar o
dinheiro: substitui o gesto do extorquir pelo de dar. De facto, decide dar
metade do que possui aos pobres e restituir quatro vezes mais àqueles de quem
roubou. Zaqueu descobre de Jesus que é possível amar gratuitamente: até agora
ele era avarento, agora torna-se generoso; gostava de acumular, agora alegra-se
em distribuir. (…) Encontrando o Amor, descobrindo que é amado
apesar dos seus pecados, torna-se capaz de amar os outros, fazendo do dinheiro
um sinal de solidariedade e de comunhão.”.
Por fim,
formulou o desejo de que “a Virgem Maria nos obtenha a graça de sempre sentir
sobre nós o olhar misericordioso de Jesus, para sairmos com misericórdia ao
encontro dos que fizeram mal, para que possam acolher Jesus, que “veio buscar e
salvar o que estava perdido”.
***
E, após a
oração do Angelus e o apelo pelas vítimas da violência na
Etiópia, o Papa agradeceu à Prefeitura e à Diocese de San Severo (na Puglia), a
assinatura do Protocolo de Intenções, de 28 de outubro, “que permitirá aos
trabalhadores dos assim chamados guetos
da Capitanata, na região de Foggia, obter uma residência em paróquias e o
registo no cartório municipal”. E frisou:
“A possibilidade de ter documentos de identidade e de residência
oferecer-lhes-á nova dignidade e permitir-lhes-á sair de uma condição de
irregularidade e de exploração”.
Muitos
trabalhadores são explorados nas plantações por pessoas de má-fé, que se
aproveitam da sua condição irregular. Mal remunerados, sem nenhum direito ou
garantia, vivendo em galpões sem as mínimas condições de uma vida digna, são os
novos marginalizados que urge acolher.
2019.11.03 – Louro de Carvalho
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