domingo, 3 de novembro de 2019

Não lhe puxou as orelhas nem lhe pregou um sermão


Na homilia da missa das 12 horas do 31.º domingo do Tempo Comum no Ano C, na igreja dos Passionistas, em Santa Maria da Feira, o Padre Porfírio Sá comentava o Evangelho assumido para a Liturgia da Palavra que narra a história do encontro de Jesus com Zaqueu (Lc 19,1-10) e, ao falar do encontro destas duas personagens, sublinhava que não foi Zaqueu quem tomou a iniciativa de falar a Jesus e convidá-lo a ir a sua casa, mas que foi Jesus quem olhou para Zaqueu e lhe disse: “Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa”.
Referia o sacerdote passionista que Jesus falou como se fosse devedor para com Zaqueu e não como credor. E, ao entrar em casa de Zaqueu, não aproveitou a oportunidade para lhe dar um forte puxão de orelhas, pôr toda vida do pecador em evidência ou pregar-lhe um incontornável e solene sermão. Não, o Mestre dos mestres utilizou o seu olhar de empatia e misericórdia.
Zaqueu vivia em Jericó, o oásis situado nas margens do mar Morto, a cerca de 34 quilómetros de Jerusalém. Era a última etapa dos peregrinos que, da Pereia e da Galileia, se dirigiam a Jerusalém para as grandes festividades (o “caminho de Jerusalém”, que Jesus vem a percorrer, segundo Lucas, está a chegar ao fim). Jericó uma cidade próspera (sobretudo graças à produção de palmeiras e bálsamo), com grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, e seu filho Arquelau, que fizeram desta cidade a sua residência de inverno). Sita em lugar privilegiado de importante rota comercial, era espaço de oportunidades e grandes negócios (e de negócios “duvidosos”).
Segundo Flávio Josefo, Jericó possuía um importante polo de produção de palmeiras e bosques de bálsamo. E o unguento derivado deste bálsamo de Jericó era muito desejado na época. Isto significa que aquela área era uma fonte muito significativa de impostos, uma das três principais coletorias de impostos da Palestina, e Zaqueu era um dos principais responsáveis por essa arrecadação.
O nome hebraico de Zankkaîos (Zaqueu) é contração de Zacarias, a significar “aquele de quem Yahweh se lembra” ou “aquele que é justo” (o antípoda da vida que levava). E ele era um “chefe de publicanos”, portanto, um homem que o judaísmo considerava um pecador público, um explorador dos pobres, um colaboracionista ao serviço dos opressores romanos e, portanto, um excluído da comunidade da salvação. Como os demais publicanos servia-se do cargo para enriquecer de modo ilícito (exigia impostos muito acima do fixado pelos romanos e arrecadava para si a diferença). E, se os publicanos eram considerados ladrões, então o chefe seria um superladrão.
A designação de “chefe de publicanos” traduz o grego arkhitelónês e indica que ele era um subcontratante de outros coletores. Portanto, tinha a supervisão de alguns responsáveis por arrecadar os impostos indiretos para o império romano, pelo que era um homem importante, uma pessoa proeminente na região. Por isso, o texto bíblico completa a informação dizendo que era um homem rico. Era, pois, um pecador público sem hipótese de perdão, excluído do convívio com as pessoas decentes e sérias, um marginal, considerado amaldiçoado por Deus e desprezado pelos homens. A sua pequena estatura – mais que indicação de caráter físico – pode significar a sua pequenez e insignificância do ponto de vista sociomoral.
Porém, este pecador procurava ver Jesus. Ora, este ver indicará aqui mais do que a simples curiosidade: a procura, a vontade firme de encontro com algo novo, talvez o desejo de fazer parte dessa comunidade de salvação que Jesus anunciava. Entretanto, o Mestre parecer-lhe-ia distante e inacessível, rodeado dos “puros” e “santos” que desprezavam os marginais. O subir “a um sicómoro” indica o desejo de encontro com Jesus, desse por onde desse, muito mais forte do que o medo do ridículo ou das vaias da multidão.
Jesus lança o olhar para o homem que espreita o Mestre do meio dos ramos do sicómoro. E incute o seu interesse em entrar em comunhão com Ele, estabelecer laços de familiaridade. Parece, em quadro escandaloso, esquecer-se dos “puros” que O rodeiam e O escutam, que agora ficam como que suspensos à espera do que vai acontecer naquela casa de pecador e marginal.
É a concretização do “deixar as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que estava perdida”. É o espelho da fragilidade do coração de Deus que, ante o pecador que busca a salvação, deixa tudo para ir ao seu encontro.
Obviamente a multidão reage murmurando: “Foi hospedar-se em casa de um pecador”. É a postura de quem se considera “justo” e despreza os outros, de quem vive das suas certezas, de quem está convicto de que a lógica de Deus é a lógica de castigo, marginalização, exclusão. No entanto, Jesus mostra que a lógica de Deus é diferente da lógica dos homens e que a oferta de salvação que Deus faz não exclui nem marginaliza ninguém; é mesmo para todos.
Tudo termina com um banquete, onde está Zaqueu, o chefe dos publicanos, que simboliza o “banquete do Reino”. Assim, Jesus mostra que os pecadores têm lugar no “banquete do Reino”, que Deus os ama, que quer integrá-los na sua família e estabelecer com eles laços de comunhão e de amor. Jesus mostra que Deus não exclui nem marginaliza nenhum dos seus filhos – mesmo os pecadores – mas a todos oferece a salvação.
Dizia o Padre Porfírio Sá que não houve da parte do hospedeiro do Senhor um formal ato de contrição, uma demonstração, por palavras, do arrependimento que se exige. Mas a troca de olhares iniciada por Jesus provocou as condições de aceitação do Reino, da conversão: dar metade dos bens aos pobres e restituir o quádruplo de quanto terá roubado. E Zaqueu, feita a experiência do amor de Deus, acolhe o dom de Deus, converte-se ao amor, torna-se generoso. A repartição dos bens pelos pobres e a restituição de tudo o que foi roubado em quádruplo, vai muito além do que a lei judaica exigia; é sinal da transformação do coração. O amor de Deus não se derramou sobre Zaqueu depois de ele ter mudado de vida, mas foi o amor de Deus – que Zaqueu experimentou quando ainda era pecador – que provocou a conversão e que converteu o egoísmo em generosidade e levou o pecador a seguir Jesus. Assim se conclui que só a lógica do amor pode transformar o mundo e os corações dos homens.
É interessante notar que, apesar da ansiedade de Zaqueu em querer ver Jesus, ele parece ter ficado surpreendido pelo facto de a iniciativa do contacto entre eles ter partido do próprio Senhor, e não dele. Isto sugere que Zaqueu desejava vê-Lo, mas era Jesus quem estava à procura dele. Além disso, Jesus não pediu permissão a Zaqueu para entrar e permanecer em sua casa. E este também não propôs uma possibilidade de encontro. Literalmente o Senhor simplesmente disse: hoje eu vou ficar em sua casa.
Face à atitude de Jesus, a multidão começou a reclamar. Ficaram indignados porque Jesus havia dito que visitaria a casa de Zaqueu e não a de outrem. Os judeus odiavam os publicanos: e agora emergiu a inveja à mistura com o ódio. Consideravam os coletores de impostos como ladrões, extorquidores e traidores. Mas Jesus havia decidido ficar na casa do principal desses coletores, pois estava em busca de um dos homens mais detestados da cidade, pois todos têm lugar no Reino de Deus.
No encontro com Jesus, Zaqueu demonstrou realmente um arrependimento genuíno, que não ficou na teoria ou em palavras vazias. Revelou o arrependimento na prática ao declarar a doação aos pobres. Não estava a tentar obter a salvação com as boas obras, mas a entregar diante de Jesus a sua oferta de ação de graças. Mas não parou neste ponto: comprometeu-se ainda a devolver em quádruplo qualquer quantia com que tivesse defraudado alguém.
Normalmente a Lei Mosaica exigia que numa restituição fosse acrescentado um quinto do valor como um tipo de juros (Lv 6,1-5; Nm 5,7). Zaqueu, no entanto, decidiu fazer ainda mais do que isso. Não ofereceu um quinto de acréscimo na restituição, mas quatro vezes mais.
Considerando o facto de ter doado metade dos seus bens aos pobres e de ter declarado na presença de todos uma restituição tão generosa, é de inferir que Zaqueu tinha sido desonesto ao longo da sua vida. Direta ou indiretamente, o chefe dos cobradores de impostos havia permitido e também feito uma cobrança excessiva.
Muitos tentam provar que Zaqueu não teria sido um extorquidor, como se Cristo não pudesse jamais ter olhado para um corrupto. Todavia, o contexto da história de Zaqueu aponta noutra direção. Naquele dia, Jesus mostrou compaixão para com alguém que certamente não a merecia. É caso parecido com o da eleição de Mateus para o seguimento de Jesus, como se lê em Mateus:
Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: ‘Segue-me!’ E ele levantou-se e seguiu-O.  
“Encontrando-se Jesus à mesa em sua casa, numerosos cobradores de impostos e outros pecadores vieram e sentaram-se com Ele e os seus discípulos. Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: ‘Porque é que o vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?’
“Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: ‘Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores’.” (Mt 9,9).
Zaqueu pôde ouvir de Jesus as doces palavras: Hoje a salvação entrou nesta casa, porque até este homem é um filho de Abraão (Lc 19,9). Jesus não disse que havia entrado na casa de Zaqueu um mero conforto, uma alegria superficial ou uma prosperidade terrena e passageira. Foi claro ao dizer que a salvação, não menos que isto, havia entrado naquela casa. Zaqueu e as demais pessoas daquele lar estavam diante da maior bênção que poderiam receber.
Consequentemente, Jesus declarou que Zaqueu era filho de Abraão. Obviamente o objetivo de Jesus não era dizer que o publicano era um descendente biológico do grande patriarca (não podia ser). Mas, ao dizer que também ele era um filho de Abraão, vincava o sentido espiritual. Zaqueu estava a juntar-se, pela fé no Filho de Deus, à verdadeira descendência de Abraão (cf GL 3,9.29).
A história termina com a confirmação por parte de Jesus de que havia sido Ele quem encontrou o chefe dos publicanos, e não o contrário. Ele disse: Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido (Lc 19,10). Jesus buscou, encontrou e salvou Zaqueu. O Bom Pastor encontrou uma das suas ovelhas perdidas (Lc 15,1-7). Poucos dias depois, Aquele a quem Zaqueu recebeu em casa, derramaria o seu sangue e entregaria a sua vida também em seu favor.
***
Também o Papa Francisco comentou esta perícopa evangélica antes da recitação do Angelus com os fiéis e peregrinos concentrados na Praça de São Pedro. E, exortando a que, a exemplo de Zaqueu, nos deixemos converter pelo olhar misericordioso de Jesus, observou:
Quem nunca se sentiu procurado pela misericórdia de Deus tem dificuldade em compreender a extraordinária grandeza dos gestos e palavras com que Jesus se aproxima de Zaqueu”.
E, ao concluir a sua alocução, pediu que a Virgem Maria obtenha para nós a graça de sempre sentirmos sobre nós o olhar misericordioso de Jesus, para então, com misericórdia, irmos ao encontro dos que praticam o mal. Com efeito, como referiu, “o desprezo e o fechamento em relação ao pecador não fazem senão isolá-lo e endurecê-lo no mal que ele faz contra si e contra a comunidade”.
O fio condutor da reflexão papal foi a conversão de Zaqueu, que muda radicalmente de mentalidade pela atenção e acolhimento que recebe de Jesus e que, ao encontrar o Amor e descobrir que é amado, se torna capaz de amar os outros, restituindo quatro vezes mais a quem havia prejudicado. Diz o Pontífice que este chefe de “publicanos”, isto é, dos judeus cobradores de impostos “era rico não devido a ganhos honestos, mas por exigir a gratificação adicional (Como o império lhes pagava mal, eles cobravam em excesso), o que aumentava o desprezo por ele”. Mas, ao saber da passagem de Jesus por ali, fica curioso em ver quem era Ele, pois ouvira  dizer coisas extraordinárias a seu respeito. Sendo de baixa estatura, sobe a uma árvore. Mas é Jesus quem, entre tantos rostos que o cercavam, “olha para cima e o vê”. E diz o Papa:
Isso é importante: o primeiro olhar não é de Zaqueu, mas de Jesus, que entre os muitos rostos que o cercam, procura exatamente aquele. O olhar misericordioso do Senhor alcança-nos antes mesmo que nós percebamos que temos necessidade de sermos salvos.”.
E foi precisamente com esse olhar do divino Mestre – salienta o Santo Padre – que  se iniciou “o milagre da conversão do pecador”. Jesus chama-o pelo nome e pede que desça depressa, pois quer estar com ele em sua casa. E, como dizia o Padre Porfírio Sá, também Francisco enfatiza que Jesus não censura Zaqueu, não lhe faz um ‘sermão’, mas mostra-lhe que deve ir até ele: ‘deve’, porque é a vontade do Pai”. As pessoas murmuram por Jesus optar pela entrada na casa de um pecador público, desprezado por todos. E o Pontífice comentou:
Nós também teríamos ficado escandalizados com esse comportamento de Jesus. Mas o desprezo e o fechamento em relação ao pecador não fazem senão que isolá-lo e endurecê-lo no mal que ele faz contra si e contra a comunidade. Em vez disso, Deus condena o pecado, mas tenta salvar o pecador, vai procurá-lo para trazê-lo de volta ao caminho reto. (…) Quem nunca se sentiu procurado pela misericórdia de Deus tem dificuldade em compreender a extraordinária grandeza dos gestos e palavras com que Jesus se aproxima de Zaqueu.”.
Frisou o Santo Padre que a atenção de Jesus e a forma como foi acolhido levaram Zaqueu a uma mudança de mentalidade. Naquele instante percebeu quanto é mesquinha uma vida movida pelo dinheiro, à custa de roubar os outros e ser desprezado por eles”. E o Bispo de Roma vincou:
Ter o Senhor ali, em sua casa, faz com que ele veja tudo com olhos diferentes, também com um pouco da ternura com que Jesus olhou para ele. E muda também o seu modo de ver e de usar o dinheiro: substitui o gesto do extorquir pelo de dar. De facto, decide dar metade do que possui aos pobres e restituir quatro vezes mais àqueles de quem roubou. Zaqueu descobre de Jesus que é possível amar gratuitamente: até agora ele era avarento, agora torna-se generoso; gostava de acumular, agora alegra-se em distribuir. (…) Encontrando o Amor, descobrindo que é amado apesar dos seus pecados, torna-se capaz de amar os outros, fazendo do dinheiro um sinal de solidariedade e de comunhão.”.
Por fim, formulou o desejo de que “a Virgem Maria nos obtenha a graça de sempre sentir sobre nós o olhar misericordioso de Jesus, para sairmos com misericórdia ao encontro dos que fizeram mal, para que possam acolher Jesus, que “veio buscar e salvar o que estava perdido”. 
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E, após a oração do Angelus e o apelo pelas vítimas da violência na Etiópia, o Papa agradeceu à Prefeitura e à Diocese de San Severo (na Puglia), a assinatura do Protocolo de Intenções, de 28 de outubro, “que permitirá aos trabalhadores dos assim chamados guetos da Capitanata, na região de Foggia, obter uma residência em paróquias e o registo no cartório municipal”. E frisou:
A possibilidade de ter documentos de identidade e de residência oferecer-lhes-á nova dignidade e permitir-lhes-á sair de uma condição de irregularidade e de exploração”.
Muitos trabalhadores são explorados nas plantações por pessoas de má-fé, que se aproveitam da sua condição irregular. Mal remunerados, sem nenhum direito ou garantia, vivendo em galpões sem as mínimas condições de uma vida digna, são os novos marginalizados que urge acolher.
2019.11.03 – Louro de Carvalho

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