É uma das
grandes asserções do Papa Francisco proferida hoje, dia 1 de novembro, em que a
Igreja Católica celebra a Solenidade de Todos
os Santos, ofuscada pelo reforço das tradições do Halloween de realização de validade duvidosa, pelo menos nos termos
em que é levada a cabo, e secundarizada pela atenção dada, tantas vezes
folclórica, aos defuntos nos cemitérios.
Digo isto
com a sensação de que muitos crentes não conseguem hierarquizar os valores
cristãos. Com efeito, a 1 de novembro, as celebrações da Missa de Todos os Santos decorrem em templos
semidesertos mercê das deslocações aos cemitérios apinhados, para o que muitos
fazem longas e louváveis viagens. É certo que o dia 2 costuma ser dia de
trabalho, pelo que as romagens aos cemitérios e algumas celebrações dos Finados se antecipam para a tarde do dia
1, mas convém não incorrer em excessos e subvalorizar a Solenidade de Todos os Santos pelo peso que deve ter na vida da
Igreja e dos crentes.
É óbvio que
rezar pelos defuntos é extremamente salutar – “um santo e piedoso pensamento” –
como se lê no 2.º Livro dos Macabeus (vd 2Mac 12,43-46). Por isso, Judas Macabeu “mandou oferecer um
sacrifício de expiação pelos mortos, para que fossem libertos do seu pecado”.
Porém, antes
deste desiderato, importa valorizar o culto dos Santos, não por eles, mas por
Deus, que merece ser louvado, bendito e glorificado nos seus Anjos e nos seus Santos,
e por nós, que necessitamos deles como candeias que iluminam a nossa vida e a
quem será útil a sua intercessão junto do Senhor.
Na verdade,
como ensina São Bernardo de Claraval, de nada serve aos Santos o nosso louvor,
a nossa glorificação e mesmo esta Solenidade. De nada lhes vale a nossa
tributação das honras terrenas, pois o Pai celeste os glorifica segundo a
promessa do Filho. De nada lhes aproveitam os nossos panegíricos, que são, por
vezes tão ocos. E “os Santos não precisam das nossas honras e nada podemos
oferecer-lhes com a nossa devoção”. Todavia, devemos louvá-los, glorificá-los,
fazer-lhes Solenidade, honrá-los e tecer-lhes edificantes panegíricos, pois
“venerar a sua memória interessa-nos a nós e não a eles”. O primeiro desejo que
a recordação dos Santos excita ou aumenta em nós é o de gozar da sua companhia,
ser concidadãos e comensais dos bem-aventurados, integrar a assembleia dos
Patriarcas, Profetas, Apóstolos, Mártires, Confessores, Pastores, Doutores,
Religiosos, Virgens, Educadores, Dedicados às Obras de Misericórdia, Leigos,
Santos e Santas Comuns. E um outro desejo nos inflama: “que tal como a eles,
Cristo, nossa vida, Se nos manifeste também e que nos manifestemos nós com Ele
revestidos de glória”. (cf São Bernardo, abade, Sermo 2, in 2.ª Leitura do
Ofício de Leitura da Solenidade de Todos os Santos).
De facto,
nesta Solenidade, a Igreja peregrina neste mundo vê-se por antecipação
envolvida na plena participação na assembleia triunfante constituída pela
imensa multidão dos que provêm de todos os confins da Terra – os que vieram da
grande tribulação, lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do
Cordeiro (vd Ap 7,2-4.9-14). Os
crentes sentem-se verdadeiramente filhos de Deus, graças ao seu imenso amor por
nós e almejam, com os Santos, ver a Deus tal como Ele é e não de modo confuso
como que através de um espelho baço (vd 1Jo 3,1-3). Esta Igreja peregrina anseia por ver realizada a
compensação da bem-aventurança: a felicidade da pobreza em espírito, da
humildade, do choro pelas grandes causas, da fome e sede da justiça, da
misericórdia, da simplicidade de coração, da paz e do sofrimento da perseguição
– que nos dá o Reino de Deus, a posse do mundo, o consolo, a saciedade, a
misericórdia de Deus, a visão de de Deus, a filiação divina (vd Mt
5,1-12a). De facto, “a Igreja
proclama o mistério pascal, realizado na paixão e glorificação deles [os Santos] com Cristo, propõe aos fiéis os seus
exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo; e implora, pelos seus
méritos, as bênçãos de Deus. Segundo a sua tradição, a Igreja venera os Santos
e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos
Santos proclamam as grandes obras de Cristo nos Seus servos e oferecem aos
fiéis os bons exemplos a imitar.” (Constituição Litúrgica,
n.º 104 e 111).
O prefácio
da Missa de Todos os Santos explicita bem as razões do nosso louvor de hoje a
Deus pelos Santos, que,
tendo atingido pela multiforme graça de Deus a perfeição e alcançado a salvação
eterna, cantam hoje a Deus no Céu, o louvor perfeito e intercedem por nós:
“Hoje nos dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a
Jerusalém celeste, onde a assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorificam
eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela caminhamos na
fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres filhos da Igreja, que nos
destes como exemplo e auxílio para a nossa fragilidade.”.
Hoje é dia
de honrar os Santos a quem a Igreja reconhece o mérito do martírio, das
virtudes heroicas e, como refere a exortação apostólica Gaudete et exsultate, do Papa Francisco, sobre a chamada à santidade no mundo atual (eco e desenvolvimento do capítulo V – Vocação de todos
à Santidade na Igreja – da Lumen Gentium), aqueles que se distinguiram pela contínua oferta da
vida, os santos de ao pé da porta – Santos que, por alguma ou todas estas
razões, foram inscritos no catálogo dos Beatos e, eventualmente, no catálogo dos
Canonizados. Mas hoje é sobretudo o dia de honrar e glorificar aqueles e
aquelas que, em número incontável, apesar de anónimos para o mundo, integram,
por dom de Deus e por correspondência pessoal e articulação com a comunidade, a
grande assembleia dos filhos de Deus que, encontrando-se totalmente
purificados, já o contemplam tal como Ele é. Ou seja, sem excluir os Santos que
já têm, no calendário litúrgico, um dia para solenidade, festa ou memória na
Igreja Universal (canonizados), ou nalguma ou nalgumas comunidades mais vinculadas
à vida e obra deles (beatos), hoje a atenção dos fiéis incide sobretudo nos
santos e santas anónimos, mesmo que não tenha sido propostos ao povo cristão como
referência de vida pela Igreja nem estejam a caminho dessa proposta. São filhos
de Deus e contemplam-No face a face e isso é tudo.
***
Ao rezar com
os fiéis a oração mariana do Angelus na
Praça São Pedro, por ocasião da Solenidade de Todos os Santos, disse o Papa
Francisco que “a recordação dos Santos leva-nos a erguer os olhos para o Céu:
não para esquecer as realidades da terra, mas para enfrentá-las com mais
coragem e esperança”. E enfatizou: “Somos
todos chamados à santidade”.
É efetivamente
a tese plasmada na Lumen Gentium, Constituição
Dogmática sobre a Igreja e na mencionada exortação apostólica. Aliás, não podemos
esquecer que, antes do Concílio Vaticano II, houve muitos arautos da santidade que
enunciaram esta vocação universal à santidade, com especial incidência no
laicado que instila Evangelho no quotidiano e no mundo do trabalho. É justo
destacar o Cardeal Newman, recentemente canonizado, Monsenhor José Maria
Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei,
o Padre Virgínio Rotondi, fundador do Movimento Oásis, e o Padre Ricardo Lombardi, fundador do Movimento por um Mundo Melhor. Foi com esta
sementeira que o Concílio Vaticano II pode declarar:
“Cada leigo deve ser, perante o mundo, uma
testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e um sinal do Deus vivo.
Todos em conjunto, e cada um por sua parte, devem alimentar o mundo com frutos
espirituais (cf Gl 5,22) e nele difundir aquele espírito que anima os pobres,
mansos e pacíficos, que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf Mt
5,3-9). Numa palavra, ‘sejam os cristãos no mundo aquilo que a alma é no corpo’.”
(Lg n. 38).
“Os Santos e as Santas de todos os tempos não
são simplesmente símbolos, seres humanos distantes, inalcançáveis. Pelo
contrário, são pessoas que viveram com os pés no chão.” – afirmou o Sumo Pontífice, que explanou:
“Eles experimentaram a fadiga diária da existência com os seus sucessos
e fracassos, encontrando no Senhor a força para se levantar e continuar o
caminho. Isso demonstra que a santidade é uma meta que não pode ser alcançada
apenas pelas próprias forças, mas é o fruto da graça de Deus e da nossa livre
resposta a ela.”.
E o Papa
sublinhou que a santidade é simultaneamente dom
e chamamento. E explicou:
“Enquanto graça de Deus, isto é, dom, é algo que não podemos comprar ou
trocar, mas acolher, participando assim da mesma vida divina através do
Espírito Santo que habita em nós desde o dia do nosso Batismo. Trata-se de
amadurecer sempre mais a consciência de que estamos enxertados em Cristo como o
ramo está unido à videira e, por isso, podemos e devemos viver com Ele e Nele
como filhos de Deus.”.
Por conseguinte,
“a santidade – diz o Santo Padre – é viver em plena comunhão com Deus, já
agora, durante a peregrinação terrena”.
E, além de
ser um dom, disse ainda Francisco, a santidade é também chamamento, vocação
comum dos discípulos de Cristo; é o caminho de plenitude que cada cristão é
chamado a percorrer na fé, caminhando para a meta final: a comunhão definitiva
com Deus na vida eterna.
A santidade
torna-se assim uma resposta ao dom de Deus, porque se manifesta como assunção
de responsabilidade. “Nesta ótica, é importante assumir um sério e quotidiano
compromisso de santificação nas condições, deveres e circunstâncias da nossa
vida, procurando viver tudo com amor, com caridade”, assegurou o Papa.
E, olhando
para as vidas dos Santos, prosseguiu Francisco, somos encorajados a imitá-los.
Entre eles, estão muitas testemunhas de uma santidade “da porta ao lado,
daqueles que vivem perto de nós e são reflexo da presença de Deus”. E insistiu
referindo que “a recordação dos
Santos leva-nos a erguer os olhos para o Céu: não para esquecer as realidades
da terra, mas para enfrentá-las com mais coragem e esperança”.
Ao final da
oração mariana, falando ainda da Solenidade de Todos os Santos e também do Dia de Finados, o Pontífice disse que
essas duas festas cristãs nos recordam o vínculo que existe entre a Igreja da
terra e a do céu e “entre nós e os nossos entes queridos que passaram para a
outra vida”. E anunciou que, a 2 de novembro, celebrará a Eucaristia nas catacumbas
de Priscila, “um dos lugares de sepultura dos primeiros cristãos de Roma”.
Terminou a
convidar os fiéis a que, “nestes dias, em que, infelizmente, circulam também
mensagens de cultura negativa sobre a morte e sobre os mortos”, a não
negligenciarem, se possível, uma visita e uma oração ao cemitério”.
Até neste
aspeto, o Papa se mostra pontífice, o homem de pontes.
2019.11.01 – Louro de Carvalho
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