sábado, 2 de novembro de 2019

Os santos ajudam-nos a enfrentar a vida com coragem e esperança


É uma das grandes asserções do Papa Francisco proferida hoje, dia 1 de novembro, em que a Igreja Católica celebra a Solenidade de Todos os Santos, ofuscada pelo reforço das tradições do Halloween de realização de validade duvidosa, pelo menos nos termos em que é levada a cabo, e secundarizada pela atenção dada, tantas vezes folclórica, aos defuntos nos cemitérios.
Digo isto com a sensação de que muitos crentes não conseguem hierarquizar os valores cristãos. Com efeito, a 1 de novembro, as celebrações da Missa de Todos os Santos decorrem em templos semidesertos mercê das deslocações aos cemitérios apinhados, para o que muitos fazem longas e louváveis viagens. É certo que o dia 2 costuma ser dia de trabalho, pelo que as romagens aos cemitérios e algumas celebrações dos Finados se antecipam para a tarde do dia 1, mas convém não incorrer em excessos e subvalorizar a Solenidade de Todos os Santos pelo peso que deve ter na vida da Igreja e dos crentes.   
É óbvio que rezar pelos defuntos é extremamente salutar – “um santo e piedoso pensamento” – como se lê no 2.º Livro dos Macabeus (vd 2Mac 12,43-46). Por isso, Judas Macabeu “mandou oferecer um sacrifício de expiação pelos mortos, para que fossem libertos do seu pecado”.
Porém, antes deste desiderato, importa valorizar o culto dos Santos, não por eles, mas por Deus, que merece ser louvado, bendito e glorificado nos seus Anjos e nos seus Santos, e por nós, que necessitamos deles como candeias que iluminam a nossa vida e a quem será útil a sua intercessão junto do Senhor.
Na verdade, como ensina São Bernardo de Claraval, de nada serve aos Santos o nosso louvor, a nossa glorificação e mesmo esta Solenidade. De nada lhes vale a nossa tributação das honras terrenas, pois o Pai celeste os glorifica segundo a promessa do Filho. De nada lhes aproveitam os nossos panegíricos, que são, por vezes tão ocos. E “os Santos não precisam das nossas honras e nada podemos oferecer-lhes com a nossa devoção”. Todavia, devemos louvá-los, glorificá-los, fazer-lhes Solenidade, honrá-los e tecer-lhes edificantes panegíricos, pois “venerar a sua memória interessa-nos a nós e não a eles”. O primeiro desejo que a recordação dos Santos excita ou aumenta em nós é o de gozar da sua companhia, ser concidadãos e comensais dos bem-aventurados, integrar a assembleia dos Patriarcas, Profetas, Apóstolos, Mártires, Confessores, Pastores, Doutores, Religiosos, Virgens, Educadores, Dedicados às Obras de Misericórdia, Leigos, Santos e Santas Comuns. E um outro desejo nos inflama: “que tal como a eles, Cristo, nossa vida, Se nos manifeste também e que nos manifestemos nós com Ele revestidos de glória”. (cf São Bernardo, abade, Sermo 2, in 2.ª Leitura do Ofício de Leitura da Solenidade de Todos os Santos).
De facto, nesta Solenidade, a Igreja peregrina neste mundo vê-se por antecipação envolvida na plena participação na assembleia triunfante constituída pela imensa multidão dos que provêm de todos os confins da Terra – os que vieram da grande tribulação, lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro (vd Ap 7,2-4.9-14). Os crentes sentem-se verdadeiramente filhos de Deus, graças ao seu imenso amor por nós e almejam, com os Santos, ver a Deus tal como Ele é e não de modo confuso como que através de um espelho baço (vd 1Jo 3,1-3). Esta Igreja peregrina anseia por ver realizada a compensação da bem-aventurança: a felicidade da pobreza em espírito, da humildade, do choro pelas grandes causas, da fome e sede da justiça, da misericórdia, da simplicidade de coração, da paz e do sofrimento da perseguição – que nos dá o Reino de Deus, a posse do mundo, o consolo, a saciedade, a misericórdia de Deus, a visão de de Deus, a filiação divina (vd Mt 5,1-12a).  De facto, “a Igreja proclama o mistério pascal, realizado na paixão e glorificação deles [os Santos] com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo; e implora, pelos seus méritos, as bênçãos de Deus. Segundo a sua tradição, a Igreja venera os Santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos Santos proclamam as grandes obras de Cristo nos Seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar.” (Constituição Litúrgica, n.º 104 e 111).
O prefácio da Missa de Todos os Santos explicita bem as razões do nosso louvor de hoje a Deus pelos Santos, que, tendo atingido pela multiforme graça de Deus a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no Céu, o louvor perfeito e intercedem por nós:
Hoje nos dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém celeste, onde a assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorificam eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres filhos da Igreja, que nos destes como exemplo e auxílio para a nossa fragilidade.”.  
Hoje é dia de honrar os Santos a quem a Igreja reconhece o mérito do martírio, das virtudes heroicas e, como refere a exortação apostólica Gaudete et exsultate, do Papa Francisco, sobre a chamada à santidade no mundo atual (eco e desenvolvimento do capítulo V – Vocação de todos à Santidade na Igreja – da Lumen Gentium), aqueles que se distinguiram pela contínua oferta da vida, os santos de ao pé da porta – Santos que, por alguma ou todas estas razões, foram inscritos no catálogo dos Beatos e, eventualmente, no catálogo dos Canonizados. Mas hoje é sobretudo o dia de honrar e glorificar aqueles e aquelas que, em número incontável, apesar de anónimos para o mundo, integram, por dom de Deus e por correspondência pessoal e articulação com a comunidade, a grande assembleia dos filhos de Deus que, encontrando-se totalmente purificados, já o contemplam tal como Ele é. Ou seja, sem excluir os Santos que já têm, no calendário litúrgico, um dia para solenidade, festa ou memória na Igreja Universal (canonizados), ou nalguma ou nalgumas comunidades mais vinculadas à vida e obra deles (beatos), hoje a atenção dos fiéis incide sobretudo nos santos e santas anónimos, mesmo que não tenha sido propostos ao povo cristão como referência de vida pela Igreja nem estejam a caminho dessa proposta. São filhos de Deus e contemplam-No face a face e isso é tudo.
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Ao rezar com os fiéis a oração mariana do Angelus na Praça São Pedro, por ocasião da Solenidade de Todos os Santos, disse o Papa Francisco que “a recordação dos Santos leva-nos a erguer os olhos para o Céu: não para esquecer as realidades da terra, mas para enfrentá-las com mais coragem e esperança”. E enfatizou: “Somos todos chamados à santidade”.
É efetivamente a tese plasmada na Lumen Gentium, Constituição Dogmática sobre a Igreja e na mencionada exortação apostólica. Aliás, não podemos esquecer que, antes do Concílio Vaticano II, houve muitos arautos da santidade que enunciaram esta vocação universal à santidade, com especial incidência no laicado que instila Evangelho no quotidiano e no mundo do trabalho. É justo destacar o Cardeal Newman, recentemente canonizado, Monsenhor José Maria Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei, o Padre Virgínio Rotondi, fundador do Movimento Oásis, e o Padre Ricardo Lombardi, fundador do Movimento por um Mundo Melhor. Foi com esta sementeira que o Concílio Vaticano II pode declarar:  
Cada leigo deve ser, perante o mundo, uma testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e um sinal do Deus vivo. Todos em conjunto, e cada um por sua parte, devem alimentar o mundo com frutos espirituais (cf Gl 5,22) e nele difundir aquele espírito que anima os pobres, mansos e pacíficos, que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf Mt 5,3-9). Numa palavra, ‘sejam os cristãos no mundo aquilo que a alma é no corpo’.” (Lg n. 38).
Os Santos e as Santas de todos os tempos não são simplesmente símbolos, seres humanos distantes, inalcançáveis. Pelo contrário, são pessoas que viveram com os pés no chão.” – afirmou  o Sumo Pontífice, que explanou:
Eles experimentaram a fadiga diária da existência com os seus sucessos e fracassos, encontrando no Senhor a força para se levantar e continuar o caminho. Isso demonstra que a santidade é uma meta que não pode ser alcançada apenas pelas próprias forças, mas é o fruto da graça de Deus e da nossa livre resposta a ela.”.
E o Papa sublinhou que a santidade é simultaneamente dom e chamamento. E explicou:
Enquanto graça de Deus, isto é, dom, é algo que não podemos comprar ou trocar, mas acolher, participando assim da mesma vida divina através do Espírito Santo que habita em nós desde o dia do nosso Batismo. Trata-se de amadurecer sempre mais a consciência de que estamos enxertados em Cristo como o ramo está unido à videira e, por isso, podemos e devemos viver com Ele e Nele como filhos de Deus.”.
Por conseguinte, “a santidade – diz o Santo Padre – é viver em plena comunhão com Deus, já agora, durante a peregrinação terrena”.
E, além de ser um dom, disse ainda Francisco, a santidade é também chamamento, vocação comum dos discípulos de Cristo; é o caminho de plenitude que cada cristão é chamado a percorrer na fé, caminhando para a meta final: a comunhão definitiva com Deus na vida eterna.
A santidade torna-se assim uma resposta ao dom de Deus, porque se manifesta como assunção de responsabilidade. “Nesta ótica, é importante assumir um sério e quotidiano compromisso de santificação nas condições, deveres e circunstâncias da nossa vida, procurando viver tudo com amor, com caridade”, assegurou o Papa.
E, olhando para as vidas dos Santos, prosseguiu Francisco, somos encorajados a imitá-los. Entre eles, estão muitas testemunhas de uma santidade “da porta ao lado, daqueles que vivem perto de nós e são reflexo da presença de Deus”. E insistiu referindo que “a recordação dos Santos leva-nos a erguer os olhos para o Céu: não para esquecer as realidades da terra, mas para enfrentá-las com mais coragem e esperança”.
Ao final da oração mariana, falando ainda da Solenidade de Todos os Santos e também do Dia de Finados, o Pontífice disse que essas duas festas cristãs nos recordam o vínculo que existe entre a Igreja da terra e a do céu e “entre nós e os nossos entes queridos que passaram para a outra vida”. E anunciou que, a 2 de novembro, celebrará a Eucaristia nas catacumbas de Priscila, “um dos lugares de sepultura dos primeiros cristãos de Roma”.
Terminou a convidar os fiéis a que, “nestes dias, em que, infelizmente, circulam também mensagens de cultura negativa sobre a morte e sobre os mortos”, a não negligenciarem, se possível, uma visita e uma oração ao cemitério”.
Até neste aspeto, o Papa se mostra pontífice, o homem de pontes.
2019.11.01 – Louro de Carvalho

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