terça-feira, 5 de novembro de 2019

Um retrocesso culturo-civilizacional


É recorrente falar-se em crise de valores como explicação para determinados comportamentos desviantes na família na escola, no clube, na empresa, na política. E teoricamente até a nossa sociedade está protegida pelas leis – umas mais justas, outras menos – para prevenir e combater os diversos tipos de crimes que as pessoas são tentadas a praticar e que praticam mesmo.
Porém, às leis sobrepõe-se tantas vezes a jurisprudência que, em vez de se fazer uma interpretação prática da norma quando ela é ambígua ou confusa, acaba por se negar a própria norma ou tirar-lhe a eficácia em muitas situações. Assim, por exemplo, um insulto dirigido a um agente da autoridade é tido por desabafo ou exteriorização de mau estar, enquanto um tratamento com palavras do âmbito do calão dirigido ao detido por parte do agente da autoridade é considerado ofensa grave e atentado à dignidade humana. Quem se der à curiosidade de ler as anotações ao nosso CP (Código Penal) no site da PGDL (Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa) nos artigos atinentes a esta matéria e similares, fica a saber do que estou a falar, tal como quem se recorde dos julgamentos, não muito distantes no tempo, de processos de casos apresentados pela PSP aos tribunais.   
Nestes dias, os meios de comunicação social deram-nos conta de que um juiz de Famalicão condenado por violência doméstica pelo Tribunal da Relação de Guimarães (para os magistrados a Relação julga em primeira instância) é absolvido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Em setembro de 2018, o Tribunal da Relação condenou o predito juiz arguido a um ano e meio de prisão, com suspensão de pena, pelo crime de violência doméstica e ainda o condenou a pagar uma indemnização de 7500 euros à ex-companheira. Estavam em causa mensagens telemóvel e correio eletrónico que o arguido enviou à ex-companheira, inconformado com o facto de esta ter, em 2011, terminado o relacionamento de 4 anos. Segundo o JN, que teve acesso ao acórdão, o juiz terá dito à ex-companheira que se iria arrepender porque os juízes mandam em tudo (não transcrevo os termos exatos até por serem ofensivos para os juízes sérios). Quem ler o JN, de hoje, dia 5 de novembro, e tiver um mínimo de sensibilidade e decoro fica horrorizado com o teor das mensagens trocadas entre o ex-casal. E não sei qual dos membros do par terá sido mais ofensivo. Porém, só a mulher é que solicitou a ação da justiça.
A Relação considerou que o juiz arguido revelou “desprezo e desconsideração” pela ex-companheira, com provocações de cariz sexual, insultos e ameaças veladas. Deu ainda como provado que o juiz sabia que a ex-companheira estava “particularmente vulnerável” pela morte do pai e que as mensagens lhe provocaram “insegurança, intranquilidade e medo. E entendeu que os factos “merecem um juízo de censura acrescido pelo facto de o arguido ser juiz”.
O juiz arguido recorreu para o STJ, acabando por ser absolvido. O acórdão deste tribunal, datado do passado dia 30 de outubro, a que a Lusa teve acesso, sustenta:
A relação entre o arguido e a assistente era pautada por troca de e-mails, remetidos por um e por outro, similares aos e-mails do arguido objeto dos presentes autos. O tipo de linguagem era recíproco.”.
Mais o acórdão, considerando que o conceito de maus tratos, essencial ao crime de violência doméstica, tem na base lesões “graves, intoleráveis, brutais, pesadas”, sublinha que daquelas mensagens não resultam “lesões” que integrem a figura jurídica de maus tratos, que é essencial no crime de violência doméstica. E acrescenta que, mesmo após a separação, a ex-companheira continuou a manter contactos com o arguido, “socorrendo-se do mesmo e aproveitando os seus conhecimentos jurídicos, no âmbito de vários processos judiciais”. Por consequência, o juiz arguido foi também absolvido do pagamento de qualquer indemnização à ex-companheira, tendo o STJ concluído que dos autos “não resultam lesões ou danos provocados à assistente”.
O juiz arguido já foi também condenado a uma pena de multa por um crime de falsidade de testemunho, num processo que envolvia igualmente a ex-companheira, com intuito de a prejudicar num processo de herança, vingando-se assim do facto de ela se ter separado dele. Essa condenação foi confirmada pelo STJ em Janeiro do ano passado, num acórdão em que considerou que a conduta do arguido constituía “uma negação frontal da ética inerente à condição de juiz”. A pena foi de 400 dias de multa, à taxa diária de 20 euros, no total de oito mil euros. Nesse processo, o juiz foi ainda condenado a pagar uma indemnização de cinco mil euros à ex-companheira, por danos não patrimoniais.
Na sequência dessa condenação, o CSM (Conselho Superior de Magistratura) instaurou um processo disciplinar ao juiz arguido e decidiu aplicar-lhe a pena de “aposentação compulsiva”, pena de que recorreu e de que ainda não se conhece desfecho.
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Sempre ouvi dizer e senti que o insulto por palavras infames constitui maior agravo pessoal que a agressão física, tornando-se mais humilhante e mais traumatizante. Por outro lado, o STJ parece ter dois pesos e duas medidas: condena a mentira (falsas declarações), mas não condena a agressão verbal, contrariando o art.º 152.º do CP. E condena a mentira (falsas declarações) em nome da ética inerente à condição de juiz e não em nome da lei.
Este é mais um dos casos a juntar a tantos que testemunham a degradação da sociedade e do homem coevo. E é pena que aos tribunais, que deveriam ser a reserva da soberania, esteja a chegar a onda do retrocesso culturo-civilizacional. Por isso, é de pedir à escola, nomeadamente à escola superior, e aos formadores de opinião que ponham as mãos à tarefa de regeneração do homem e da sociedade pelo culto dos valores políticos, legais e éticos, sem os baralhar. Talvez a formação cristã ajude!
2019.11.05 – Louro de Carvalho   

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