É recorrente falar-se em crise de valores como
explicação para determinados comportamentos desviantes na família na escola, no
clube, na empresa, na política. E teoricamente até a nossa sociedade está
protegida pelas leis – umas mais justas, outras menos – para prevenir e
combater os diversos tipos de crimes que as pessoas são tentadas a praticar e
que praticam mesmo.
Porém, às leis sobrepõe-se tantas vezes a
jurisprudência que, em vez de se fazer uma interpretação prática da norma quando
ela é ambígua ou confusa, acaba por se negar a própria norma ou tirar-lhe a
eficácia em muitas situações. Assim, por exemplo, um insulto dirigido a um
agente da autoridade é tido por desabafo ou exteriorização de mau estar,
enquanto um tratamento com palavras do âmbito do calão dirigido ao detido por
parte do agente da autoridade é considerado ofensa grave e atentado à dignidade
humana. Quem se der à curiosidade de ler as anotações ao nosso CP (Código Penal) no site
da PGDL (Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa)
nos artigos atinentes a esta matéria e similares, fica a saber do que estou a
falar, tal como quem se recorde dos julgamentos, não muito distantes no tempo, de
processos de casos apresentados pela PSP aos tribunais.
Nestes dias, os meios de comunicação social
deram-nos conta de que um juiz de Famalicão condenado por violência doméstica pelo
Tribunal da Relação de Guimarães (para os magistrados a Relação julga em primeira instância) é
absolvido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Em setembro
de 2018, o Tribunal da Relação condenou o predito juiz arguido a um ano e meio
de prisão, com suspensão de pena, pelo crime de violência doméstica e ainda o
condenou a pagar uma indemnização de 7500 euros à ex-companheira. Estavam em
causa mensagens telemóvel e correio eletrónico que o arguido enviou à
ex-companheira, inconformado com o facto de esta ter, em 2011, terminado o
relacionamento de 4 anos. Segundo o JN,
que teve acesso ao acórdão, o juiz terá dito à ex-companheira que se iria
arrepender porque os juízes mandam em tudo (não transcrevo os termos exatos até
por serem ofensivos para os juízes sérios). Quem ler
o JN, de hoje, dia 5 de novembro, e
tiver um mínimo de sensibilidade e decoro fica horrorizado com o teor das
mensagens trocadas entre o ex-casal. E não sei qual dos membros do par terá
sido mais ofensivo. Porém, só a mulher é que solicitou a ação da justiça.
A Relação
considerou que o juiz arguido revelou “desprezo
e desconsideração” pela ex-companheira, com “provocações de cariz sexual,
insultos e ameaças veladas”. Deu ainda como provado que o juiz sabia
que a ex-companheira estava “particularmente vulnerável” pela morte
do pai e que as mensagens lhe provocaram “insegurança,
intranquilidade e medo”. E entendeu que os factos “merecem um juízo de censura acrescido pelo
facto de o arguido ser juiz”.
O juiz
arguido recorreu para o STJ, acabando por ser absolvido. O acórdão deste
tribunal, datado do passado dia 30 de outubro, a que a Lusa teve acesso, sustenta:
“A relação entre o arguido e a assistente
era pautada por troca de e-mails, remetidos por um e por outro, similares aos
e-mails do arguido objeto dos presentes autos. O tipo de linguagem era
recíproco.”.
Mais o acórdão, considerando que o conceito de maus tratos,
essencial ao crime de violência doméstica, tem na base lesões “graves, intoleráveis, brutais, pesadas”, sublinha que daquelas mensagens não
resultam “lesões” que integrem a
figura jurídica de maus tratos, que é essencial no crime de violência doméstica. E acrescenta que, mesmo após a separação, a ex-companheira
continuou a manter contactos com o arguido, “socorrendo-se do mesmo e aproveitando os seus conhecimentos jurídicos,
no âmbito de vários processos judiciais”. Por consequência, o juiz arguido
foi também absolvido do pagamento de qualquer indemnização à ex-companheira,
tendo o STJ concluído que dos autos “não
resultam lesões ou danos provocados à assistente”.
O juiz
arguido já foi também condenado a uma pena de multa por um crime de
falsidade de testemunho, num processo que envolvia igualmente a ex-companheira,
com intuito de a prejudicar num processo de herança, vingando-se assim do facto
de ela se ter separado dele. Essa condenação foi confirmada pelo STJ em Janeiro
do ano passado, num acórdão em que considerou que a conduta do arguido
constituía “uma negação frontal da ética
inerente à condição de juiz”. A pena foi de 400 dias de multa, à taxa
diária de 20 euros, no total de oito mil euros. Nesse processo, o juiz foi
ainda condenado a pagar uma indemnização de cinco mil euros à ex-companheira,
por danos não patrimoniais.
Na sequência
dessa condenação, o CSM (Conselho Superior de Magistratura) instaurou um processo disciplinar ao juiz arguido e
decidiu aplicar-lhe a pena de “aposentação
compulsiva”, pena de que recorreu e de que ainda não se conhece desfecho.
***
Sempre ouvi
dizer e senti que o insulto por palavras infames constitui maior agravo pessoal
que a agressão física, tornando-se mais humilhante e mais traumatizante. Por
outro lado, o STJ parece ter dois pesos e duas medidas: condena a mentira (falsas
declarações), mas
não condena a agressão verbal, contrariando o art.º 152.º do CP. E condena a
mentira (falsas
declarações) em nome
da ética inerente à condição de juiz e não em nome da lei.
Este é
mais um dos casos a juntar a tantos que testemunham a degradação da sociedade e
do homem coevo. E é pena que aos tribunais, que deveriam ser a reserva da
soberania, esteja a chegar a onda do retrocesso culturo-civilizacional. Por
isso, é de pedir à escola, nomeadamente à escola superior, e aos formadores de
opinião que ponham as mãos à tarefa de regeneração do homem e da sociedade pelo
culto dos valores políticos, legais e éticos, sem os baralhar. Talvez a formação
cristã ajude!
2019.11.05 –
Louro de Carvalho
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