Finou-se por
via dum AVC, aos 77 anos, a 19 de novembro, uma das vozes maiores da música de
intervenção, como fica espelhado em “Mudam-se
os Tempos, Mudam-se as Vontades”.
“Sempre foi um revolucionário”, disse o
Presidente do República ao manifestar pesar pela morte de quem se tornou
conhecido pelas canções de intervenção, mas que também se ligou ao fado.
Em
declarações à TSF, o Chefe de Estado observou:
“José Mário Branco era uma referência do
período de resistência à ditadura, da revolução e pós-revolução de abril e de
uma geração que, através da sua voz, exprimiu a vontade de mudança política
económica e social na sociedade portuguesa. (…) Foi sempre um revolucionário,
um insatisfeito, desejando sempre muito mais e muito melhor.”.
De seu nome José
Mário Monteiro Guedes Branco, nasceu no Porto a 25 de maio de 1942 e foi um icónico
músico e compositor cujo percurso está umbilicalmente associado às canções de
intervenção que circundaram a revolução abrilina. Da sua extensa obra
destaca-se o álbum “Mudam-se os Tempos,
Mudam-se as Vontades”, de 1971, um marco na sua carreira e na história
recente da música portuguesa, mercê do tom reivindicativo das letras, sempre trabalhadas
de forma exímia – elemento que, segundo Nuno Galopim, era um dos seus fortes,
bem como a composição de coros musicais.
Filho de
professores o ensino primário (assim se designava o
1.º ciclo do ensino básico), cresceu
entre Porto e Leça da Palmeira. Iniciou o curso de História, primeiro na
Universidade de Coimbra, depois na Universidade do Porto – acabando por o
deixar inacabado. E, em 2006, com 64 anos,
José Mário Branco iniciou uma licenciatura em Linguística, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Terminou o 1.º ano com média de 19,1 valores,
sendo considerado o melhor aluno do seu curso. Desvalorizou a Bolsa de Estudo
por Mérito que lhe foi atribuída, dizendo que é “algo normal numa carreira
académica”.
Expoente da música
de intervenção, foi perseguido pela PIDE por ligação ao PCP e exilou-se em França,
em 1963. Foi exilado e em plena luta contra o Estado Novo que lançou o álbum “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”,
com textos de autores como Natália Correia, Alexandre O’Neill, Luís de Camões e
Sérgio Godinho. E, em 1973, gravou um disco com Zeca Afonso, em Paris – “Venham mais Cinco”, um dos símbolos de
oposição à ditadura. Regressou em 1974 e fundou o Grupo de Ação Cultural “Vozes na Luta!”, com o qual gravou dois
álbuns.
Segundo o JN, a Rádio Renascença e o Observador,
o músico relatava um curioso episódio sobre “Grândola Vila Morena”, que envolve uma sugestão sua e um erro
também seu:
“O Zeca chegou a Paris com aquela canção, tinha três quadras, era uma
canção que ele dedicava a uma coletividade de Grândola… Eu de miúdo conhecia o
Alentejo. Era a época da monda, eles iam para lá de manhã e, quando voltavam ao
fim do dia, os homens e as mulheres vinham abraçados cantando. O passo deles
era: arrasta, pousa, arrasta, pousa. ‘Ó Zeca, vamos dar a isto a forma do cante
alentejano.’ Tens de fazer a estrutura e eu queria acrescentar os passos dos
gajos. O Zeca gostou da ideia. (…) Pedi ao técnico para estender cabos de 30/40
metros, marcámos o beat numa das pistas e gravámos 3 ou 4
minutos de passos como eles faziam, à volta dos 4 microfones. Foi às 4 da
manhã, para não haver ruídos. Só que na mistura eu não estive atento e soa ao
dobro da velocidade, parecem soldados.”.
O seu papel
no fado tornou-se preponderante com o passar do tempo, tendo, por exemplo,
produzido todos os discos do fadista Camané e não só. O próprio Camané contou que José
Mário branco tinha sido “extremamente importante” no seu percurso musical e na
sua carreira.
Editou, em
1967, o seu primeiro disco, “Seis Cantigas
de Amigo”. Seguiu-se, em 1969, o single “Ronda do
soldadinho”. A sua discografia inclui, entre outros trabalhos e além do que
já foi apontado, “Margem de certa maneira”
(1973), “A Cantiga é
uma Arma” (1976), “Ser Solid(t)ário” (1982), “A Noite” (1985), “Correspondências” (1990), “Canções
Escolhidas” (1999) e “Resistir é vencer” (2004). Mas nem toda a sua obra se encerra nestes álbuns. Dez
anos depois do último disco, em 2014, saiu o documentário “Mudar de Vida”, da autoria de Nelson
Guerreiro e Pedro Fidalgo, que traça a história do músico sintetizada pelo próprio:
“Sou o Zé Mário Branco, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com
isto de mim para cantar e para o resto; continua, desde há 40 anos, a denunciar
e a acreditar que é possível realizar a Mudança, aquela grande mudança que faz
transformar o Mundo e a Vida numa coisa melhor”.
E, além de
todos os trabalhos de composição e produção: o músico tinha uma série de
material disperso que foi compilado, em 2018, no duplo surpreendente CD “Inéditos 1967-1999”. Um trabalho de “arqueologia musical”, como o descreve a
Blitz. E, segundo o Observador, “ouve-se
o disco e logo no primeiro tema surge um dedilhado de guitarra e a voz de José
Mário Branco a cantar versos nunca ouvidos, por exemplo em ‘Quantas Sabedes Amar, amigo’. E é quanto
basta para perceber que Inéditos 1967-1999 está recheado de pérolas”.
Não obstante o designativo ‘inéditos’, alguns dos 26 temas do álbum de 2 CD que
José Mário Branco acabava de editar não são inéditos, pois tinham sido já
lançados em EP, LP e singles – é certo que todos em formato físico e, em
grande medida, há muito tempo perdidos. Era o caso das “Seis Cantigas de Amigo” que gravou
para os Arquivos Sonoros Portugueses, de Michel Giacometti e Fernando
Lopes-Graça (a que acresce uma maquete que ficou de fora da seleção desse EP). E era o caso de “Ronda do Soldadinho” e “Mãos
ao Ar!”, editados em formato single, ou “Le Proscrit de 1871”, em colaboração com a cooperativa artística Groupe
Organon.
Há pouco
mais de um ano, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da
Universidade Nova de Lisboa apresentou o Arquivo José Mário Branco, o maior
repositório online de material associado à vida e obra do músico e cantor – com
mais de mil documentos entre eles imagens, vídeos, músicas e escritos.
José Mário
Branco ganhou dois Prémios José Afonso
(1992 e 1996), que reconhece o que é feito na música em Portugal.
Em 2017, no ano em que completou 50 anos de carreira, foi homenageado na Feira
do Livro do Porto e foram reeditados os sete álbuns de originais e um ao vivo,
de 1971 e 2004.
Marcelo
Rebelo de Sousa disse à TSF que
tentou condecorar o músico e homenageá-lo em vida, mas que ele recusara, porquanto
“foi sempre muito avesso a condecorações, a reconhecimentos públicos”. Agora, o
Presidente admite condecorá-lo a título póstumo:
“Se aqueles que lhe são próximos entenderem que não traem a sua memória
aceitando esse reconhecimento público, então, obviamente, o que não foi
possível fazer em vida será feito postumamente”.
***
Considerado um dos compositores portugueses mais importantes e renovadores
do século XX, foi militante do PCP,
perseguido pela PIDE e exilou-se em França em 1963, com 21 anos,
vivendo intensamente aí os acontecimentos do “Maio de 1968”.
No exílio, recordaria mais tarde, percorreu o país para “divertir e dar
força” aos trabalhadores que ocuparam escolas, fábricas, bairros e pracetas,
com outros cantores portugueses e artistas franceses. Foi aí que ele e outros
artistas portugueses começaram a sair da concha de exilados e conheceram muitos
artistas franceses e de outras nacionalidades. E daí surgiram algumas
afinidades artísticas, de que é exemplo a criação da cooperativa artística Groupe Organon.
Foi em França que gravou, em 1967, o primeiro EP, “Seis cantigas de
amigo”. E foi em Paris que o conheceu Sérgio Godinho,
com quem imediatamente desenvolveu amizade e parcerias. Enquanto José
Mário Branco (JMB) editou “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” em 1971, Sérgio Godinho
lançou “Os Sobreviventes” em
1972. Os dois álbuns incluem parcerias entre eles e do alinhamento faz parte um
mesmo tema, O Charlatão. Permaneceram
próximos e a última vez que colaboraram foi no álbum Nação Valente,
de Sérgio Godinho, para o qual JMB escreveu o tema Mariana Pais, 21
anos.
JMB regressou a Portugal após a revolução de 25 de Abril de 1974 e sempre
achou, como cantou no disco lançado em 1976, que A Cantiga é uma Arma.
Como lembrou, em declarações à Lusa,
José Jorge Letria, presidente da SPA (Sociedade
Portuguesa de Autores), o músico percebeu imediatamente que era importante “definir a estrutura da organização em que os cantores se iriam integrar
para fazer chegar as suas vozes ao povo português”. Por isso, no dia em que chegou a Portugal, organizou
uma reunião na casa do pai, com a presença de José Jorge Letria, Sérgio Godinho
e Carlos Paredes e “fez uma declaração política e cultural a explicar o que era
preciso os cantores fazerem na época para prosseguir a concretização da
liberdade e da democracia”.
José Mário Branco foi fundador do GAC – Grupo de Ação Cultural, que entre
1974 e 1977 realizou mais de 500 espetáculos no país e nos estrangeiro. A
sua atividade estendeu-se ao teatro e ao cinema. Fez parte da companhia de teatro A
Comuna, fundou o Teatro do Mundo,
a União Portuguesa de Artistas e
Variedades. Fez, em 1978, no Teatro da Comuna, por exemplo, a
música para A Mãe e, no ano seguinte, para Homem
Morto, Homem Posto, ambas peças de Brecht, com encenação de João Mota, que
José Mário Branco interpretou ao lado de Carlos Paulo, Fernanda Neves, Manuela
de Freitas, Melim Teixeira e outros. No cinema, destaca-se a sua colaboração
com Paulo Rocha, tendo composto a música original para O Rio do Ouro
(1998) e A Raiz
do Coração (2000) – tendo, no primeiro,
participado brevemente como ator.
Na discografia, além do que foi dito acima, é de relevar que “Ser
solidário”, em 1982, inclui
a gravação de FMI, uma das composições mais célebres de José Mário
Branco: um monólogo com cerca de 20 minutos gravado no Teatro Aberto no qual, acompanhado a guitarra acústica e flauta,
recita e canta um texto que compôs “de rajada”, numa noite de fevereiro de
1979.
Depois disso, José Mário Branco participou no projeto Três Cantos,
ao lado de Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, que resultou numa série de
concertos, um álbum e um DVD.
***
Além de cantor, autor e compositor, foi produtor. Colaborou com diversos
músicos, entre os quais Sérgio Godinho, Luís Represas, Fausto Bordalo Dias,
Janita Salomé, Amélia Muge e Carlos do Carmo. E dizia que fez poucos discos por
causa dessa polivalência, pois gostava muito de trabalhar para os outros, não
se sentindo menos interessado por não ser ele a cantar.
Foi José Mário Branco quem produziu muitos dos
discos de Camané. Mas, da primeira vez, quando o fadista o desafiou a produzir
um disco seu, em 1995, o músico ficou surpreendido, porque nunca se tinha
metido no fado e vinha duma geração que era contra o fado, como contou numa
entrevista ao DN em 2018. Mas começou a gostar de fado por
influência da mulher, a poeta Manuela de Freitas, explicando:
“O primeiro fado que fiz é de 1979 e foi
gravado em 1981. Já influenciado pela Manuela e com ela a acabar-me a letra, é
o “Fado da Tristeza”;
[e] o Fado Penélope foi dessa altura também. E fiz uma coisa
encomendada pelo Carlos do Carmo, chamada Raiz. Foi aí que comecei
a perceber esse mundo e a aprender uma coisa básica: o fado é uma música típica
e, como em qualquer tipo de música, há o bom, o mau e o assim-assim. É preciso
saber distinguir isso.”.
No entanto, durante os anos de 1980, afastou-se do fado, voltando a
apreciá-lo quando trabalhou com Camané, a quem aconselhava a não deixar que os
músicos se sobrepusessem à voz:
“Eu disse ao Camané: nós, para mexermos
nisto, tem de ser com pinças, é microcirurgia. A primeira questão básica é:
tudo depende de ti. O meu trabalho é ajudar-te a conseguires isso e fazer que
tudo o que está à volta não prejudique isso. Claro que pelo meio vão aparecer
as questões do gosto, estéticas, o interesse musical, a frase ser mais assim ou
mais assado, a escrita musical. Mas uma coisa que já na época me fazia confusão
era a barulheira dos músicos.”.
Segundo Kátia Guerreiro, ele “mudou a forma como os músicos
acompanham os fadistas”.
“O que tem de haver no fado, como em
qualquer música cantada, incluindo as óperas, é um coito entre a palavra e a
música”, dizia. O próprio José Mário Branco acabaria por se surpreender por
gostar tanto de fado e de contribuir para a sua renovação, a partir dos anos
1990.
Em 2008, numa das suas raras apresentações em palco, apresentou na
Culturgest, em Lisboa, o espetáculo “Mudar
de Vida”. Mas nos últimos
anos, resistia a espetáculos, porque, sentindo-se “um bocado museológico em
cima do palco”, não queria dar espetáculos só para “cantar as coisas do costume
com as pessoas a acenderem isqueiros e telemóveis e abanar o capacete com as
canções que têm 20 ou 30 anos”. Mantinha-se sobretudo nos
bastidores, como compositor e produtor. Mas a sua obra continuava bem viva. Em 2016, estreou
no Indie Lisboa o filme “Mudar de Vida”, de Nelson Guerreiro e
Pedro Fidalgo, dedicado à vida e à obra do músico.
Como foi dito acima, ganhou dois Prémios
José Afonso, em 1992 e 1996, e foi homenageado, em 2017, na feira do livro
do Porto, no mesmo ano em que celebrou 50 anos de carreira. Para assinalar esse
momento, foram reeditados os sete álbuns de originais e um ao vivo, dum período
que vai de 1971 e 2004. No ano seguinte, editou um duplo álbum com inéditos e
raridades, gravados entre 1967 e 1999. Na altura, a propósito dos 50 anos de
carreira, comentou:
“Não são coisas que me motivem muito, tenho
respeito pelo respeito das pessoas, mas essas histórias das efemérides...”.
Também desde o ano passado, quase todo o seu arquivo do músico está
disponível online no site do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), da Universidade Nova de
Lisboa. E, a este respeito, Manuel Pedro Ferreira, diretor científico do
projeto, explicou:
“É um arquivo central para se perceber como
é o universo da música de intervenção, a relevância política, social e cultural
e também para potenciar reinterpretações do repertório. É memória que está ao
serviço de uma reutilização.”.
Em maio deste ano, por iniciativa do radialista Rui Portulez, que vê no músico
“um bom exemplo inspiracional e de luta” e queria registar uma obra que
considera “intemporal”, foi lançado Um Disco para José Mário Branco,
com 16 temas do autor revisitados por diversos músicos, de Osso Vaidoso a
Camané, passando por Batida ou JP Simões.
A propósito do passamento de José Mário Branco, o músico Janita Salomé pretende
que este acontecimento seja um ponto de partida, fazendo com que a música
portuguesa renasça, porque “a obra que ele nos deixou é muito vasta e variada e
dá muitas sugestões para muitos trabalhos de muita gente que queira seguir a
obra dele”.
***
Independentemente da ideologia e da postura político-partidária do extinto,
fica a obra e o espírito de luta pelas causas em que se acredita, mesmo que
sensíveis aos tempos, às modas. Na verdade, a liberdade e o sentido da vida
vivida em pleno e solidariedade são valores a cultivar, a promover e a garantir
a todos. A cantiga é, de facto, uma arma e a palavra é um instrumento de poder.
E, quando a força da palavra é maior que a força do poder tirânico, é sociedade
é outra e a humanidade é mais digna e segura.
2019.11.21 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário