A
solenidade do Nascimento de São João Batista dá azo a reflexão na linha do
enunciado vertido em epígrafe. Com efeito, no hino de Vésperas, dirigindo-nos
ao Santo, rezamos:
“Um mensageiro vindo das alturas / Vosso nome bendito anunciou, /
Profetizando o vosso ministério / Precursor”.
O Evangelho da Missa da Vigília (repare-se que esta é das poucas solenidades com textos
próprios para a Missa da Vigília – as outras são: a do Natal, a da Páscoa, a do
Pentecostes, a de São Pedro e São Paulo e a da Assunção de Nossa Senhora), tomado de
Lucas, no atinente ao anúncio do nascimento de João (Lc 1,5-17), refere que o anjo Gabriel apareceu ao sacerdote Zacarias
já de avançada idade, que oficiava no Templo, a predizer-lhe que Isabel, sua
esposa, estéril e de idade avançada (eram
um casal justo e cumpridor irrepreensível de todos os mandamentos e leis
do Senhor) iria conceber e dar à luz um filho, ao qual ele poria o nome de João.
E, ante a estupefação de Zacarias, o mensageiro marcou detalhadamente a missão
de João como precursor, o que vai à frente:
“Será cheio do Espírito Santo desde o seio
materno e reconduzirá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu
Deus. Irá à frente do Senhor, com o espírito e o poder de Elias, para
fazer voltar os corações dos pais a seus filhos e os rebeldes à sabedoria
dos justos, a fim de preparar um povo para o Senhor”.
E o
Evangelho da Missa do Dia, também de Lucas (Lc
1,57-66.80) mostra
Zacarias aquando da circuncisão do menino (8 dias de pois do seu
nascimento) a
colocar por escrito (pois tinha emudecido) a ordem do anjo “João é o seu nome”, tal como Isabel
tinha dito aos circunstantes. Depois, abriu-se-lhe
a boca e soltou-se-lhe a língua; e, começando a falar, bendisse a Deus,
com a admiração de todos, que se encheram de temor e levaram a que por toda a região montanhosa da Judeia se tenham
divulgado estes factos.
Por
outro lado, o cântico do “Benedictus”,
proferido por Zacarias na mesma ocasião, se bem revela que este nascimento
significa a visita misericordiosa de Deus ao seu povo e a redenção do mesmo
povo pela mão dum salvador poderoso que aí vem e que nos fará viver em
santidade e justiça todos os dias da nossa vida na presença do Senhor, também
precisa que João não é o Salvador, mas o menino que será chamado profeta do
Altíssimo porque irá à frente do Senhor a preparar os seus caminhos e a dar a
conhecer ao povo a salvação pela remissão dos pecados.
Assim e
por isso, o precursor “será grande aos olhos do Senhor e cheio do Espírito
Santo desde o seio materno” e “muitos se alegrarão com o seu nascimento” (Lc
1,15.14), pois foi
enviado por Deus para dar testemunho da luz e preparar o povo para a vinda do
Senhor (cf
Jo 1,6-7; Lc 1,17).
Na
sua estrita e importante missão de precursor, João advertiu: “Eu não sou o Messias”
(Jo 1,20).
E declarou: “Eu sou a voz de quem
grita no deserto: ‘Retificai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías” (Jo 1,23; cf Mt 3,3; Mc 1,2-3). E Lucas refere ainda os resultados esperados:
“Toda a ravina será preenchida, todo o monte
e colina serão abatidos; os
caminhos tortuosos ficarão direitos e os escabrosos tornar-se-ão planos. E toda a criatura verá a salvação de Deus.” (Lc 3,5-6).
Assim, João
justificou:
“Eu
batizo com água, mas no meio de vós está quem vós não conheceis. É aquele que vem
depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias.”
(Jo 1,26).
Ou de outro
modo, enfatizando a conversão e referindo o poder judicativo do Messias:
“Eu
batizo-vos com água, para vos mover à conversão;
mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu e não sou digno de
lhe descalçar as sandálias. Ele há de batizar-vos no Espírito Santo e no fogo.
Tem na sua mão a pá de joeirar; limpará a sua eira e recolherá o trigo no
celeiro, mas queimará a palha num fogo inextinguível.” (Mt 3,11-12; cf Mc 1,7-8; Lc 3,16-17).
No dia
seguinte, coube-lhe fazer a apresentação presencial de Jesus. Vendo que Ele se
dirigia ao seu encontro, exclamou, frisando o dado nuclear da messianidade, o
resgate pascal do pecado:
“Eis
o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! É aquele de quem eu disse:
‘Depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de
mim’.” (Jo 1,29-30).
Mais, depois
do Batismo que João ministrou a Jesus, também Lhe cedeu alguns dos seus
discípulos com vista à realização da messianidade, pois, como refere o
evangelista,
“No dia seguinte, João encontrava-se de novo ali com dois dos seus
discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus!’. Ouvindo-o
falar assim, os dois discípulos seguiram Jesus, o qual se voltou e, notando que
o seguiam, perguntou-lhes o pretendiam. Eles disseram: ‘Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras?’. Ele
respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis’. Foram, pois, e viram onde morava e ficaram
com Ele nesse dia.” (Jo 1,35-39).
Mais tarde, surge um novo testemunho do Batista sobre Jesus. Tendo Jesus ido com os seus discípulos para a região da
Judeia, onde convivia com eles e batizava, e, estando João a batizar em Enon,
perto de Salim, vinha gente ter com um e com outro para ser batizada, em razão
da abundância da água. Levantou-se, então, uma discussão entre os discípulos de
João e um judeu acerca dos ritos de purificação. Foram, pois ter com João a
dizer-lhe ciosamente: ‘Aquele que estava
contigo na margem de além-Jordão e de quem deste testemunho está a batizar e
toda a gente vai ter com Ele’ (cf Jo 3,22-23.25-26). Aí, João esclareceu desinteressada e perentoriamente:
“Um homem não pode tomar nada como próprio,
se isso não lhe for dado do Céu. Vós mesmos sois testemunhas de que eu disse: ‘Eu não sou o Messias, mas apenas o enviado à
sua frente.’ O esposo é aquele a quem pertence a esposa; mas o amigo do
esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do
esposo. Pois esta é a minha alegria! E tornou-se completa! Ele é que deve
crescer, e eu diminuir.” (Jo 3,27-30).
Ficou, assim
replasmado em definitivo, neste segmento, o papel do precursor com a afirmação
humilde e designiacional da necessidade do crescimento do Messias e da
diminuição funcional daquele que foi enviado à sua frente com uma missão
propedêutica. Quantos, porém, ao longo do tempo, não souberam circunscrever-se
à missão de precursores e se quiseram empoleirar na função de Messias ou de
seus lídimos lugares-tentes, com todos os poderes e honras!
***
E Jesus
confirma a missão precursora do Batista e tece largos elogios à sua
personalidade e ao cumprimento cabal da sua missão propedêutica e antropagógica.
Assim, para
Jesus, João é um profeta e mais
que um profeta: aquele de quem está escrito: Eis que envio o meu
mensageiro diante de ti, para te preparar o caminho. Tanto assim é que entre os nascidos de mulher, não apareceu
ninguém maior do que João Batista; e, no entanto, o mais pequeno no Reino do
Céu é maior do que ele, porque o Reino é arrebatado pelos simples, pelos
humildes e pelos persistentes. Desde o tempo do Batista até agora, o Reino do
Céu tem sido objeto de violência e os violentos apoderam-se dele à força. Todos
os Profetas e a Lei anunciaram isto até João. E, quer se acredite quer não, ele
é o Elias que estava para vir (cf Mt 11,9-14; Lc 7,26-28).
Por outro
lado, o Mestre faz saber – em resposta a um pedido de esclarecimento de
emissários que vinham da parte do precursor, ora preso nas masmorras herodianas
– que o Messias estava já em franca atividade missionária a Patre e especificou os sinais:
“Ide contar a João o que vedes e ouvis: Os
cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres. E
bem-aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de escândalo.” (Mt
11,4-6; Lc 7,22-23).
Com efeito, nessa altura, Jesus curava a muitos das suas doenças,
padecimentos e espíritos malignos e concedia vista a muitos cegos (Lc 7,21) – totalmente em consonância com a missão messiânica
plasmada no cap. 4 de Lucas na sequência da profecia de Isaías, cumprida em
Jesus:
“O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos
cativos e, aos cegos, a
recuperação da vista; a mandar
em liberdade os oprimidos, a
proclamar um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4,18-19).
No Evangelho
de Mateus, o ensinamento de Jesus compendia-se nas Bem-aventuranças, que abrem
o discurso do Sermão da Montanha (vd Mt 5,1-12); e, no de João, a finalidade da vinda de Jesus ao
mundo é que todos “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). E isto pode ser dito e redito de muitos modos a
teor do Evangelho, mas basta que retenhamos o segmento fixado perentoriamente no
Evangelho de Marcos “o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
todos” (Mc 10,45; cf Mt 20,28) e o apelo do
Mestre vertido no Evangelho de João:
“Se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os
pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo
para que, assim como Eu fiz, vós façais também.” (Jo 13,14-15). Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis
uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é
que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”
(Jo13, 34-35).
***
E pronto. Já
percebemos tacitamente como a missão do discípulo que se fez apóstolo (pois ninguém
pode ser apóstolo se não for discípulo; e é insensato e inútil ser discípulo
sem ser apóstolo…) passa
necessariamente por assumir a missão messiânica com a humildade do precursor e
com a alegria de quem tem o privilégio de estar com o esposo e ouvir a sua voz.
Com efeito, tanto João como Jesus anunciavam a chegada e a proximidade do Reino
de Deus e pediam a adesão ao mistério e projeto do Reino através da metanoia da
mente, da do coração, da das atitudes e comportamentos pessoais e da das
estruturas sociais.
Por outro
lado, é mister do discípulo-apóstolo estar disponível para, à semelhança do
Mestre, servir e dar a vida para que todos tenham a vida e a tenham em
abundância. E isto implica ser fiel à unção recebida do Espírito do Senhor para
estar em saída levando a Boa Nova aos pobres, proclamando a libertação aos cativos, recuperando a vista dos cegos,
fazendo andar os coxos, com que fiquem limpos os leprosos, os surdos ouçam e os
mortos ressuscitem, mandando em
liberdade os oprimidos e proclamando o tempo do favor e graça da parte do
Senhor.
Os apóstolos têm o mandato do Senhor,
que implica saída, ação e confiança:
“Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto
vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos
tempos.” (Mt 28,19-20; cf Mc 16,19-20).
Mas este mandato, além do ensino e do Batismo, implica a
compreensão profunda das Escrituras, o revestimento da força do Alto (para ir em saída), a pregação e a aceitação do perdão e o testemunho no
Espírito Santo. Com efeito, em Lucas (26,45-49), pode ler-se:
“Abriu-lhes então o entendimento para
compreenderem as Escrituras e disse-lhes: Assim está escrito que o Messias
havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos ao terceiro dia; que havia de
ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos,
começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E Eu vou mandar
sobre vós o que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos
com a força do Alto.”
E, no
Evangelho de João, estabelece-se a conexão entre a paz, a alegria, o
afastamento do medo, o envio, o dom do Espírito Santo e o perdão dos pecados –
tudo dádivas pascais. Com efeito, na aparição aos Onze na tarde da
Ressurreição, Ele mostrou-se O que fora morto e agora redivive:
“Veio Jesus, pôs-se no
meio deles e disse-lhes: ‘A paz esteja convosco!’ Dito isto, mostrou-lhes as
mãos e o peito. Os discípulos encheram-se de alegria por verem o Senhor. E Ele voltou
a dizer-lhes: ‘A paz convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio
a vós.’. Em seguida, soprou sobre eles e disse-lhes: ‘Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão
perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos’.” (Jo
20,19-23).
Por conseguinte, se ensinam e santificam e encaminham, fica
confirmada, na missão, a dupla qualidade dos discípulos de Luz do Mundo e Sal
da Terra (cf Mt 5,13-16), mantendo e renovando constantemente o vigor
transformador do sal, para que não sejam considerados servos inúteis, e fazendo
brilhar a luz discipular diante dos homens, de modo que, vendo as boas obras,
glorifiquem o Pai, que está no Céu.
E, de facto, Pedro sintetizou bem no discurso do Pentecostes
a súmula do anúncio – “Deus estabeleceu como Senhor e Messias a
esse Jesus por vós crucificado” (At
2,36)
– e o resultado da aceitação da pregação – “Convertei-vos e peça cada um o
baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis,
então, o dom do Espírito Santo” (At 2,38)
Em suma, o
essencial do apostolado está na seguinte verificação: “Com
grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e
uma grande graça operava em todos eles” (At
4,33).
Se isto acontecer, os que abraçam a fé terão “um só coração e uma só alma” e
não haverá “ninguém necessitado” (cf At
4,32.34), porque a doutrina e o dinamismo das bem-aventuranças se evidenciarão.
Importa que os apóstolos escutem o Espírito e também aceitem, a jusante, a
humildade e a determinação que o precursor teve a montante – que o Mestre
cresça. Na verdade, o apóstolo tem de ser, perante muitos, um verdadeiro
precursor em relação a Jesus, ou seja, um verdadeiro propedeuta, um pedagogo –
não uma autorreferência – e, em sentido recíproco, um veículo da graça e do
favor misericordioso para cada um dos redimidos. Graças sejam, entretanto dadas
a Deus pela plêiade de precursores/apóstolos que têm feito ao longo da História
discípulos de Cristo e obreiros e educadores da paz!
***
Poderá
ser neste espírito que os crentes tenham, desta feita, celebrado João Batista, o único santo, com a Virgem Maria, de
quem a Liturgia celebra o nascimento para a terra – o que se deve à missão
única, que, na História da Salvação, foi confiada a este homem, santificado, no
seio de sua mãe, pela presença do Salvador (que ia no ventre de Maria aquando da sua visita a Isabel), que mais
tarde, dele fará um belo elogio (Lc 7,28), como foi
referido.
Elo de ligação entre a Antiga e a Nova Aliança, João foi
acima de tudo, o enviado de Deus, uma testemunha fiel da Luz, aquele que
anunciou Cristo e o apresentou ao mundo. Profeta por excelência, a ponto de não
ser senão uma “Voz” de Deus, é o Precursor imediato de Cristo: vai à Sua frente
a apontar, com a palavra e com o exemplo da vida, as condições necessárias para
se alcançar a Salvação.
A Solenidade do Precursor é, pois, um convite a que reconheçamos
Cristo, Sol que nos vem visitar na Eucaristia, a que dêmos testemunho d’Ele,
com o ardor, o desprendimento e a generosidade do Batista e a que
interiorizemos a tarefa de discípulos e a missão de apóstolos.
2018.06.25
– Louro de Carvalho
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