Celebrou-se na passada quinta-feira, dia 31 de maio, a Solenidade do Corpus Christi ou Corpo de Deus (ou do Corpo e Sangue de Cristo – efetivamente é em Jesus que Deus
assume o corpo). Porém, nos países em que a predita quinta-feira não é feriado, a
Solenidade passa para o domingo seguinte.
Também referi, na reflexão da passada quinta-feira, que, se não ocorresse
a Solenidade, se faria a memória litúrgica da Visitação de Nossa Senhora. Não
obstante, é de referir que o culto de Maria não fica prejudicado pela
circunstância, quer porque a memória litúrgica é transferível, quer porque a
espiritualidade mariana se encaminha para o Mistério de Cristo e se integra
nele; e esplende no Mistério da Igreja, como adiante se explicitará.
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A celebração do Corpus Christi
marca a importância da Eucaristia na
vida cristã. Mas é pertinente explicitar o porquê da sua celebração com
fundamento bíblico ao encontro das necessidades do crente. É a vontade do Senhor
que postula a celebração (“Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco” – Lc 22,15). É também um mandamento (ou ordem) de Jesus, que é preciso cumprir (“Fazei isto para celebrar a minha memória” – Lc
22,19). Deste modo, a Eucaristia é
Memória da sua Vida, Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão. E Jesus, Pão
repartido para a vida do mundo, recordou aos donos da memória esquecimentos,
por vezes, crónicos: os pobres, os cegos, os surdos, os coxos, a justiça, a
mulher e outros. Com efeito, memória é missão: “O Espírito do Senhor está sobre mim...” (Lc 4, 18-19). A pari, ressalta que a Eucaristia é alimento espiritual do
homem crente que peregrina no mundo (o alimento do peregrino é Palavra e
Pão):
“Não só de pão vive o homem, mas
de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). “Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue vive em mim e eu vivo nele. E como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo
pelo Pai, assim aquele que me recebe como alimento viverá por mim”. (Jo
6,56-57).
Em seu
testamento, Jesus deixou -nos a sua herança: a Eucaristia, sacramento, sua
presença real, valor incalculável e o bem maior que a Igreja nos oferece pelo
mistério da consagração.
Fica pela Eucaristia atualizada a presença real de Jesus no mundo, em conformidade com a promessa: “Eu estarei convosco todos os dias até ao fim
dos tempos” (Mt 28,20).
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Asseguram os teólogos e os liturgistas, bem como o sentem os cristãos,
que o Corpus Christi é uma demonstração pública da fé. Os textos da Liturgia da Palavra da
Solenidade – a 1.ª Leitura,
do Livro do Êxodo (Ex 24,3-8), a 2.ª Leitura, da Carta aos
Hebreus (Heb 9,11-15) e o Evangelho de Marcos (Mc 14,12-16.22-26) – mostram que
fazer memória da doação do Senhor nos leva à partilha da vida em plenitude,
vida que fica toda em cada um e que a alegria desta convicção de fé, esperança
e vida não pode ficar encerrada no coração de cada um ou no interior do templo.
E, se é de guardar o Sacramento no local da reserva (sacrário), não se pode fazê-lo como quem utiliza a prateleira do
não utilizável agora. Assim, a História foi ensinando a Igreja a tomar
as atitudes mais consentâneas com a sublimidade e a disponibilidade do
Mistério.
Na Igreja
primitiva, celebrava-se o sacrifício da eucaristia no contexto de refeição
entre famílias, vindo o sacrário a surgir pela necessidade de levar o Pão da
Vida aos reclusos e enfermos, nomeadamente moribundos, bem como os condenados
ao martírio. Para os enfermos moribundos e para os mártires a comunhão no Corpo
do Senhor era considerada o adiutorium viaticum
ou simplesmente ‘viaticum’, auxílio
para (última) viagem. Ainda hoje se fala do sagrado viático quando
o sacramento é ministrado aos enfermos, sobretudo se agonizantes. Depois,
viu-se na reserva eucarística em sacrário uma oportunidade para distribuir a
comunhão aos que não puderam participar na celebração, para a exposição do
Santíssimo Sacramento e adoração, para a procissão eucarística, a mostrar que
Ele caminha connosco nesta peregrinação terrestre e vem ao nosso encontro, tal
como está disponível para a nossa visita e ação de companheirismo.
Na Idade Média,
frente às heresias que negavam a presença real de Jesus, desenvolveu-se o culto
eucarístico e o Papa Urbano IV, em 1264, instituiu esta festa/solenidade para
toda a Igreja, a celebrar na quinta-feira após a Solenidade da Santíssima
Trindade, 60 dias depois da Páscoa. Faz-se memória da Instituição da Eucaristia
em Quinta-feira Santa, mas, agora, com solene festa pública constando, além da
celebração da Missa, de procissões do Santíssimo Sacramento ou ‘passeatas da fé
eucarística”, a dar público testemunho da presença real e eminente de Jesus na
Hóstia santa, fruto da celebração eucarística, que foi comungada no banquete da
fraternidade, expressão da comum filiação divina. É a verdadeira exclaustração
da Eucaristia a dar o estatuto da cidadania na cidade dos homens a Jesus Cristo
para que Ele opere a transformação do século.
Na segunda
metade do século XIX, em França, nasceram os congressos eucarísticos, por
iniciativa da devota Emilie Tamisier (1834-1910), sob inspiração de São Pedro Julião Eymard (1811-1868), chamado o “Apóstolo da Eucaristia”, que tomou a
iniciativa de organizar, com a ajuda de outros leigos, sacerdotes e bispos e
com a bênção do Papa Leão XIII, o primeiro Congresso Eucarístico Internacional
em Lille, com o tema: “A Eucaristia salva
o mundo”. Apostava-se na renovada fé em Cristo presente na Eucaristia como
remédio contra a ignorância e a indiferença religiosa. Os primeiros Congressos
inspiraram-se, pois, na viva fé na presença real da pessoa de Jesus no sacramento
da Eucaristia. Assim, o culto eucarístico manifestava-se de modo particular
pela adoração solene e pelas grandiosas procissões que evidenciavam o triunfo
da Eucaristia. Com Pio
XI os Congressos Eucarísticos tornaram-se internacionais e passaram a ser
celebrados rotativamente em todos os Continentes, adquirindo a dimensão
missionária e de “reevangelização” (expressão usada na
preparação do Congresso de Manila em 1937).
Tal como o
povo da época de Jesus O acompanhava, nós assim o fazemos, manifestando as nossas
dores e alegrias. Os evangelhos registam que, na caminhada de Jesus estava para
Jerusalém, acompanhado de muitas pessoas, um cego à ‘beira do caminho’, ouvindo
certos murmúrios, perguntou o que era aquilo e informaram-no:
“É Jesus de Nazaré que vem
passando! Então, o cego pôs-se a exclamar: ‘Jesus! Filho de David, tem
misericórdia de mim!’. Os que caminhavam à frente repreenderam-no para
que se calasse; entretanto, o homem gritava cada vez mais alto: Filho de David,
tem misericórdia de mim!” (Lc 18,37-39).
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O Corpus Christi,
solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é a festa do Pão Eucarístico. Pão é
alimento universal. Alimentou Elias na sua viagem e o povo no deserto (ázimos, maná) durante muitos anos, rumo à Terra Prometida. Agora,
Jesus, feito o Pão da Vida, alimenta-nos a nós, povo peregrino, rumo ao céu,
nossa Terra Prometida: O Pão da Vida, a comunhão, une-nos a Cristo e
aos irmãos e ensina-nos a abrir as mãos para partir e repartir o pão. Pão e
vinho são produtos da terra e, muitas vezes, dividem as pessoas. Porém, quando
transformados, unem não só ao nível afetivo, mas também ao nível material,
tornam-se meio de comunhão. Pão é fruto do trabalho humano, mas quando
repartido, torna-se divino, Jesus eucarístico, Deus Connosco, Comunhão,
banquete que antecipa o céu, “Cristo tudo em todos”. E o cristão,
como ser humano, tem necessidade de alimento para conservar a vida e, como
crente e discípulo de Jesus, tem mais necessidade dum alimento que lhe dê
força, coragem, perseverança e segurança; tem necessidade dum pão que o
capacite para a superação das dificuldades vitais. A Eucaristia é este pão, a
segurança de que Deus nos ama, a certeza da ressurreição. Sem alimento, não se
vive, não se ama, não se trabalha, não se relaciona, não se faz comunidade, não
se constrói a felicidade. E Jesus não é só alimento, é presença, tal como, por
exemplo, o aleitamento materno não é só alimento, mas é também afeto, amor,
acolhimento, etc., que traz consequências psicológicas benéfica; e a refeição
humana, se tomada em conjunto, faz presença dialogante em sadia convivência,
afeto e familiaridade ou em planificação de vida e mesmo de negócios.
O Sangue
Eucarístico da Nova Aliança dá a vida pelas vítimas – enquanto os ídolos querem
o sangue (a vida dos seguidores) – e
suscita de cada um a capacidade e a obrigação de presença na comunidade e junto
de cada um dos irmãos, mormente dos que mais precisam. E bem podemos inferir
que Deus não está isolado no céu. Cuida de nos alimentar e saciar. Para tanto,
desceu do Céu para o seio de Maria (o Verbo Se fez carne); do seio de Maria para a manjedoura; da manjedoura
para a vida de ensino e sinais, da vida de ensino e sinais para a Ceia e para a
Cruz; da Ceia e da Cruz, por palavras e sinais, para um pedacito de pão e um
pouquito de vinho; e do pão e do vinho para a Comunidade, para cada um de nós e
para o mundo, que urge transfigurar segundo o coração de Deus.
A Eucaristia
é inequivocamente Sacrifício, atualização incruenta do único sacrifício de Jesus: “Para a glória de seu nome, para o nosso
bem e de toda a Santa Igreja”; libertação do pecado e mistério da fé;
Evangelho encarnado: Boa Nova, Nova Criação: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5); consagração total das nossas forças e de toda a
nossa vida às atividades na Igreja e na missão; doação da vida para ganhar a
eternidade: dedicar uma hora, das 168 horas que Deus nos dá, por semana, para
encontrar-se consigo mesmo, com Deus e com os irmãos; “Quem quiser ganhar a sua vida perdê-la-á e quem perder a sua vida
por causa de mim e do Evangelho ganhá-la-á” (Mt 10,39); e antecipação da vida dos últimos tempos.
O pão
humano, quando repartido e distribuído, é divino. Cristo Eucarístico (Deus-connosco), tudo em todos, é comunhão, banquete que antecipa o
céu. O Mistério Eucarístico sintetiza-se assim:
“Ó sagrado banquete em que se recebe Cristo e se comemora a
sua Paixão, em a que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura
glória”.
***
A Eucaristia experiencia-se. No Antigo Testamento, Israel experienciou a presença
de Javé (Deus Libertador) e guardou para sempre na memória e coração (conheceu Deus
pela inteligência e pelos sentidos). A esta
experiência chamou Páscoa, início de nova era, de vida nova: “Este mês será para vós o começo dos
meses, será o primeiro do ano” (Ex 12,2). E nós devemos experimentar a Eucaristia como AÇÃO
DE GRAÇAS (ação: atos,
movimento; graça: disposição interior
para projetar e acolher o que é belo, puro, bom, alegre, etc.). No Batismo, somos revestidos da graça de Deus,
mas, quando pecamos, pomo-nos fora da graça (des-graça = pecado, tragédia,
acidente) e fora da comunhão (excomunhão). Mas Deus chama-nos à comunhão, pelo sacramento da
reconciliação, dando-nos a misericórdia e o perdão (perdão = comunicação
= comunhão).
E é necessário ter em conta que celebrar a Eucaristia tem consequências.
Como festa
de Deus, Pai comum de todos, postula a partilha ou comunhão eucarística, mas
também de vida, o que se traduz no compromisso com o Pão: “Ninguém tenha demais e a ninguém falte o
que comer” (vd Ex 12,1-14). Como festa
da unidade – “Que todos sejam um” (Jo 17,21) – deve suprimir as divisões. Como festa da
preservação da vida, passar do Antigo Testamento, em que o sangue do cordeiro
nas portas das casas do povo de Israel era sinal de preservação da vida, para o
novo tempo, em que é o Sangue de Cristo, o cordeiro de Deus, que preserva a
nossa vida hoje e para a eternidade. Para isso é preciso atravessar o mar
vermelho do sangue de Jesus em cujas ondas se afoga o pecado. Como oferta da reconciliação
com o passado desastroso (ervas amargas), ensina
que foi na dificuldade que os antigos experienciaram Deus e iniciaram uma longa
viagem para fora do ambiente de pecado. Porém, hoje esta reconciliação faz-se
energia do presente com vista ao futuro: Jesus atua e onde Jesus atua todos os
males são debelados e ultrapassados. Como garante da esperança do futuro, é
antecipação da vinda do Senhor, que não é desespero – fim do mundo, fogo,
cataclismo, aniquilação, catástrofes, etc. –, mas a realização dos anseios dos
homens. Pode o mundo acabar numa Eucaristia. Quando a Eucaristia for celebrada
em toda a terra, então, esse mundo passará e o Senhor manifestar-Se-á em Sua
glória. Deus novamente habitará no meio dos homens:
“Aí não haverá mais morte, nem pranto, nem
dor. Ele será o nosso Deus e nós seremos o seu Povo (cf Ap 21,3-5). Quando isso
poderá ocorrer? Quando formos humildes e lavarmos os pés uns dos outros (Jo 13,13-15).”.
Obviamente,
se as consequências forem assumidas, evidenciar-se-ão os frutos da Eucaristia.
Na vertente
de lição de vida, releva-se o exemplo do lava-pés, humildade (Jo 13,1-20). Enquanto apelo ao constante recomeço, torna-se
esperança incansável de chegar à plenitude da viagem: “Muitos são os chamados e poucos os
escolhidos” (Mt 22,14). Como resposta
de Deus aos profundos anseios do ser humano (mistérios e problemas), é o encontro de dois seres eternamente apaixonados,
Deus que desce e o ser humano que se eleva – encontro em que ocorre a explosão
do amor (motivará
todas as dimensões d existência, vg: trabalho, estudo, família...). Enquanto caminho de paz e felicidade, faz reunir em
torno do Senhor os que são seus, os que querem se conhecer, amar, servir r
perdoar.
Assim, a
Eucaristia é a morada de Deus no meio dos homens, é salvação dos homens,
garantia de ressurreição e fator da Comunhão dos Santos. Abre os olhos para a
compreensão das Escrituras e do âmago dos mistérios da Fé: vg: o episódio dos
Discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).
***
Finalmente,
o Corpus
Christi é festa de Maria. Ela O concebeu e deu à luz, como acima foi
referido (Lc 1,26,38; 2,1-20). O hinário da Solenidade o atesta: Nobis datus, nobis natus ex intacta Virgine (Pange,
Língua). E, por Maria,
veio a primeira santificação, pois, com a sua visita a Isabel, o menino Deus que
se desenvolvia em seu ventre fez exultar João no ventre de Isabel e, Maria agradada
pelo sinal do nosso Deus, entoou o cântico do louvor e misericórdia (vd
Lc 1,39-55).
O Corpus Christi é festa da Igreja, já
porque esta a dinamiza, já porque é o seu Corpo, sendo Jesus a cabeça deste
corpo. É a festa de cada um de nós visto que somos membros deste corpo na
unidade do mesmo Espírito e na diversidade de dons e serviços. É ainda a festa
de Maria, dado que Ela é o protótipo, a figura, a imagem da Igreja, o membro proeminente
a mãe, a intercessora e a despenseira das graças. E, como a Ela cabe mostrar
Jesus ao mundo, também à Igreja e a cada um de nós cabe essa missão. Porém, na
certeza de que é Cristo a referência do culto e obviamente desta festa solene,
como fica espelhado na doxologia recitada ou cantada em todas as celebrações
eucarísticas, no remate da Anáfora:
“Por Cristo, Com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na
unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”.
Bendita esta
solene festa do Cristo total, bendito o compromisso inequívoco dos crentes!
2018.06.03 –
Louro de Carvalho
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