Como
previsto, Dom António Augusto dos Santos Marto, Bispo de Leiria-Fátima, foi
ontem, dia 28 de junho, criado cardeal da Santa Igreja Romana com o título de
Santa Maria sobre Minerva, basílica menor e uma das principais igrejas dominicanas
de Roma.
O nome
desta basílica é uma referência à primeira igreja construída no local,
diretamente sobre (em latim: supra)
as ruínas ou fundações dum templo dedicado à deusa egípcia Ísis,
incorretamente identificada com a deusa greco-romana Atena/Minerva. A basílica
está localizada na PIazza della
Minerva ,
um quarteirão atrás do Panteão, no bairro Pigna (Rione IX), no antigo distrito conhecido como Campus Martius. Já é visível o edifício atual e
a disposição das estruturas vizinhas em detalhes no Mapa de Nolli de 1748.
Na
cerimónia, integrada numa celebração da Palavra, preparada para o efeito, os
novos cardeais emitiram o compromisso de fidelidade a Cristo e ao Evangelho, de
obediência à Igreja na pessoa do Sucessor de Pedro, de comunhão com a Igreja
Católica por palavras e atitudes, de sigilo sobre o que lhes vier a ser confiado
dada a sua nova condição, da determinação de nunca prejudicar a Igreja ou ferir
a sua honorabilidade e do exercício proficiente das obrigações de que forem
incumbidos. Depois, foram-lhes entregues o anel e o barrete próprios do cardinalato,
bem como o título ou a diaconia a que fica adscrito cada um.
Sobre o
decurso das cerimónias e do modo como as viveu falou o novo cardeal português.
De facto, nas primeiras declarações após a sua elevação ao cardinalato, confessou
ter sentido “um peso que não tinha sentido antes” quando se aproximou do Papa para
receber as insígnias cardinalícias. E explicou aos jornalistas portugueses no
Vaticano:
“À
medida que a gente se aproxima para ser investido, a gente sente um peso.
Parece que não sentiu antes, mas sente assim como que um peso cá dentro a dizer
assim: ‘Vais assumir uma nova missão’. Mas depois chega-se lá, àquela
comemoração, na entrega das insígnias, a gente saúda o Papa e fica satisfeito.”.
E acrescentou
quase em tom repetitivo:
“Naquele
momento anterior, enquanto sobe as escadas, se está ali à espera um bocadinho e
sobe as escadas até lá chegar… Eu falo por mim, os outros não sei o que
sentiram. Parece que senti um peso que não tinha sentido antes. Quando desci,
aí já estava sereno e aliviado”.
Dom António
Marto revelou ainda a conversa que teve com o Papa no minibus que transportou os
novos cardeais para a Aula Paulo VI – depois duma breve visita ao Papa emérito
Bento XVI, que encontrou com poucas forças, mas bem de saúde:
“Agora
no minibus em que vínhamos, eu entrei e ele disse assim: ‘O teu cardinalato foi
uma carícia della Madonna’. E eu disse assim: ‘Acredito, porque eu ainda não
compreendi porque é que foi!’.”.
***
Ora, este
último segmento que reporta um minidiálogo entre Francisco e António vem ao
encontro dos que entendem que Fátima e o seu centenário terão pesado na decisão
do Papa com vista à distinção do Bispo de Leiria-Fátima, como o próprio
admitiu, bem como os responsáveis pela dinâmica do Santuário. Foi efetivamente
uma carícia da Mãe ao seu mais proeminente servidor na Cova da Iria, embora
sejam de ter em conta as aptidões de Marto na cooperação para a reforma da
Igreja na linha do Papa Francisco, em todos os aspetos, mas em especial, como
ele disse, na doutrina, na família, no desenvolvimento humano integral e na
cultura.
A este
respeito, Dom Carlos Azevedo, delegado do Conselho Pontifício para a Cultura,
sustenta que a ascensão do Bispo de Leiria-Fátima a cardeal não está conexa com
Fátima, mas com o contacto direto que o Papa teve com o prelado e com as suas
posições relativas à reforma da Igreja. Não terá toda a razão, mas tem o mérito
de salientar o fundamental no pensamento e na ação de Francisco, quando refere
que “o Papa escolhe pessoas dentro da perspetiva de Igreja que ele tem, sendo,
portanto, muitas pessoas escolhidas pessoalmente por ele”. E diz que “não tem a
razão de ser de Portugal e não tem a razão de ser de Fátima, até me atrevo a
dizer”.
É óbvio que ser
de Portugal ou de Fátima não é determinante, mas pode, neste caso, ter sido um
adjuvante. Quem leu a carta que Francisco dirigiu a António Marto a agradecer a
receção em Fátima, pôde pensar de forma humorística como eu pensei, que o fez
cardeal já que, neste momento, não o podia canonizar. No entanto – e mais uma
vez o Bispo português que trabalha na Cúria Romana como delegado para os bens
culturais da Igreja e como membro da Comissão de Arqueologia tem um mérito, o
de chamar a atenção para algo relevante, agora na figura do Bispo de
Leiria-Fátima, quando dele diz:
“A escolha do Papa recaiu sobre Dom António
porque o bispo de Leiria-Fátima ‘é um homem que se identifica com a reforma da
Igreja que é preciso fazer e, portanto, é alguém que pode ser membro ativo
dessa mudança e dessa reforma da Igreja’.”.
Mais
sublinhou que “é uma decisão pessoal”. E Dom Carlos Azevedo sabe do que fala,
neste aspeto, pois foi colega de António Marto na equipa de formadores do
seminário do Porto. Ora, questionado sobre a possibilidade de se ler a nomeação
como forma de destacar a importância de Fátima, considerou que “o Papa não é
muito sensível a essa perspetiva” e que essa é uma forma “bairrista” de
analisar a escolha de Francisco.
Quanto ao
bairrismo, era de concordar se a atenção a Fátima fosse determinante para a
escolha. Porém, como apontei, tudo leva a crer que, mesmo sem bairrismo, o
fenómeno Fátima esteve presente. Não obstante, Carlos Azevedo é categórico e
tem razão ao insistir que “o Papa é Papa da Igreja universal” e ao fazer reparo
em que “ nós às vezes temos uma visão muito nacionalista da Igreja”. Ora, como
muito bem observa, “é preciso ter uma visão universal da Igreja”; e o Papa
Francisco, como Pastor de toda a Igreja “não quer valorizar este aspeto ou
aquele, privilegiar” um ou outro local de culto. Todavia, como lembrou, quando o
Papa vai a um Santuário mariano, “ele próprio manifesta a sua devoção e a sua
relação pessoal com Maria”. E o Papa Francisco “é muito sensível do ponto de
vista da religiosidade popular”.
Seja como
for, Carlos Azevedo reconhece que “o Santuário de Fátima tem tido uma projeção
internacional acima de qualquer outro e há que perceber – e as pessoas que
rodeiam o Papa ajudam-no a perceber – a importância que tem não só para
Portugal mas para todo o mundo”.
***
Dom António Marto, na manhã da sua
elevação ao cardinalato, em conferência de imprensa no Vaticano, sustentou que
Fátima não institui uma tradição como existente em Lisboa, pelo que não será de
esperar que os próximos bispos da diocese de Leiria-Fátima sejam todos nomeados
cardeais. E tornou a sublinhar, ante a imprensa portuguesa e internacional, que
a sua elevação a cardeal é uma oportunidade de continuar a ser “um colaborador
próximo” na “reforma da Igreja que o Papa Francisco quer levar para a frente”. Contudo,
a horas da celebração que o iria formalmente elevar a cardeal, não sabia ainda
qual a missão concreta que lhe vai ser atribuída e diz não querer antecipar-se
à escolha do líder da Igreja Católica, mostrando-se “em total disponibilidade
de serviço para o que o Papa quiser”.
Hoje, dia 29, o da Solenidade dos Apóstolos
Pedro e Paulo, Marto concelebrou com o Papa e os demais cardeais e foi homenageado
na embaixada de Portugal junto da Santa Sé.
Em todas as cerimónias cardinalícias,
o Governo esteve representado pela Ministra da Justiça.
***
Em entrevista
à agência Ecclesia, António Marto disse
da surpresa da nomeação, mas frisou que não se pode dizer “não” ao Papa. E, chamado a ser
colaborador mais próximo do Papa no que Ele lhe confiar, está com tranquilidade
e paz de espírito na aceitação deste encargo e missão.
Quanto
ao significado de ser cardeal no
pontificado de Francisco, que pede bispos com cheiro a ovelhas, frisou
que este Papa “trouxe um
estilo novo de ser pastor, de ser bispo” e mesmo de ser cardeal – “um estilo de
pastor que leva o seu tempo a ser interiorizado por todos” ou “um estilo de
pastor próximo, cheio de simplicidade”, no modo de apresentação, na forma de
falar às
pessoas e na forma como se torna próximo. “É sinal duma imagem de Igreja evangélica, ao estilo de Jesus”,
que se aproxima das pessoas, que sai pelas ruas. A Igreja em saída é “a que vai
ao encontro de todos sem exceção, sem descriminações, que não aborda as pessoas
logo com condenações, mas que se põe à escuta e procura entrar no coração
das pessoas e aí abrir caminhos novos de vida com misericórdia, paciência e
compreensão”. E enfatiza:
“É uma imagem de
Igreja próxima, misericordiosa, em saída no sentido missionário. A palavra missionário
pode, às vezes, dar o sentido de proselitismo, mas não. É a Igreja em saída que
se quer fazer próxima e, por isso, encontrar caminhos novos para ir o encontro das pessoas, nas várias periferias que são
sobretudo as periferias humanas existenciais, daqueles que sofrem, dos mais
pobres, dos descartados, destes problemas agora mais urgentes a cair no nosso
mundo como são os migrantes, os prófugos – e o seu acolhimento. Construir
pontes de encontro porque vivemos um momento de muita competição e
competitividade, de crispação a nível mundial,
entre relações e entre os povos. O Papa tem sido um construtor de pontes, de encontro e
entendimento entre os povos. Penso que é uma imagem de Igreja
muito bela, muito mais próxima do Evangelho, muito evangélica.”. “
Da reforma da Igreja
acionada e incrementada por Francisco diz que o povo católico se deixa
contagiar por este modo de ser e por esta imagem de Igreja que o Papa veicula. São
hoje naturais as resistências, como sempre o foram, só que agora ganham mais
notoriedade. E nós devemos relevar a “quase totalidade ou grande maioria do povo
de Deus que acolhe com alegria e entusiasmo esta reforma”.
Garante que os bispos portugueses, no atinente à Amoris
Laetitia, estão em sintonia com o Papa, embora as linguagens sejam um
pouco diferentes. É, de facto, importante o esforço em ordem a maior integração
dos fiéis divorciados em nova união. Na verdade, o Papa “fala da alegria do amor que
transparece no matrimónio entre homem e mulher e na própria família, que
daí deriva, mas não pode
fechar os olhos e esconder as fragilidades a que muitos fiéis estão sujeitos,
muitos com grande sofrimento porque desejam continuar a viver a sua fé, uma fé convicta, numa boa relação com Deus e
com a Igreja”. E Francisco, com efeito, aprofundou o que vinha de outros Papas
e descobriu, na grande tradição da Igreja, quer no Evangelho, quer em Tomás de Aquino e na tradição do
discernimento inaciano, “um caminho para discernir com seriedade”, ou seja, um
itinerário (pessoal e pastoral,
responsável e etápico)
para, em consciência, as pessoas se porem
diante de Deus e decidirem por uma maior integração dentro da comunidade
cristã, que pode chegar ou não ao acesso aos sacramentos. É o primado da consciência
pessoal, que deve ser constantemente iluminada e formada, no que pode ajudar o
aconselhamento, na esteira da abertura do Concílio Vaticano II, que está ainda muito
por cumprir.
Em relação à juventude de hoje o novo
cardeal discorre:
“A juventude,
hoje, é uma galáxia. Não se pode definir todo o mundo juvenil com uma configuração
concreta. É um mundo novo que está a nascer, sobretudo marcado pela era digital, e,
quando falamos de digital, não falamos em meras técnicas, mas numa nova cultura
– uma nova cultura de comunicação, de relação, de trabalho até, empresarial, da
visão do mundo. Isso levanta questões, até na vivência da fé.”.
Considerando ser este o panorama do
mundo ocidental, frisa o que se passa na África e na Ásia:
“Eu vejo nos
peregrinos que vêm desses pontos geográficos e que aqui chegam com uma interioridade da fé que nos deixa
maravilhados porque no Ocidente vivemos no imediato. Eles vêm e manifestam a
interioridade da fé na atitude e no rosto, uma interioridade que lhes dá gozo, serenidade,
alegria e paz.”.
Desejando que este intercâmbio esteja
presente no próximo Sínodo, reconhece que não conhece bem o mundo juvenil, embora
gostasse de o conhecer, mas diz que a idade parece já não lho permitir. Procura
estar conectado com as novas técnicas da comunicação, mas pensa que tem de vir
gente nova que estabeleça melhor esta conexão com o mundo juvenil numa
linguagem nova.
No entanto, frisou que o ambiente
geral – e não só o do mundo jovem – é o da fragmentação da cultura: é preciso
voltar, mas vai levar tempo, “aos valores fundamentais partilhados, a consensos
sociais partilhados para não vivermos numa sociedade fragmentada e dividida,
sobretudo numa sociedade que cai na cultura da indiferença, de quem passa à frente e não olha para o irmão ao
lado, à cultura do descarte”. E o Papa está a propor “a cultura do encontro”.
Do
muito que diz a propósito de Fátima
na entrevista, é de reter, a meu ver, o seguinte:
O Papa
percebe muito bem “o
sentido, o significado e o alcance de Fátima, da sua mensagem”.
António Marto é um convertido a
Fátima. Não gostava da expressão “altar do mundo”. Porém, ao ver peregrinos de
todo o mundo, de todos os continentes cada um com a expressão da sua fé, reconhece Fátima como o espelho dos vários modos de viver a
fé entre o nosso povo. A experiência da universalidade
de Fátima fá-lo aceitar Fátima como santuário mundial. Tanto assim é que não exclui ninguém, nem o pomposo cardeal
Burke nem os lefebvrianos. Só se lhes pediu que não criticassem o Vaticano II
nem o Papa.
Independentemente de ter ou não um
cardeal, Fátima já se impôs por si mesma – já o dizia o Cardeal Cerejeira.
Em termos
das preocupações mundiais,
António Marto está com as reformas lideradas pelo Papa Francisco, quer dentro
da Igreja e da Cúria Romana, quer na relação com o mundo eivado dum capitalismo
feroz e necessitado de líderes e da dimensão da solidariedade, diálogo e partilha.
Frisa a dimensão social do Evangelho e a dimensão da paz na ótica de Paulo
VI, que disse: “O novo nome da paz é o desenvolvimento”. E refere que um dos inspiradores do
Papa Francisco é o Papa Paulo VI.
Para
António Marto, João
XXIII deu início a toda a abertura à Igreja, salientando terem sido os anciãos a fazer as grandes
reformas, baseados na experiência de vida acumulada, no testemunho de fé e de
amor à Igreja e no discernimento. E não esquece a frase joanina que Francisco retomou: “A Igreja prefere usar a medicina da misericórdia às armas da condenação”.
Finalmente,
o novo cardeal salienta o cariz
mariano de Francisco, pelo que admite, em resposta a Paulo Rocha, que o
Papa goste de pôr uma nota da mensagem fatimita no colégio cardinalício, já que
o Papa diz que o colégio cardinalício procura exprimir a universalidade da
Igreja e das caraterísticas de cada Igreja particular. Diz a este respeito:
“Todos sabemos que o
Papa tem um grande cariz mariano. Possivelmente quer também que esse cariz
mariano esteja presente com esta mensagem de Fátima, que é sempre atual porque
acompanha a história de cada século e de cada década, iluminando-a. Quando o Papa regressou ao Vaticano, após a visita a
Fátima, na primeira intervenção no Angelus
disse: ‘procuremos viver na luz que vem de
Fátima’.”.
E, assim, Evangelho, Igreja, Fátima, Papa
e novo Cardeal vão de vento em popa, mas não em bico se pés! A carícia da Mãe é
inestimável.
2018.06.29 – Louro de Carvalho
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