Começa a
ser trivial, no comentário a greves indesejadas por parte de alguns setores da
opinião pública, cada vez mais prevalecentes, referir o respeito pelo direito à
greve, mas… Há sempre um “mas”. Dantes, dizia-se que a greve era política ou
até selvagem ou, mais suavemente, injusta, desestabilizadora, lesiva da
economia e prejudicial aos próprios trabalhadores. Agora, diz-se que vai contra
os direitos das pessoas, prejudica os interesses de quem trabalha, cria a
instabilidade nas empresas e assim por diante.
Não
raro, aponta-se o dedo a alguns profissionais que trabalham no setor público e
no setor privado que tomam dupla postura em tempo de greve: exercem o direito à
greve no setor público e o direito ao trabalho no setor privado. Por decoro,
abstenho-me de referir classe(s) em que isto sucede na realidade, o que me
causa um cívico enjoo.
Que a
greve é um direito dos trabalhadores é inquestionável. É a Constituição que o
estabelece de forma quase absoluta, sem que se lhe possa opor uma atitude
simétrica por parte do empregador. Com efeito, o n.º 1 do art.º 57.º da CRP
estatui taxativamente: “É garantido o
direito à greve”. E o n.º 2 do mesmo artigo estabelece: “Compete aos trabalhadores definir o âmbito
de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse
âmbito”. É devido a esta norma do n.º 2 (definir o âmbito
de interesses) que
não se pode considerar absoluto o direito à greve. Já a definição de serviços
mínimos ou o estabelecimento de exceções por parte de outras entidades, que não
os legítimos representantes dos trabalhadores, levanta muitas dúvidas. Não
obstante, o n.º 3 do supracitado art.º 57.º (mais um dado a
contrariar a índole absoluta deste direito)
prevê que a lei ordinária defina “as condições de prestação, durante a greve,
de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações”
e os “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis”.
Porém, o empregador não pode
lançar mão do lock-out, dada a
proibição terminante estipulada ano n.º 4 – o que aproxima o direito à greve da
índole absoluta.
Em termos legislativos, não se vê
claro atropelo à Constituição. O Código do Trabalho, tal como as anteriores
leis laborais, acolheu o preceito constitucional; e a LGTFP (Lei
Geral do Trabalho em Funções Públicas),
aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, dedica à greve e ao lock-out os seus artigos 394.º a 404.º.
Parece, no entanto, um pouco
ligeira e abusiva quando refere, no n.º 2 do art.º 394.º, que o direito à grave da parte dos trabalhadores com
vínculo de emprego público “não prejudica,
nos termos da Constituição, a existência de regimes especiais”. A CRP aponta a “prestação de serviços
necessários à segurança e manutenção
de equipamentos e instalações” (sublinho) e de “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação
de necessidades sociais impreteríveis”
(sublinho) – não abrindo para “regimes
especiais”.
A alínea d) do n.º 2 do ar.º
397.º elege como um dos setores em que se justifica a existência de serviços
mínimos nos termos constitucionais: a “educação, no que concerne à realização de avaliações
finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se realizar na
mesma data em todo o território nacional”.
***
Antes de mais, é
de registar que esta norma é recente, pois até 2014 não estavam previstos
serviços mínimos na área da educação. O exemplo de 2005 não fez carreira, dado
que a convocação de todos os professores para um exame nacional foi decisão de
dois Secretários de Estado, um da área da Educação e outro da área do Trabalho
– sem a participação de docentes. Tanto assim é que o Tribunal Administrativo e
Fiscal, em Ponta Delgada, deu razão aos professores, o que levou a Ministra da
Educação a dizer que não foi em Portugal. E bem nos recordamos das razões e do
contexto que levou o Governo em 2014 a incluir os serviços mínimos na área da educação:
por um lado, o alegado combate ao eduquês através do rigor e da competência,
mas acabaram com o ensino por competências; e, por outro, o menosprezo
primoministerial pelo setor ao falar da “salsicha da educação”. Tempos – um e
outro – de má memória e que o atual Governo não parece querer ultrapassar de
forma eficaz!
À face do
preceito constitucional é difícil aceitar a composição do órgão que, por lei,
define os serviços mínimos no setor educativo, mas também não se percebe como
poderia ser de outro modo. Se são os trabalhadores que definem o alcance da
greve e obviamente os serviços essenciais, é de questionar como num colégio
tripartido só figura um representante dos trabalhadores que pode nem ser o
árbitro principal. No entanto, ao nível da preparação da constituição do
colégio, da possibilidade da assessoria de peritos e da instituição do
contraditório e da eventualidade das reclamações e recursos, não parece que a
lei não se revista do necessário equilíbrio. E, como ninguém pode julgar em
causa própria…
Há, entretanto,
normas na lei que não terão sido tidas sempre na devida conta. Preceitua o n.º
7 do art.º 397.º da LGTFP que “a
definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da necessidade, da
adequação e da proporcionalidade”. E aqui há muito a discutir.
Desde quando é
que é mais necessária, na escola, a avaliação final (conselhos de turma, conselhos de docentes, provas de
equivalências à frequência, provas finais, exames nacionais) que a
lecionação ou seja, as aulas ou atividades equivalentes, sendo a função
primordial da escola a educação e o ensino e vindo a avaliação não integrada
por acréscimo ou mais-valia? À partida, no estrito setor da educação não
haveria lugar a serviços mínimos. O que os determina não são propriamente
desígnios da educação, mas interesses ainda que legítimos. Depois, há
incoerências e incumprimento da lei, como se verá a seguir.
Em termos de
eventuais prejuízos, é de questionar a opinião pública sobre as consequências
do adiamento do conselho de docentes na educação pré-escolar e no 1.º ciclo,
quando as matrículas para os anos subsequentes são objeto de renovação quase
automática. Nulas. Idem para os conselhos de turma do 2.º ciclo. Nestes casos,
o prejuízo é muito mais de ordem psicossocial que real e objetivo. Quando muito
atrasa-se a partida para férias de verão de uns tantos. E é de perguntar por
que motivo uns têm o direito a férias quando querem e os professores não têm
direito a condições de trabalho e de carreira razoáveis, a ponto de lhes ser
cerceado em parte o exercício do direito à greve, quando são eles, na verdade,
os mais prejudicados por este exercício, pois têm de fazer o trabalho e não
podem gozar férias noutra época do ano.
Quanto ao 9.º
ano, apenas ressalta, da não realização dos conselhos de turma para a avaliação
sumativa interna, que pode haver alunos que fazem a prova final sem conhecerem
os resultados da avaliação interna. Porém, quanto a consequências, não há a
dizer a mais do que aquilo que foi apontado para os demais anos da escolaridade
(adiamento). E, mesmo em relação aos exames do 11.º e do 12.º ano, é de
referir que a experiência mostra que os exames não deixariam de ser realizados,
podendo ser, quando muito adiados. Porém, a turbulência que ressoa na sociedade
diz respeito, na maior parte do bolo de razão, ao ingresso no ensino superior,
já que, por motivos de ordem política, a aferição de conhecimentos com vista a
este processo, cabe às escolas que ministram o ensino secundário – problema que
não se põe no fim do 11.º ano, embora alguns dos seus exames sejam
determinantes para o ingresso no ensino superior.
***
Foi por motivos conexos com o mecanismo do ingresso no
ensino superior que o colégio arbitral deu hoje, dia 26, deferimento à solicitação
do ME (Ministério da
Educação), com aplicação
a partir do início de julho. Assim, haverá serviços mínimos nas reuniões de
conselhos de turma (com
pelo menos metade dos elementos + um, tendo os diretores recolhido previamente
as classificações e outras informações pertinentes) dos anos de exames ou provas finais:
9.º, 11.º e 12.º ano (no
11.º não era pertinente).
A este respeito, o gabinete do Ministro refere em comunicado:
“O Ministério da Educação acaba de ser
notificado pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público da decisão
do Colégio Arbitral. O Colégio Arbitral decidiu pela definição de serviços
mínimos, tendo sido sensível aos argumentos apresentados pelo Ministério da
Educação de que estavam em causa necessidades sociais impreteríveis nas greves
decretadas pelas organizações sindicais para o mês de julho.”.
A decisão do colégio arbitral de três elementos foi tomada
por unanimidade. Mesmo o membro designado pelos sindicatos decidiu a favor do
Governo. Apesar de tudo, algumas das organizações sindicais que recusaram a fixação
destes serviços por acordo, previsto na lei, não consideram a decisão como um
revés na luta. Assim, por exemplo, Júlia Azevedo, do SINDEP (Sindicato Independente e Democrático
dos Professores),
lembrando que as organizações sindicais – com exceção do novo sindicato STOP,
em greve desde dia 4 – agendaram o arranque da greve para 18 de junho com o
objetivo de não penalizar os alunos que tinham exames.
Quanto ao motivo de os sindicatos não terem aceitado fixar
estes serviços mínimos por mútuo acordo para os anos com exames, a sindicalista
defendeu que não o fizeram por se sentirem “traídos” pelo Ministro da Educação,
que, segundo acusou, “até dia 18 achou que não havia necessidade de serviços
mínimos”, embora, de acordo com dados divulgados pelo ME, cerca de 23% dos
alunos que realizaram exames nacionais no início da semana passada não tenham
as classificações internas atribuídas pelos conselhos de turma.
Entretanto, a Fenprof (Federação Nacional dos Professores) “não aceita” a decisão do colégio
arbitral, justificando a tomada de posição com possíveis ilegalidades no
processo, justificando, em comunicado, que “os árbitros que constituem o
colégio arbitral são sorteados entre três grupos de juristas: um grupo de
árbitros presidentes, um grupo de árbitros representantes dos empregadores
públicos e um grupo de árbitros representantes dos trabalhadores, designado
pelas Confederações Sindicais”, sendo que, neste último grupo, se inclui uma
jurista que trabalha com a Fenprof e que, por esta “ser uma das partes
interessadas neste processo, apresentou declaração de impedimento e não foi
sequer incluída no grupo dos árbitros a sortear”. Por isso, a Fenprof requererá
“a aclaração do acórdão do colégio arbitral, no sentido de esclarecer se,
efetivamente, o mesmo aponta para a prática de atos ilegais, como indicia uma
primeira análise do documento”.
Por outro lado, é de registar o incumprimento de normas
processuais contidas na lei. Estipula o n.º 3 do art.º 398.º da LGTFP que na falta de acordo até ao termo do 3.º dia posterior
ao aviso prévio de greve (aonde é que ele já ia!), a definição dos
serviços e meios compete a um colégio arbitral. Aliás, nos termos do n.º 4 do
mesmo artigo, o ME como empregado público deveria ter comunicado à DGAEP, nas
24 horas subsequentes à receção do pré-aviso de greve, a necessidade de
negociação do acordo previsto na lei.
Cabe ainda, ante a defesa destes serviços
mínimos, questionar qual o verdadeiro interesse da normativa exigência de todos
os professores estarem presentes nas sessões do conselho de turma se é hoje
possível recolher previamente toda a informação pertinente, podendo nos termos
do CPA, independentemente da obrigatoriedade da justificação de falta nos
termos legais, o órgão colegial funcionar com o quórum exigível. E, a talho de
foice, permita-se pôr em causa o porquê da proibição da abstenção de algum dos
membros do conselho de turma quando se vota uma decisão de retenção ou de
transição/aprovação, dado que tão válido é o sentido de voto contra ou a favor
como a abstenção, além de que ao professor da disciplina, implicado na matéria,
esse direito de abstenção – ou até de não participar na discussão – deveria ser
reconhecido.
Quero dizer que, nestes termos, a discussão
sobre a greve deveria ter como consequência alguma flexível normalidade no
funcionamento dos órgãos colegiais na escola. Se é certo que em tempo de guerra
não se limpam armas, também a greve não é guerra, flagelo, lepra, tuberculose
ou sarampo. Causa ardor? Pois, mas álcool que não cause ardor não desinfeta!
***
A Confap vem levantar um outro problema. Há greve dos
professores na escola pública, porque na privada não há. E sabe-se porquê: as
escolas públicas são muito mais, têm muitíssimo mais alunos e, apesar de tudo,
ainda são espaço de deveres e de direitos – ao passo que as privadas crivam as
entradas de professores segundo critérios que pouco têm a ver com o concurso,
as administrações controlam mais acuradamente a lecionação e a avaliação, ainda
que indevidamente, promovem o trabalho mais para o teste ou para o exame e os
proprietários, à maneira de alguns empresários, põem o interesse da organização
muito acima dos direitos dos trabalhadores (um deles é o direito à greve) e da sua vida familiar. Por isso, a Confap quer
reabrir o debate da liberdade escolha da escola, obviamente com preferência
pela escola privada e com a exigência de que o Estado que pague, quando devia
exir maior fiscalização sobre os direitos.
Ora, é de solicitar à Confap e seus alinhados coerência até
às últimas consequências. Se é assim tão boa a escola privada, porque não
sucede que os alunos que frequentam as escolas privadas não querem prosseguir
estudos superiores nas universidades e politécnicos privados?
E, por coerência discursiva, também se lança o repto ao
Estado: Porque não cria, ao menos, uma quota de vagas para ingresso em cada
curso do ensino superior público para os alunos provindos de escolas públicas (o número de vagas deveria ser bastante
maior) e outra quota
para os alunos provindos de escolas privadas? Isto daria coerência às ambições.
Mas fere os interesses, não dos mais capazes, mas dos mais ricos e ambiciosos.
E, diga-se a verdade, não é justo que a escola pública seja depreciada e
degradada – e mesmo seja, nalguns casos, utilizada para seleção de alunos à
laia das privadas – por quem prefere a escola privada para competir por
melhores lugares no acesso ao ensino superior público.
Tudo seria diferente se os alunos da escola privada fossem
obrigados a ir fazer exame à escola pública e, se para efeitos de ingresso no
ensino superior, constasse apenas a nota de exame.
Se a discussão da greve subverte o sistema, que o subverta em
termos da vera equidade!
2018.06.26 –
Louro de Carvalho
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