quarta-feira, 27 de junho de 2018

A pretexto da greve dos professores tenta-se a subversão do sistema


Começa a ser trivial, no comentário a greves indesejadas por parte de alguns setores da opinião pública, cada vez mais prevalecentes, referir o respeito pelo direito à greve, mas… Há sempre um “mas”. Dantes, dizia-se que a greve era política ou até selvagem ou, mais suavemente, injusta, desestabilizadora, lesiva da economia e prejudicial aos próprios trabalhadores. Agora, diz-se que vai contra os direitos das pessoas, prejudica os interesses de quem trabalha, cria a instabilidade nas empresas e assim por diante.
Não raro, aponta-se o dedo a alguns profissionais que trabalham no setor público e no setor privado que tomam dupla postura em tempo de greve: exercem o direito à greve no setor público e o direito ao trabalho no setor privado. Por decoro, abstenho-me de referir classe(s) em que isto sucede na realidade, o que me causa um cívico enjoo.
Que a greve é um direito dos trabalhadores é inquestionável. É a Constituição que o estabelece de forma quase absoluta, sem que se lhe possa opor uma atitude simétrica por parte do empregador. Com efeito, o n.º 1 do art.º 57.º da CRP estatui taxativamente: “É garantido o direito à greve”. E o n.º 2 do mesmo artigo estabelece: “Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito”. É devido a esta norma do n.º 2 (definir o âmbito de interesses) que não se pode considerar absoluto o direito à greve. Já a definição de serviços mínimos ou o estabelecimento de exceções por parte de outras entidades, que não os legítimos representantes dos trabalhadores, levanta muitas dúvidas. Não obstante, o n.º 3 do supracitado art.º 57.º (mais um dado a contrariar a índole absoluta deste direito) prevê que a lei ordinária defina “as condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações” e os “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”.
Porém, o empregador não pode lançar mão do lock-out, dada a proibição terminante estipulada ano n.º 4 – o que aproxima o direito à greve da índole absoluta.
Em termos legislativos, não se vê claro atropelo à Constituição. O Código do Trabalho, tal como as anteriores leis laborais, acolheu o preceito constitucional; e a LGTFP (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, dedica à greve e ao lock-out os seus artigos 394.º a 404.º.
Parece, no entanto, um pouco ligeira e abusiva quando refere, no n.º 2 do art.º 394.º, que o direito à grave da parte dos trabalhadores com vínculo de emprego público “não prejudica, nos termos da Constituição, a existência de regimes especiais”. A CRP aponta a “prestação de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações” (sublinho) e de “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis” (sublinho) – não abrindo para “regimes especiais”.   
A alínea d) do n.º 2 do ar.º 397.º elege como um dos setores em que se justifica a existência de serviços mínimos nos termos constitucionais: a “educação, no que concerne à realização de avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se realizar na mesma data em todo o território nacional”.
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Antes de mais, é de registar que esta norma é recente, pois até 2014 não estavam previstos serviços mínimos na área da educação. O exemplo de 2005 não fez carreira, dado que a convocação de todos os professores para um exame nacional foi decisão de dois Secretários de Estado, um da área da Educação e outro da área do Trabalho – sem a participação de docentes. Tanto assim é que o Tribunal Administrativo e Fiscal, em Ponta Delgada, deu razão aos professores, o que levou a Ministra da Educação a dizer que não foi em Portugal. E bem nos recordamos das razões e do contexto que levou o Governo em 2014 a incluir os serviços mínimos na área da educação: por um lado, o alegado combate ao eduquês através do rigor e da competência, mas acabaram com o ensino por competências; e, por outro, o menosprezo primoministerial pelo setor ao falar da “salsicha da educação”. Tempos – um e outro – de má memória e que o atual Governo não parece querer ultrapassar de forma eficaz!
À face do preceito constitucional é difícil aceitar a composição do órgão que, por lei, define os serviços mínimos no setor educativo, mas também não se percebe como poderia ser de outro modo. Se são os trabalhadores que definem o alcance da greve e obviamente os serviços essenciais, é de questionar como num colégio tripartido só figura um representante dos trabalhadores que pode nem ser o árbitro principal. No entanto, ao nível da preparação da constituição do colégio, da possibilidade da assessoria de peritos e da instituição do contraditório e da eventualidade das reclamações e recursos, não parece que a lei não se revista do necessário equilíbrio. E, como ninguém pode julgar em causa própria…  
Há, entretanto, normas na lei que não terão sido tidas sempre na devida conta. Preceitua o n.º 7 do art.º 397.º da LGTFP que “a definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade”. E aqui há muito a discutir.
Desde quando é que é mais necessária, na escola, a avaliação final (conselhos de turma, conselhos de docentes, provas de equivalências à frequência, provas finais, exames nacionais) que a lecionação ou seja, as aulas ou atividades equivalentes, sendo a função primordial da escola a educação e o ensino e vindo a avaliação não integrada por acréscimo ou mais-valia? À partida, no estrito setor da educação não haveria lugar a serviços mínimos. O que os determina não são propriamente desígnios da educação, mas interesses ainda que legítimos. Depois, há incoerências e incumprimento da lei, como se verá a seguir.
Em termos de eventuais prejuízos, é de questionar a opinião pública sobre as consequências do adiamento do conselho de docentes na educação pré-escolar e no 1.º ciclo, quando as matrículas para os anos subsequentes são objeto de renovação quase automática. Nulas. Idem para os conselhos de turma do 2.º ciclo. Nestes casos, o prejuízo é muito mais de ordem psicossocial que real e objetivo. Quando muito atrasa-se a partida para férias de verão de uns tantos. E é de perguntar por que motivo uns têm o direito a férias quando querem e os professores não têm direito a condições de trabalho e de carreira razoáveis, a ponto de lhes ser cerceado em parte o exercício do direito à greve, quando são eles, na verdade, os mais prejudicados por este exercício, pois têm de fazer o trabalho e não podem gozar férias noutra época do ano.
Quanto ao 9.º ano, apenas ressalta, da não realização dos conselhos de turma para a avaliação sumativa interna, que pode haver alunos que fazem a prova final sem conhecerem os resultados da avaliação interna. Porém, quanto a consequências, não há a dizer a mais do que aquilo que foi apontado para os demais anos da escolaridade (adiamento). E, mesmo em relação aos exames do 11.º e do 12.º ano, é de referir que a experiência mostra que os exames não deixariam de ser realizados, podendo ser, quando muito adiados. Porém, a turbulência que ressoa na sociedade diz respeito, na maior parte do bolo de razão, ao ingresso no ensino superior, já que, por motivos de ordem política, a aferição de conhecimentos com vista a este processo, cabe às escolas que ministram o ensino secundário – problema que não se põe no fim do 11.º ano, embora alguns dos seus exames sejam determinantes para o ingresso no ensino superior.
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Foi por motivos conexos com o mecanismo do ingresso no ensino superior que o colégio arbitral deu hoje, dia 26, deferimento à solicitação do ME (Ministério da Educação), com aplicação a partir do início de julho. Assim, haverá serviços mínimos nas reuniões de conselhos de turma (com pelo menos metade dos elementos + um, tendo os diretores recolhido previamente as classificações e outras informações pertinentes) dos anos de exames ou provas finais: 9.º, 11.º e 12.º ano (no 11.º não era pertinente). A este respeito, o gabinete do Ministro refere em comunicado:
O Ministério da Educação acaba de ser notificado pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público da decisão do Colégio Arbitral. O Colégio Arbitral decidiu pela definição de serviços mínimos, tendo sido sensível aos argumentos apresentados pelo Ministério da Educação de que estavam em causa necessidades sociais impreteríveis nas greves decretadas pelas organizações sindicais para o mês de julho.”.
A decisão do colégio arbitral de três elementos foi tomada por unanimidade. Mesmo o membro designado pelos sindicatos decidiu a favor do Governo. Apesar de tudo, algumas das organizações sindicais que recusaram a fixação destes serviços por acordo, previsto na lei, não consideram a decisão como um revés na luta. Assim, por exemplo, Júlia Azevedo, do SINDEP (Sindicato Independente e Democrático dos Professores), lembrando que as organizações sindicais – com exceção do novo sindicato STOP, em greve desde dia 4 – agendaram o arranque da greve para 18 de junho com o objetivo de não penalizar os alunos que tinham exames.
Quanto ao motivo de os sindicatos não terem aceitado fixar estes serviços mínimos por mútuo acordo para os anos com exames, a sindicalista defendeu que não o fizeram por se sentirem “traídos” pelo Ministro da Educação, que, segundo acusou, “até dia 18 achou que não havia necessidade de serviços mínimos”, embora, de acordo com dados divulgados pelo ME, cerca de 23% dos alunos que realizaram exames nacionais no início da semana passada não tenham as classificações internas atribuídas pelos conselhos de turma.
Entretanto, a Fenprof (Federação Nacional dos Professores) “não aceita” a decisão do colégio arbitral, justificando a tomada de posição com possíveis ilegalidades no processo, justificando, em comunicado, que “os árbitros que constituem o colégio arbitral são sorteados entre três grupos de juristas: um grupo de árbitros presidentes, um grupo de árbitros representantes dos empregadores públicos e um grupo de árbitros representantes dos trabalhadores, designado pelas Confederações Sindicais”, sendo que, neste último grupo, se inclui uma jurista que trabalha com a Fenprof e que, por esta “ser uma das partes interessadas neste processo, apresentou declaração de impedimento e não foi sequer incluída no grupo dos árbitros a sortear”. Por isso, a Fenprof requererá “a aclaração do acórdão do colégio arbitral, no sentido de esclarecer se, efetivamente, o mesmo aponta para a prática de atos ilegais, como indicia uma primeira análise do documento”.
Por outro lado, é de registar o incumprimento de normas processuais contidas na lei. Estipula o n.º 3 do art.º 398.º da LGTFP que na falta de acordo até ao termo do 3.º dia posterior ao aviso prévio de greve (aonde é que ele já ia!), a definição dos serviços e meios compete a um colégio arbitral. Aliás, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, o ME como empregado público deveria ter comunicado à DGAEP, nas 24 horas subsequentes à receção do pré-aviso de greve, a necessidade de negociação do acordo previsto na lei. 
Cabe ainda, ante a defesa destes serviços mínimos, questionar qual o verdadeiro interesse da normativa exigência de todos os professores estarem presentes nas sessões do conselho de turma se é hoje possível recolher previamente toda a informação pertinente, podendo nos termos do CPA, independentemente da obrigatoriedade da justificação de falta nos termos legais, o órgão colegial funcionar com o quórum exigível. E, a talho de foice, permita-se pôr em causa o porquê da proibição da abstenção de algum dos membros do conselho de turma quando se vota uma decisão de retenção ou de transição/aprovação, dado que tão válido é o sentido de voto contra ou a favor como a abstenção, além de que ao professor da disciplina, implicado na matéria, esse direito de abstenção – ou até de não participar na discussão – deveria ser reconhecido.
Quero dizer que, nestes termos, a discussão sobre a greve deveria ter como consequência alguma flexível normalidade no funcionamento dos órgãos colegiais na escola. Se é certo que em tempo de guerra não se limpam armas, também a greve não é guerra, flagelo, lepra, tuberculose ou sarampo. Causa ardor? Pois, mas álcool que não cause ardor não desinfeta!
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A Confap vem levantar um outro problema. Há greve dos professores na escola pública, porque na privada não há. E sabe-se porquê: as escolas públicas são muito mais, têm muitíssimo mais alunos e, apesar de tudo, ainda são espaço de deveres e de direitos – ao passo que as privadas crivam as entradas de professores segundo critérios que pouco têm a ver com o concurso, as administrações controlam mais acuradamente a lecionação e a avaliação, ainda que indevidamente, promovem o trabalho mais para o teste ou para o exame e os proprietários, à maneira de alguns empresários, põem o interesse da organização muito acima dos direitos dos trabalhadores (um deles é o direito à greve) e da sua vida familiar. Por isso, a Confap quer reabrir o debate da liberdade escolha da escola, obviamente com preferência pela escola privada e com a exigência de que o Estado que pague, quando devia exir maior fiscalização sobre os direitos. 
Ora, é de solicitar à Confap e seus alinhados coerência até às últimas consequências. Se é assim tão boa a escola privada, porque não sucede que os alunos que frequentam as escolas privadas não querem prosseguir estudos superiores nas universidades e politécnicos privados?
E, por coerência discursiva, também se lança o repto ao Estado: Porque não cria, ao menos, uma quota de vagas para ingresso em cada curso do ensino superior público para os alunos provindos de escolas públicas (o número de vagas deveria ser bastante maior) e outra quota para os alunos provindos de escolas privadas? Isto daria coerência às ambições. Mas fere os interesses, não dos mais capazes, mas dos mais ricos e ambiciosos. E, diga-se a verdade, não é justo que a escola pública seja depreciada e degradada – e mesmo seja, nalguns casos, utilizada para seleção de alunos à laia das privadas – por quem prefere a escola privada para competir por melhores lugares no acesso ao ensino superior público.
Tudo seria diferente se os alunos da escola privada fossem obrigados a ir fazer exame à escola pública e, se para efeitos de ingresso no ensino superior, constasse apenas a nota de exame.
Se a discussão da greve subverte o sistema, que o subverta em termos da vera equidade!
2018.06.26 – Louro de Carvalho    


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