É o
título do documento do Dicastério para os
Leigos, a Família e a Vida sobre “a prospetiva cristã do desporto e da pessoa
humana, publicado a 1 de junho.
Tendo em conta, num capítulo primeiro,
sobre finalidade, motivação e objetivos, que “dar o melhor de si” é
fundamental no desporto para os atletas, considerados individualmente ou em
equipa, obterem o resultado almejado e experimentarem a alegria da satisfação,
pretende o Dicastério presidido pelo Cardeal Farrell ajudar a
compreender a relação entre o dinamismo do desporto e a vivência da fé cristã
no quotidiano, à semelhança do que dizia Paulo (vd 2Tm 4,7).
Com efeito, a
Igreja como Povo de Deus tem rica experiência no campo do humano, que envolve o
desporto tornado fenómeno universal. E, na sua visão da pessoa em unidade de
corpo e espírito, vê nesta atividade valores que fomentam a dignidade da pessoa
humana, contribuindo para a sua formação relacional e espiritual e valorizando
a sua corporeidade. Assim, dirigindo-se a todas as pessoas de boa vontade (obviamente a bispos e sacerdotes, mas
sobretudo a leigos),
pretende o diálogo entre todas as pessoas e organizações que se empenham em
promover os valores presentes na experiência desportiva e tirar partido dela
para promover os valores cristãos.
Embora seja este o primeiro documento da Santa Sé redigido
expressa e exclusivamente sobre a matéria, sabe-se que, desde os primórdios, a
Igreja se interessou pela beleza nas artes, na música e em muitos outros
âmbitos da atividade humana, entre os quais se inscreve o desporto, pois a
beleza, cultivada ao nível estético, é obra, imagem e desejo de Deus. E a via
da pulcritude, incluindo e valorizando a corporeidade, com menção expressa do
desporto, tem sido um tema recorrente em discursos vários dos Pontífices,
nomeadamente de Pio X, XII e Paulo VI, que entabularam fortemente o diálogo
entre a Igreja e o mundo do desporto, e de João Paulo II e Francisco. Ficou na
retina a interrogação de Pio XII “Como
poderia a Igreja desinteressar-se?”.
Assim, dada a
importância pastoral desta atividade humana, o Magistério eclesial vem reclamando
continuamente a necessidade de promover “um desporto para a pessoa” para dar
sentido e plenitude à vida, valorizar integralmente a pessoa, no seu
crescimento pessoal, moral, social, ético e espiritual, e concretizar uma
presença pastoral multiforme e difusa, tendo como ponto de partida e fim o
interesse pelo ser humano.
***
A Igreja vem dialogando com o desporto desde os primeiros
anos da sua existência. Desde logo Paulo utilizou a metáfora do estádio e do
dinamismo desportivo para explicar aos gentios a vida cristã. Na Idade Média,
os leigos católicos participavam ativamente nos jogos e outras atividades
desportivas nos dias de festa, que eram muitos, além dos domingos. Tomás de Aquino
tomou a peito esta atividade assinalando a existência de virtude nos jogos,
pelo que a pessoa virtuosa, embora não devesse praticá-los em regime de
permanência, necessitava de algum tempo para o jogo e para o recreio. Depois,
os humanistas do Renascimento, bem com os primeiros jesuítas, assimilaram a
pertinência da reflexão tomista. Desta forma se justifica a inclusão do jogo e
do desporto no interior da instituição escolar no mundo ocidental. Além disso,
desde o início da modernidade, a Igreja manifestou grande interesse por esta
atividade, apreendendo os seus valores, pelo que se tem empenhado no
desenvolvimento do desporto de forma organizada e estruturada. O desporto
moderno é fruto da revolução industrial, que encontrou, nas mudanças sociais,
políticas e económicas deste tempo, terreno fértil para a difusão e afirmação a
nível global. Ora, atualmente o desporto está em mudança profunda e sujeito a
pressões fortes de mudança radical. O importante é que saiba gerir a mudança,
mais do que sofrê-la, e ser experiência de educação e promoção do ser humano.
E, apesar de terem nascido com matriz declaradamente católica muitas federações
e associações desportivas de âmbito internacional ou nacional, não se trata de querer um desporto cristão, mas uma visão
cristã do desporto. Todavia, esta visão não se limita a conferir-lhe os
valores éticos compartilhados universalmente, mas fornece uma prospetiva
própria, inovadora e coerente como serviço ao desporto, à pessoa humana e à
sociedade. Sem prejudicar a especificidade do desporto, o património da fé
cristã liberta esta atividade da ambiguidade e deviação, favorecendo una plena
realização.
Para a
Igreja, o desporto é em si mesmo uma lição de vida em que as virtudes da
temperança, humildade, coragem e paciência podem ser interiorizadas e tornar-se
ali uma via de encontro do belo, bom e verdadeiro, possibilitando o testemunho
da alegria de viver. Por isso, o desporto tem de ser festa, estimular e
espelhar a convivência e a cooperação e estar longe da corrupção, da
desonestidade, da manipulação e do negócio pelo negócio.
***
Nestes
termos, o ensinamento do Dicastério
dedica o capítulo segundo ao “fenómeno do
desporto” (universal
na abrangência humana, tempos e lugares; uma constante antropológica da
humanidade), relevando “a génese do desporto moderno” (encontro de culturas e economias a gerar
ou a reforçar da globalização do desporto; escopo filantrópico; agudização da
competitividade: daí se falar em institucionalização, profissionalização e
comercialização), “o conceito de desporto” (corpo humano em movimento, jogo,
trabalho de aperfeiçoamento e espetáculo, trabalho profissional, cumprimento de
regras, competição, participação) e “o contexto do
desporto” (do grupo
informal passou a organização social e, dada a sua industrialização, tem de
precaver-se contra a corrupção, a alienação das massas, a violência e a
distribuição de anabolizantes).
O capítulo
terceiro trata de “um desporto para o ser
humano”, considerando a tríade paulina “corpo,
alma e espírito” (ao invés do monismo e do dualismo maniqueísta), a
tetralogia “liberdade, regras, criatividade e colaboração” (contra as
dependências, a indisciplina e o instinto, a superficialidade e o
individualismo), a dualidade “individualismo e equipa” (atividade individual e de
equipa, mas postulando sempre a abertura à cooperação, solidariedade e
delicadeza), o “sacrifício”, a “alegria”, a “harmonia”, a “coragem”, a “igualdade e
o respeito”, a “solidariedade” (fundada na destinação universal dos bens e
almejando a educação para a paz), e a asserção de que “o desporto abre pistas
para o significado último da vida” (a partir da nossa insuficiência e
da necessidade de ultrapassar as forças individuais, perceberemos o sentido do
significado profundo da vida humana, que, segundo a visão cristã é ser imagem e
semelhança de Deus na sua unidade e comunidade).
O capítulo quarto apresenta “os desafios à luz do Evangelho”: “um
desporto humano e justo”, pela “promoção dos valores humanos no desporto” e
“críticas às deviações” (mudanças de padrão); “responsabilidade
compartilhada por um desporto humano”; e os “quatro desafios específicos pelo
desporto”: o “desenvolvimento do corpo”
(templo de Deus, serviço à pessoa); o “doping” (prejudica a saúde e a lealdade competitiva); a “corrupção” (verdadeira
chaga lesiva e enganadora que invade todos os campos da atividade humana); e os “apoiantes e espectadores” (importantes
como estímulo aos jogadores, mas perigosos e lesivos ao insultarem ou assumirem
atos violentos, como sucede com algumas claques).
O capítulo quinto equaciona “o papel-chave da Igreja”, cabendo-lhe tudo
fazer, no quadro da visão cristã do homem e da sociedade, para que o desporto
seja promovido com humanidade e racionalidade, longe de fraudes, violências,
manipulações, ameaças e alienações. Assim, ressaltam no documento as seguintes
afirmações-chave:
- “A Igreja está de casa no
desporto”. Tem nele “uma presença responsável”, organizada e institucional;
é “uma Igreja em saída”; é “um moderno Pátio dos Gentios” (enquanto
espaço de diálogo entre todos sobre os temas vitais do ser humano
e da sociedade).
- “O desporto está de casa na Igreja”, pois
se assume “como experiência educativa” ao serviço da pessoa pelo seu desenvolvimento
integral, em linha com os fins da educação católica. Ademais, o desporto assume-se como “gerador
duma cultura do encontro e da paz” e pode constituir-se em “obra de misericórdia”, ao incluir os
mais frágeis no seu escopo e atividades e ao desenvolver-se com fins
filantrópicos externos, criando assim “uma
cultura da inclusão”.
A seguir,
aponta “os ambientes da pastoral do desporto” e vincula “os pais como os
primeiros educadores, as “paróquias” (a paróquia como grupo desportivo mais que o grupo desportivo
na paróquia) e os
“centros juvenis”, as “escolas e universidades”, as “sociedade e associações
desportivas amadoras”, o “desporto profissional”, “os meios de comunicação como
ponte”, as “ciências especializadas” e os “novos lugares do desporto” (vg: parques, centros fitness e desportos eletrónicos), com os riscos inerentes à prática
desportiva em solidão,
fautora do individualismo.
Depois, vem
“o cuidado dos agentes pastorais do desporto”, já que não pode existir uma
pastoral do desporto sem uma estratégia educativa. E esta passa pelos
“educadores desportivos”, “famílias e pais”, “voluntários” e “sacerdotes e
pessoas consagradas”.
Por fim,
enunciam-se “alguns elementos fundamentais para um projeto pastoral pelo
desporto”: a beleza do desporto ao serviço da
educação; o desporto para estabelecer o pacto educativo; o desporto
ao serviço da humanidade; o jogo na base do desporto; o trabalho
de equipa contra o individualismo; o desporto para todos; e a visão
ecológica do desporto.
***
Em conclusão,
o desporto constitui ambiente em que crianças, jovens e adultos, provindos de
culturas e religiões diversas e um tecido de experiências que podem ser sinal
de transcendência. Com efeito, no seu discurso ao Centro
Desportivo Italiano, a 7 de junho de 2014, o Papa exortou os ouvintes a dar o
melhor de si mesmos, não só no desporto, mas em toda a vida:
“É
importante que o desporto permaneça um jogo! Só se permanecer um jogo faz bem ao corpo e ao espírito. E
precisamente porque sois desportivos, convido-vos não só a jogar, como já
fazeis, mas a algo mais: a pôr-vos em jogo na vida como
no desporto. Pôr-vos em jogo na busca do bem, na Igreja e na sociedade, sem
medo, com coragem e entusiasmo. Pôr-vos em jogo com os outros e com Deus; não se
contentar de um ‘empate’ medíocre, dar o melhor de si mesmos, usando a vida
para o que vale a sério e dura para sempre.”.
***
Também ontem, dia 1 de junho, Francisco enviou uma carta ao Cardeal
Farrell a felicitá-lo pela publicação do documento e tecendo algumas considerações
em jeito de reforço.
Começando por
eleger o desporto como instrumento de encontro, formação, missão e
santificação, o Papa frisou que se trata de “um lugar de encontro, onde as
pessoas, de todos os níveis e condições sociais, se unem para obter um
resultado comum”. Com efeito, numa cultura, dominada pelo individualismo e pelo
descarte das jovens gerações e dos idosos, “o desporto é um âmbito privilegiado
em que as pessoas se encontram, sem distinção de raça, sexo, religião ou
ideologia; e “onde podem experimentar a alegria de competir e atingir uma meta
em equipa”.
Por outro lado,
a disciplina desportiva envolve, não só os companheiros duma equipa ou time, mas também dirigentes, treinadores,
apoiantes, famílias e todos os que se esforçam e se dedicam “dando o melhor de
si”.
Considerando que
tudo isto torna o desporto um catalisador de experiências comunitárias e
familiares e um lugar de união e encontro entre as pessoas, Francisco afirmou
que a atividade desportiva constitui um veículo de formação. Por isso,
hoje, mais do que nunca, devemos apostar nos jovens, na sua formação e no seu
desenvolvimento integral.
Verificando que
as novas gerações se inspiram nos atletas e desportistas, diz o Pontífice que
destes se espera que deem “exemplo de virtudes, como a generosidade, humildade,
sacrifício, constância e alegria”, devendo “ainda contribuir para o espírito de
equipa, o respeito, a saudável competição e solidariedade com os outros”.
Depois, em sua missiva, o Santo Padre evidenciou a função do desporto
como instrumento
de missão e santificação, pois a Igreja, como assegurou, “é chamada a ser sinal de Jesus Cristo no
mundo, também mediante o desporto nos oratórios, nas paróquias, escolas e
associações”. E salientou a importância de “transmitir a alegria que brota
do desporto, que pode abrir caminhos para Cristo, em todo e qualquer lugar,
sendo que as pessoas, ao darem testemunho desta alegria, em ambiente
comunitário, se tornam mensageiras da Boa Nova de Jesus”.
Por outro
lado, como diz o título do documento do Dicastério, temos aqui um convite a
aspirar à santidade, convite muito oportuno, sobretudo, em vista do próximo
Sínodo para os Jovens.
Por isso, como afirmou Francisco, é preciso aprofundar a
íntima relação existente entre desporto e vida, pois tal busca nos conduz, com
a graça de Deus, a atingir a plenitude da vida, que se chama “santidade”. E não
deixa de aplicar ao desporto a doutrina da exortação apostólica “Gaudete et exsultate”.
O Papa concluiu a sua Carta ao Cardeal Farrell recordando que
“o desporto é uma riquíssima fonte de valores e virtudes, que nos ajuda a
melhorar”, sendo que “todo o cristão, na medida em que se santifica, se torna
mais fecundo para o mundo”. Logo, para o desportista cristão, “a santidade
consiste em viver o desporto como meio de encontro, formação da personalidade,
testemunho e anúncio da alegria evangélica”.
2018.06.02 – Louro de Carvalho
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