sábado, 2 de junho de 2018

Dar o melhor de si


É o título do documento do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida sobre “a prospetiva cristã do desporto e da pessoa humana, publicado a 1 de junho.
Tendo em conta, num capítulo primeiro, sobre finalidade, motivação e objetivos, que “dar o melhor de si” é fundamental no desporto para os atletas, considerados individualmente ou em equipa, obterem o resultado almejado e experimentarem a alegria da satisfação, pretende o Dicastério presidido pelo Cardeal Farrell ajudar a compreender a relação entre o dinamismo do desporto e a vivência da fé cristã no quotidiano, à semelhança do que dizia Paulo (vd 2Tm 4,7). 
Com efeito, a Igreja como Povo de Deus tem rica experiência no campo do humano, que envolve o desporto tornado fenómeno universal. E, na sua visão da pessoa em unidade de corpo e espírito, vê nesta atividade valores que fomentam a dignidade da pessoa humana, contribuindo para a sua formação relacional e espiritual e valorizando a sua corporeidade. Assim, dirigindo-se a todas as pessoas de boa vontade (obviamente a bispos e sacerdotes, mas sobretudo a leigos), pretende o diálogo entre todas as pessoas e organizações que se empenham em promover os valores presentes na experiência desportiva e tirar partido dela para promover os valores cristãos.
Embora seja este o primeiro documento da Santa Sé redigido expressa e exclusivamente sobre a matéria, sabe-se que, desde os primórdios, a Igreja se interessou pela beleza nas artes, na música e em muitos outros âmbitos da atividade humana, entre os quais se inscreve o desporto, pois a beleza, cultivada ao nível estético, é obra, imagem e desejo de Deus. E a via da pulcritude, incluindo e valorizando a corporeidade, com menção expressa do desporto, tem sido um tema recorrente em discursos vários dos Pontífices, nomeadamente de Pio X, XII e Paulo VI, que entabularam fortemente o diálogo entre a Igreja e o mundo do desporto, e de João Paulo II e Francisco. Ficou na retina a interrogação de Pio XII “Como poderia a Igreja desinteressar-se?”.
Assim, dada a importância pastoral desta atividade humana, o Magistério eclesial vem reclamando continuamente a necessidade de promover “um desporto para a pessoa” para dar sentido e plenitude à vida, valorizar integralmente a pessoa, no seu crescimento pessoal, moral, social, ético e espiritual, e concretizar uma presença pastoral multiforme e difusa, tendo como ponto de partida e fim o interesse pelo ser humano.
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A Igreja vem dialogando com o desporto desde os primeiros anos da sua existência. Desde logo Paulo utilizou a metáfora do estádio e do dinamismo desportivo para explicar aos gentios a vida cristã. Na Idade Média, os leigos católicos participavam ativamente nos jogos e outras atividades desportivas nos dias de festa, que eram muitos, além dos domingos. Tomás de Aquino tomou a peito esta atividade assinalando a existência de virtude nos jogos, pelo que a pessoa virtuosa, embora não devesse praticá-los em regime de permanência, necessitava de algum tempo para o jogo e para o recreio. Depois, os humanistas do Renascimento, bem com os primeiros jesuítas, assimilaram a pertinência da reflexão tomista. Desta forma se justifica a inclusão do jogo e do desporto no interior da instituição escolar no mundo ocidental. Além disso, desde o início da modernidade, a Igreja manifestou grande interesse por esta atividade, apreendendo os seus valores, pelo que se tem empenhado no desenvolvimento do desporto de forma organizada e estruturada. O desporto moderno é fruto da revolução industrial, que encontrou, nas mudanças sociais, políticas e económicas deste tempo, terreno fértil para a difusão e afirmação a nível global. Ora, atualmente o desporto está em mudança profunda e sujeito a pressões fortes de mudança radical. O importante é que saiba gerir a mudança, mais do que sofrê-la, e ser experiência de educação e promoção do ser humano. E, apesar de terem nascido com matriz declaradamente católica muitas federações e associações desportivas de âmbito internacional ou nacional, não se trata de querer um desporto cristão, mas uma visão cristã do desporto. Todavia, esta visão não se limita a conferir-lhe os valores éticos compartilhados universalmente, mas fornece uma prospetiva própria, inovadora e coerente como serviço ao desporto, à pessoa humana e à sociedade. Sem prejudicar a especificidade do desporto, o património da fé cristã liberta esta atividade da ambiguidade e deviação, favorecendo una plena realização.
Para a Igreja, o desporto é em si mesmo uma lição de vida em que as virtudes da temperança, humildade, coragem e paciência podem ser interiorizadas e tornar-se ali uma via de encontro do belo, bom e verdadeiro, possibilitando o testemunho da alegria de viver. Por isso, o desporto tem de ser festa, estimular e espelhar a convivência e a cooperação e estar longe da corrupção, da desonestidade, da manipulação e do negócio pelo negócio.
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Nestes termos, o ensinamento do Dicastério dedica o capítulo segundo ao “fenómeno do desporto” (universal na abrangência humana, tempos e lugares; uma constante antropológica da humanidade), relevando “a génese do desporto moderno” (encontro de culturas e economias a gerar ou a reforçar da globalização do desporto; escopo filantrópico; agudização da competitividade: daí se falar em institucionalização, profissionalização e comercialização), “o conceito de desporto” (corpo humano em movimento, jogo, trabalho de aperfeiçoamento e espetáculo, trabalho profissional, cumprimento de regras, competição, participação) e “o contexto do desporto” (do grupo informal passou a organização social e, dada a sua industrialização, tem de precaver-se contra a corrupção, a alienação das massas, a violência e a distribuição de anabolizantes).
O capítulo terceiro trata de “um desporto para o ser humano”, considerando a tríade paulina “corpo, alma e espírito” (ao invés do monismo e do dualismo maniqueísta), a tetralogia “liberdade, regras, criatividade e colaboração” (contra as dependências, a indisciplina e o instinto, a superficialidade e o individualismo), a dualidade “individualismo e equipa” (atividade individual e de equipa, mas postulando sempre a abertura à cooperação, solidariedade e delicadeza), o “sacrifício”, a “alegria”, a “harmonia”, a “coragem”, a “igualdade e o respeito”, a “solidariedade” (fundada na destinação universal dos bens e almejando a educação para a paz), e a asserção de que “o desporto abre pistas para o significado último da vida” (a partir da nossa insuficiência e da necessidade de ultrapassar as forças individuais, perceberemos o sentido do significado profundo da vida humana, que, segundo a visão cristã é ser imagem e semelhança de Deus na sua unidade e comunidade).
O capítulo quarto apresenta “os desafios à luz do Evangelho”: “um desporto humano e justo”, pela “promoção dos valores humanos no desporto” e “críticas às deviações” (mudanças de padrão); “responsabilidade compartilhada por um desporto humano”; e os “quatro desafios específicos pelo desporto”: o “desenvolvimento do corpo” (templo de Deus, serviço à pessoa); o “doping” (prejudica a saúde e a lealdade competitiva); a “corrupção” (verdadeira chaga lesiva e enganadora que invade todos os campos da atividade humana); e os “apoiantes e espectadores” (importantes como estímulo aos jogadores, mas perigosos e lesivos ao insultarem ou assumirem atos violentos, como sucede com algumas claques).
O capítulo quinto equaciona “o papel-chave da Igreja”, cabendo-lhe tudo fazer, no quadro da visão cristã do homem e da sociedade, para que o desporto seja promovido com humanidade e racionalidade, longe de fraudes, violências, manipulações, ameaças e alienações. Assim, ressaltam no documento as seguintes afirmações-chave:
- “A Igreja está de casa no desporto”. Tem nele “uma presença responsável”, organizada e institucional; é “uma Igreja em saída”; é “um moderno Pátio dos Gentios” (enquanto espaço de diálogo entre todos sobre os temas vitais do ser humano e da sociedade).
- “O desporto está de casa na Igreja”, pois se assume “como experiência educativa” ao serviço da pessoa pelo seu desenvolvimento integral, em linha com os fins da educação católica. Ademais, o desporto assume-se como “gerador duma cultura do encontro e da paz” e pode constituir-se em “obra de misericórdia”, ao incluir os mais frágeis no seu escopo e atividades e ao desenvolver-se com fins filantrópicos externos, criando assim “uma cultura da inclusão”.
A seguir, aponta “os ambientes da pastoral do desporto” e vincula “os pais como os primeiros educadores, as “paróquias” (a paróquia como grupo desportivo mais que o grupo desportivo na paróquia) e os “centros juvenis”, as “escolas e universidades”, as “sociedade e associações desportivas amadoras”, o “desporto profissional”, “os meios de comunicação como ponte”, as “ciências especializadas” e os “novos lugares do desporto” (vg: parques, centros fitness e desportos eletrónicos), com os riscos inerentes à prática desportiva em solidão, fautora do individualismo.
Depois, vem “o cuidado dos agentes pastorais do desporto”, já que não pode existir uma pastoral do desporto sem uma estratégia educativa. E esta passa pelos “educadores desportivos”, “famílias e pais”, “voluntários” e “sacerdotes e pessoas consagradas”.
Por fim, enunciam-se “alguns elementos fundamentais para um projeto pastoral pelo desporto”: a beleza do desporto ao serviço da educação; o desporto para estabelecer o pacto educativo; o desporto ao serviço da humanidade; o jogo na base do desporto; o trabalho de equipa contra o individualismo; o desporto para todos; e a visão ecológica do desporto.
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Em conclusão, o desporto constitui ambiente em que crianças, jovens e adultos, provindos de culturas e religiões diversas e um tecido de experiências que podem ser sinal de transcendência. Com efeito, no seu discurso ao Centro Desportivo Italiano, a 7 de junho de 2014, o Papa exortou os ouvintes a dar o melhor de si mesmos, não só no desporto, mas em toda a vida:
É importante que o desporto permaneça um jogo! Só se permanecer um jogo faz bem ao corpo e ao espírito. E precisamente porque sois desportivos, convido-vos não só a jogar, como já fazeis, mas a algo mais: a pôr-vos em jogo na vida como no desporto. Pôr-vos em jogo na busca do bem, na Igreja e na sociedade, sem medo, com coragem e entusiasmo. Pôr-vos em jogo com os outros e com Deus; não se contentar de um ‘empate’ medíocre, dar o melhor de si mesmos, usando a vida para o que vale a sério e dura para sempre.”.
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Também ontem, dia 1 de junho, Francisco enviou uma carta ao Cardeal Farrell a felicitá-lo pela publicação do documento e tecendo algumas considerações em jeito de reforço.
Começando por eleger o desporto como instrumento de encontro, formação, missão e santificação, o Papa frisou que se trata de “um lugar de encontro, onde as pessoas, de todos os níveis e condições sociais, se unem para obter um resultado comum”. Com efeito, numa cultura, dominada pelo individualismo e pelo descarte das jovens gerações e dos idosos, “o desporto é um âmbito privilegiado em que as pessoas se encontram, sem distinção de raça, sexo, religião ou ideologia; e “onde podem experimentar a alegria de competir e atingir uma meta em equipa”.
Por outro lado, a disciplina desportiva envolve, não só os companheiros duma equipa ou time, mas também dirigentes, treinadores, apoiantes, famílias e todos os que se esforçam e se dedicam “dando o melhor de si”.
Considerando que tudo isto torna o desporto um catalisador de experiências comunitárias e familiares e um lugar de união e encontro entre as pessoas, Francisco afirmou que a atividade desportiva constitui um veículo de formação. Por isso, hoje, mais do que nunca, devemos apostar nos jovens, na sua formação e no seu desenvolvimento integral.
Verificando que as novas gerações se inspiram nos atletas e desportistas, diz o Pontífice que destes se espera que deem “exemplo de virtudes, como a generosidade, humildade, sacrifício, constância e alegria”, devendo “ainda contribuir para o espírito de equipa, o respeito, a saudável competição e solidariedade com os outros”.
Depois, em sua missiva, o Santo Padre evidenciou a função do desporto como instrumento de missão e santificação, pois a Igreja, como assegurou, “é chamada a ser sinal de Jesus Cristo no mundo, também mediante o desporto nos oratórios, nas paróquias, escolas e associações”. E salientou a importância de “transmitir a alegria que brota do desporto, que pode abrir caminhos para Cristo, em todo e qualquer lugar, sendo que as pessoas, ao darem testemunho desta alegria, em ambiente comunitário, se tornam mensageiras da Boa Nova de Jesus”.
Por outro lado, como diz o título do documento do Dicastério, temos aqui um convite a aspirar à santidade, convite muito oportuno, sobretudo, em vista do próximo Sínodo para os Jovens.
Por isso, como afirmou Francisco, é preciso aprofundar a íntima relação existente entre desporto e vida, pois tal busca nos conduz, com a graça de Deus, a atingir a plenitude da vida, que se chama “santidade”. E não deixa de aplicar ao desporto a doutrina da exortação apostólica “Gaudete et exsultate”.
O Papa concluiu a sua Carta ao Cardeal Farrell recordando que “o desporto é uma riquíssima fonte de valores e virtudes, que nos ajuda a melhorar”, sendo que “todo o cristão, na medida em que se santifica, se torna mais fecundo para o mundo”. Logo, para o desportista cristão, “a santidade consiste em viver o desporto como meio de encontro, formação da personalidade, testemunho e anúncio da alegria evangélica”.
2018.06.02 – Louro de Carvalho

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