Iniciou-se
ontem, dia 27, como previsto, a primeira audição da comissão parlamentar
de inquérito (CPI) às rendas da energia na tarefa de ouvir 100
personalidades e mais 17 entidades, abrangendo os governos de Durão Barroso a
António Costa, cujos depoimentos serão
feitos na “fita do tempo”, começando, assim, em 2004. E começou por ser ouvido o professor Pedro Miguel Sampaio Nunes, um dos cinco especialistas
convocados, a que acrescem João
Peças, Mira Amaral, Clemente Nunes e David Newbery.
Maria das Mercês Borges, do PSD e presidente desta CPI adiantou, a 14 de
junho, que se vai “tentar preencher o mais possível todas as disponibilidades”
que tem até ao final da presente sessão legislativa e que “seria um bom número”
se conseguisse fazer 20 audições neste período.
Entre os nomes chamados, à CPI destacam-se Manuel Pinho e Ricardo Salgado,
que estão no centro do caso depois de o antigo banqueiro ter sido constituído
arguido, suspeito de ter pago mais de um milhão de euros a Pinho para que o
Governo favorecesse a EDP, de quem o BES era acionista. Além destes, prestarão
depoimento no Parlamento dos CMEC (Custos
de Manutenção do Equilíbrio Contratual) José Sócrates, Santana Lopes, Álvaro Barreto, Carlos Tavares, Henrique
Gomes, João Talone, António Mexia, João Manso Neto, João Conceição e Rui
Cartaxo.
O objeto da comissão é determinar “a dimensão dos pagamentos
realizados e a realizar” no âmbito dos CMEC e o efeito sobre os custos
do sistema elétrico produzido pelas alterações legislativas e atos
administrativos realizados no âmbito dos CMEC e dos CAE (Contratos
de Aquisição de Energia). Analisará
ainda as condições da tomada de decisões governativas, designadamente, face a
estudos e pareceres de entidades reguladoras, ERSE (Entidade
Reguladora dos Serviços Energéticos) e AdC (Autoridade da Concorrência), e a existência de falha comportamental de relevo ou
omissão no cumprimento das obrigações dos serviços e entidades reguladoras.
Desde a sua entrada em vigor, em 2007, e até 2017, os CMEC representaram um custo de 2.500 milhões de euros para os
consumidores de eletricidade. Em setembro do ano passado, a ERSE propôs
que o valor a pagar à EDP ao longo dos próximos 10 anos seja de 829 milhões de
euros, equivalente a 82,9 milhões de euros por ano. Esse montante é inferior em
167,1 milhões, por ano, relativamente às rendas de 250 milhões que a EDP
recebeu anualmente na última década.
***
Isto foi o que sucedeu. Agora, veja-se um juízo de valor lançado sobre os
factos.
O especialista em energia, ouvido
ontem, considera que o pagamento dos CMEC às produtoras de eletricidade viola
princípios da legislação europeia, constituindo “uma
flagrante e massiva infração das regras previstas no tratado europeu em matéria
de concorrência”.
Tendo sido um dos autores da denúncia junto da
Comissão Europeia, em 2012, sobre a extensão do prazo de concessão das
barragens da EDP em 2007, sem concurso público, o especialista foi diretor daquela
Comissão para a Energia, entre 2000 e 2003 (pelo que deu contributo
à elaboração da legislação que liberalizou o mercado da eletricidade), e Secretário de Estado da
Ciência e Inovação no Governo de Santana Lopes. Ora, logo na sua intervenção
inicial de ontem, Sampaio
Nunes deixou duras críticas a este sistema de rendas pagas às produtoras, referindo:
“Trabalhei
durante muito tempo na Comissão Europeia, responsável por esta área, onde
iniciámos o processo de colocação em concorrência do setor do gás e da energia,
com o objetivo de beneficiar os consumidores. É com grande tristeza que vejo que, no meu país, esse processo é
subvertido e, em vez de serem beneficiados, os consumidores são prejudicados.”.
E,
apontando a diferença de preços da energia entre Portugal e Europa, criticando
a disparidade, questionou como, num contexto de descida da matéria-prima e das
tecnologias, os preços em Portugal cresceram muito acima da média europeia. Mas
deu a resposta:
“É a mistura explosiva entre
rendas que são dadas ilegalmente a título de CMEC, as rendas que são dadas a
título duvidoso de CAE e um apoio muito massificado a energias renováveis”.
Isto, sem
contar com a dívida tarifária, que atualmente ascende a 3.600 milhões de euros.
Com efeito, é também esse quase o valor já pago a título de CMEC às produtoras de
eletricidade. Desde 2007 e até hoje, os contribuintes pagaram 3.163
milhões em CMEC. E explicou:
“O
valor dos CMEC pago até hoje é muito próximo do valor da dívida tarifária, o
que significa que estivemos a colocar uma dívida em cima dos consumidores, sobretudo
os mais frágeis, que corresponde exatamente aos subsídios que demos às
produtoras, em cima dos lucros. Isto é profundamente anormal e merece uma
análise jurídica cuidadosa. […] Se lermos a metodologia que a
Comissão Europeia produziu, tudo o que ali é enunciado como princípio é violado
por Portugal.”.
A pari, acusa sem papas na língua a Comissão Europeia de
“complacência e conivência” no processo dos CMEC, sobretudo pelas “visões tão
contraditórias, tão pouco claras”. E diz:
“A Comissão Europeia tem um comportamento um
pouco cíclico. Depende da força do colégio, quando bate o pé ou quando não bate
o pé aos Estados membros. Mas a Comissão tem
larguíssimos poderes em termos de concorrência e tem de ser extremamente
rigorosa na forma como os aplica.”.
Por
isso, apela à CPI a que envie o processo para o Tribunal de Justiça da União
Europeia, que pode “pronunciar-se sobre este facto duma forma definitiva e sem
recurso”, para se perceber porque é que a Comissão Europeia tem
visões “tão contraditórias, tão pouco claras”, neste caso,
dado que a atribuição destas “rendas ilegais” é “uma situação que brada aos
céus e que não encontra paralelo em nenhum outro setor da economia”.
***
Era
bom, em meu entender, que isto tivesse sido dito alto e bom som já em 2004 e,
depois, em 2007. Por onde andavam os jornalistas e as oposições políticas?
A
postura de falar em tempo não útil é bem recorrente. Tantos casos poderiam ser
mencionados. Recordo, a título de exemplo, o dum Conselheiro do TdC (Tribunal de Contas) que publicou, após a jubilação, um
livro a demonstrar como o Estado esbanja o dinheiro dos contribuintes; e
recentemente o do próprio TdC que vem criticar a ineficiência da reversão da
privatização da TAP, dando “uma no cravo, outra na ferradura”, como fizera em
tempos sobre a “Parque Escolar, EPE” – e sem solicitar a promoção de inquérito
para que se fizesse justiça. Até um antigo Presidente da República acusou a posteriori de falta de lealdade institucional
um seu antigo primeiro-ministro.
Quanto
à postura pouco clara, ambígua, contraditória, e pressões indevidas da Comissão
Europeia e da sua Direção-Geral da Concorrência (DGcomp), bem como do BCE, atente-se no que se passou com a resolução do BES e a
pressão para a venda do Novo Banco ou a obrigatoriedade de venda do Banif e do
Banco Popular (este por
um euro) ao Banco
Santander. Claro, quem acaba por pagar tudo é o acionista enganado, o cliente, o
contribuinte.
Isto
para não falarmos do custo de oportunidade ou do “roubo”, no primeiro caso, através
das tabelas mensais de retenção na fonte para IRS e do pagamento por conta, e,
no segundo, pela duplicação de imposto IA+IVA sobre a venda/compra de automóvel
e duplicação de imposto ISP+IVA na venda/compra dos produtos petrolíferos e
pela taxa do audiovisual na fatura da eletricidade mesmo para quem paga serviço
de televisão por cabo ou wireless.
***
Por
outro lado, somos quase diariamente confrontados com informação dos contratos
swap e das PPP (Parcerias Público-Privadas), sobretudo na rodovia, e
respetivos custos, em que era preciso tudo correr muito bem para o Estado não
sair defraudado da cilada, vindo posteriormente a integrar governos alguns dos responsáveis
técnicos. E quem não se lembra das declarações a posteriori do que então era Ministro das Obras Públicas sobre os custos
da construção do Centro Cultural de Belém para receber, pela primeira vez em Portugal,
a presidência europeia rotativa? Questionado, quando já era presidente da Luso-Ponte,
sobre a derrapagem orçamental de então, disse que naquela altura não se fizera
um orçamento, mas uma estimativa. E o que por aí vai sobre atividade na administração
central e, sobretudo em termos proporcionais, na gestão autárquica, em função
de interesses particulares? E, se falarmos em falta de inspeção, auditoria e fiscalização?
É de questionar como se deixam andar anos e anos casos, por exemplo, de fraude
fiscal, de negócios em medicamentos.
***
E não
posso deixar de fazer reparo à administração da Justiça, em que todos dizem
confiar, quando ela é lenta, se torna complexa e, sobretudo, quando se faz
espetáculo ou quando caprichosamente não se deixam anexar no processo meios de prova
supervenientes ou alegadamente redundantes.
Detêm-se
presumíveis arguidos frente a câmaras televisivas no Parlamento ou na manga do
aeroporto; investigam-se instalações residenciais ou escritórios frente à
comunicação social; dão-se entrevistas, falando de tudo e de todos, mas
confessando que não se fala de processos em concreto; deixam-se passar para a
comunicação social informação sobre processos, incluindo excertos de
interrogatórios mesmo videogravados. E não se investiga eficazmente o atropelo
ao segredo de justiça e, consequentemente, os prevaricadores não podem ser
punidos.
Depois,
se a acusação aos arguidos não é deduzida ou o é de forma não sustentada, só
temos que esperar o momento certo para os contribuintes serem notificados para pagarem
a conta. É o Estado que paga – fico horrorizado com os processos intentados
contra o Estado (Até os de objetor de consciência!) –, mas o Estado com o seu verbo
convincente vai sempre buscar as verbas aos contribuintes através de
contribuições, impostos, taxas, tarifas, emolumentos, vinhetas, etc. ou até de
cortes salariais ou em subsídios. Ora, se aplicasse bem as verbas e tivesse
verbo contido…
As indemnizações
por erros processuais não são nada raras. E, recentemente, tivemos a sancionada
pelo TEDH em relação a Paulo Pedroso. Virá aí alguma, a seu tempo, para Carlos
Cruz? E porque não para Sócrates, Pinho, Salgado, Vara ou Oliveira e Costa?
Por fim,
voltando à CPI, pergunto-me quais as consequências práticas dos inquéritos
parlamentares havidos até hoje? Ganhou-se em informação sobre responsabilidades
e responsáveis? Houve consequências significativas no foro judicial?
Nada se
deslindou por via das CPI sobre Camarate; o caso BPN, apesar do trabalho insano
dos deputados, não passou de uma paródia; nada se concluiu de prático sobre o caso
GES, ressaltando pouco mais que o zeinal-bavismo crasso; um relatório sobre
Domingues e CGD não mereceu aprovação final; e pouco mais.
É mesmo
de questionar se fará sentido desenvolver-se um inquérito parlamentar sobre matérias
que deviam andar pela alçada da Justiça. Porém, como a discussão é livre e os
deputados têm uma palavra a dizer, seja. Mas então não se insista muito, a propósito
destes casos, na independência ou separação dos poderes.
2018.06.28 –
Louro de Carvalho
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