sexta-feira, 22 de junho de 2018

O estatuto do herói: o herói em “Os Lusíadas”


0. Nota prévia
A presente reflexão foi motivada pelo exercício n.º 7 do grupo I da Prova Escrita de Português (cód. 639) do 12.º ano na 1.ª fase de exames nacionais neste ano letivo de 2017/2018.
Afigura-se, a meu ver, tarefa demasiado ingente pedir ao aluno que, num curto tempo de 120 minutos, “escreva uma breve exposição na qual distinga o herói em Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, do herói em Mensagem, de Fernando Pessoa” – sem acesso ao texto. Também é temerário, nestas circunstâncias, determinar que a exposição deve incluir:
Uma introdução ao tema; um desenvolvimento no qual explicite, para cada uma das obras, uma caraterística que permita distinguir o herói em Os Lusíadas do herói em Mensagem, fundamentando as caraterísticas apresentadas em, pelo menos, um exemplo significativo de cada uma das obras; e uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema”.
Isto depois de ter o aluno respondido a quatro questões sobre um poemeto de “Mensagem” e duas sobre um excerto de “Frei Luís de Sousa” e sabendo que há de responder a 7 questões com base na leitura de um texto que virá a seguir e glosar um tema de interesse para a atualidade.
É certo que o IAVE,IP não é muito exigente. Basta, “para distinguir o herói em Os Lusíadas do herói em Mensagem, que o examinando aborde “um tópico relativo a cada uma das obras”. E, considerando que podem ser abordados outros igualmente relevantes, fornece os seguintes exemplos de tópicos:
Em Os Lusíadas, os heróis são apresentados na sua dimensão humana e histórica, o que é patente, por exemplo, nos protagonistas da viagem marítima até à Índia, nomeadamente Vasco da Gama e os marinheiros, cujos feitos permitiram o desvendamento dos mares desconhecidos; os heróis são os portugueses que, vencendo os seus medos e todos os perigos, foram capazes de superar a própria condição humana e de ascender ao plano dos deuses, como se comprova, por exemplo, quando são recompensados na Ilha dos Amores. Em Mensagem, os heróis não se inscrevem num tempo nem num espaço determinados, assumindo uma dimensão mítica/simbólica (caso de Dom Sebastião, enquanto símbolo da ambição que poderá fazer renascer a glória da pátria); os heróis situam-se na esfera da espiritualidade, como é o caso de Dom Fernando, que age como instrumento da vontade divina/de uma vontade superior.”.
Além disso,
O texto deve ser bem estruturado e constituído por três partes (introdução, desenvolvimento e conclusão) devidamente proporcionadas, assegurando, “adequadamente, a progressão e o encadeamento das ideias”.
Não será caso para quem passa por este exame ficar farto de heróis?
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Assim, vou fixar-me predominantemente no herói camoniano deixando para outra oportunidade outros tipos de herói, embora tendo em a contextualização histórico-literária
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1. O herói na Antiguidade
O que distingue o herói do homem comum está conexo com o universo do mito. A própria definição de herói remete para a mitologia clássica, como afirma Joel Schmidt no Dicionário de Mitologia Grega e Romana (Lisboa, Edições 70, 2002):
É chamada herói, na mitologia, toda a personagem que exerceu, sobre os homens e sobre os acontecimentos, uma determinada influência, que lutou com tanta bravura, ou realizou feitos de uma tal temeridade, que se elevou acima dos seus semelhantes, os mortais, e que pôde ousar aproximar-se dos deuses, merecendo assim depois da morte uma veneração e um culto particulares”.
Anote-se que, nos poemas hindus, a figura do herói era a incarnação de um deus. Assim, tudo nele, desde o aspeto físico até à ação, pode ser pensado ou decorrer fora de todos os moldes humanos, com proporções monstruosas desmedidas.
Já nos poemas homéricos, o herói assume feição humana, sucedendo quase o mesmo com os deuses, concebidos como realizações superiores de tipos humanos, sem limitações que impedem em cada um destes o realizar-se como desejaria. E, mesmo quando intervêm, os deuses fazem-no de forma discreta, levando a que a liberdade do herói seja salvaguardada: pode discutir a vantagem ou desvantagem do conselho do deus protetor, indo ao ponto de o contrariar.
Obviamente, como personagem relevante pela excecionalidade com que enfrenta os mais difíceis obstáculos, o herói está intimamente associado à epopeia, razão por que terá sido a poesia épica, a Ilíada em particular, a primeira a criar a ideia de herói. Assim, Aquiles, Ajax, Ulisses e muitos outros entregam-se, nos combates da guerra de Tróia, a autênticos prodígios de habilidade e coragem. Porém, já desde e por nascença, estes heróis são diferentes dos homens. Na maior parte, são filhos dum deus ou duma deusa de quem recebem, durante a sua existência, ajuda e proteção.
Foram, pois, os gregos quem primeiro definiu claramente o protagonista conhecido como herói épico. Esses heróis de tragédia devem evocar na e para a plateia um senso de heroísmo através de lendária e inspiradora sabedoria. O herói tem de ser um homem cuja fortuna é trazida por suas próprias caraterísticas admiradas. Os famosos poemas épicos gregos, A Odisseia e A Ilíada , contêm esses heróis e ações que são imensos.
Em Roma, a conceção de herói é um pouco diferente da grega. O herói virgiliano, o mais proeminente, difere dos heróis homéricos, pois ele traduz os principais valores romanos, pensando sempre na coletividade e no seu destino, não na glória pessoal, na aretê grega. Ao invés, ele possui, a “virtus” que todo o “vir romanus” possui, procurando ser um homem direito, honesto, reto e conveniente. A valentia e coragem são qualidades de caráter, não de força. Temos, assim, na Eneida, um herói que vai ao encontro do seu Destino, predito pela mãe Vénus, reiterado por Júpiter, mas retardado por Juno. É um herói estoico que transparece pela “pietas”. O “pius Aeneas” revela obediência irrestrita aos deuses e aos superiores, mesmo que isso possa trazer-lhe infelicidade. Apresenta-se como homem de missão e herói da paz, que apenas as circunstâncias levam à guerra. Não realiza as próprias ambições, apenas cumpre o seu dever com justiça, comiseração e fidelidade.
Assim, os ideais augustanos estão representados pela composição do herói Eneias, proveniente de Troia e destinado a fundar a Nova Troia que viria a ser Roma. Os seus conceitos morais são amplamente identificados com os do “Princeps”: a “virtus”, a “pietas” e a “humanitas”.
Este herói troiano, filho de Anquises e de Afrodite, por um lado, descende da deusa do amor e, por outro, tem a sua origem no próprio Zeus, como afirma Pierre Grimal: “(...) Por parte do pai, filho de Cápis, descende da raça de Dárdano e, por conseguinte, do próprio Zeus.”. Viveu nas montanhas até os 5 anos, sendo confiado a Alcátoo, marido de sua irmã Hipodamia, para ser educado. Na guerra de Troia, sobressai como um grande guerreiro, sendo somente inferior a Heitor. Desde o nascimento as predições revelam que será rei e terá grande descendência. Segundo Grimal, assim Afrodite profetiza a Anquises ao revelar-se-lhe, após partilhar seu leito. Assim também Poseidon relembra a profecia de Afrodite ao salvar o herói na Ilíada. Grimal (op. cit) sintetiza desse modo:
“Assim, desde os Poemas Homéricos, Eneias surge como um herói protegido pelos deuses, aos quais obedece respeitosamente, estando-lhe reservado um destino grandioso: nele repousa o futuro da raça troiana. Todos estes elementos serão retomados por Virgílio na “Eneida” e interpretados no quadro da lenda romana. Desse modo, após a queda de Troia, o herói parte com seu pai, seu filho Iulo e sua esposa Creúsa para o monte Ida onde teria construído, juntamente com os teucros dispersos, após o massacre dos gregos, uma nova cidade onde reinou, cumprindo-se, assim, a profecia de Afrodite.”.
Uma coisa é certa. Para os clássicos (literatura greco-latina) e, posteriormente, no Renascimento (em que se tomou o legado greco-latino como referência), o herói acumulava os dois domínios, o épico e o mítico. Basta pensarmos no herói d´Os Lusíadas (obra do Renascimento) para se dissiparem as dúvidas. O perfil deste herói coletivo, evidenciando “todas as capacidades de afirmação do Homem ao enfrentar a adversidade dos deuses e dos elementos” (Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. II, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1999), cujo comportamento se reparte “por um tríptico de grandes valores, no seio dos quais se move expeditamente: é a bravura militar destemida, a nobreza cavaleiresca e a excelsitude no Amor”.
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2. O herói épico
Assim, para se definir o herói épico importa não esquecer que este ganha vulto como protagonista de narrativas heroicas, sobretudo épicas que se distinguem pelo facto de nelas haver lugar especial para o desígnio religioso e profético (em favor duma coletividade), a fantasia, a inverosimilhança e o imprevisto, mas sucedendo que o terreno discursivo onde impera o heroísmo obedece a regras próprias.
Não obstante a centralidade exemplar do herói épico, a sua configuração foi-se transformando consoante o enquadramento histórico-cultural, visto que é personagem variavelmente construída e modulada segundo premissas ideológicas, literária e historicamente motivada e, assim, sujeita à própria estrutura técnico-compositiva do texto. Seja como for, há atributos inerentes ao conceito de herói que se mantêm – as caraterísticas de qualificação e exceção pelas quais se destaca das restantes figuras que povoam a história, definindo-se pela convergência de determinadas qualidades e pelo caráter inédito e exemplar que elas possam assumir perante o universo fictício ou real da história.
O herói épico tem, pois, de ser o homem cuja fortuna é trazida pelas suas próprias caraterísticas admiradas. Os famosos poemas épicos gregos, A Odisseia e A Ilíada , contêm esse tipo de herói com as ações que os celebrizam. Mas também Rei Arthur, Beowulf, Siegfried, Gilgamesh e Rama são exemplos de heróis épicos.
As caraterísticas do herói épico prendem-se com sete parâmetros, que é conveniente explanar. Pela nobreza de nascimento, este herói é um rei, príncipe, semideus ou nobre de alguma capacidade; no atinente às capacidades sobre-humanas, é o guerreiro com o potencial de grandeza baseado em seus relevantes atributos, como astúcia, bravura, humildade, sabedoria, virtude; no concernente a viagens, o herói épico ganha fama por fazer viagens para lugares exóticos por escolha ou chance, por via de regra, para lutar contra o mal; como guerreiro incomparável, este herói tem em geral a reputação de grande guerreiro, mesmo antes do começo da história; quanto à legenda cultural, deve referir-se que, antes de o herói épico poder ser universalmente conhecido, ele deve primeiro ser uma lenda na sua cultura; no capítulo da humildade, o herói realiza grandes feitos por si mesmos e não pela glória, podendo ser punidos e humilhados os heróis que se gabam ou exibem arrogância; e, no quadro das batalhas sobrenaturais, os oponentes e obstáculos que o herói enfrenta são normalmente seres sobrenaturais, como Grendel, Poseidon ou um ciclope ou forças da natureza grandemente personificadas.
Entretanto, a figura do herói foi-se tornando mais humana, mais real, sem com isso perder a grandiosidade, pois move-se num universo agridoce do perigo e aventura, mescla de sedução e sofrimento, presente entre as inúmeras motivações que o impulsionam para abraçar novos desafios e novas lutas. É um agente de fratura nas vivências comuns a toda a sociedade, que prefere enveredar por comportamentos e ações que inauguram novos trilhos que o desviam progressivamente das outras personagens e dos valores que partilham. Este herói não é necessariamente um guerreiro que enfrenta exércitos e que sai vencedor de todas as lutas vividas. É, acima de tudo, aquele que sobressai pela determinação e pela entrega a uma causa, esquecendo-se de si próprio em prol da luta por um sonho. Torna-se mito de outro modo, vencendo a morte pela projeção que ganhou como marca de referência para a sociedade, sendo assinalado como exemplo a seguir. 
Em suma, enquanto o herói épico é sempre um herói mítico, essa realidade não se mantém, obrigatoriamente, na configuração do herói mítico, pois este pode não ser um herói épico. Por exemplo, n’Os Lusíadas o herói é, sobretudo, épico (não entrando nesta classificação Inês de Castro), ao passo que em Mensagem surge o herói mítico por excelência, aquele cuja vida foi a entrega a uma causa, a um sonho, algo que permanece no espírito dos vindouros e lhes passa a mensagem de missão a cumprir (Dom Sebastião, Padre António Vieira…).
A este respeito diz Hernâni Cidade (in Luís de Camões, O Épico – 2001):
 “Os Portugueses do Renascimento levantaram a vida humana a maior altura, deram-lhe novas perspetivas e interesses, fizeram, no campo da ação navegadora e guerreira, o que no campo da arte fizeram os Italianos. Esses homens multímodos, navegantes e guerreiros, políticos e poetas, geógrafos e cronistas, aventureiros e apóstolos, constituem um momento insigne na história da personalidade.”.
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3. O herói em Os Lusíadas
Em Camões estão subjacentes dois tipos de herói: o nato, a quem nada é exigido para ascender ao estatuto da imortalidade, pois herda por nascimento os títulos que o libertarão da lei da morte – pelo que não é verdadeiramente herói; e o adquirido, mais concretamente aquele que tem de vencer os perigos e contratempos para se elevar ao plano do semideus. Este é, para o poeta épico, o verdadeiro herói, o ser excelente e excecional que alcança a sublimação. É, segundo o nosso épico, o povo português cujo estrato valoroso, na Ilha dos Amores, é conduzido pela mão dos deuses e levado por caminhos jamais pisados por humanos, símbolo da glória e da eternidade. O Homem, “bicho da terra” tão pequeno, conseguiu assim vencer o mar que o transcendia, graças à sua ousadia e capacidade de sacrifício, superando-se e indo “ mais alto e mais longe”.
3.1. A ação da obra e o herói épico
Como o título indica, o herói desta epopeia é coletivo, os Lusíadas ou filhos de Luso, os portugueses. Nas estrofes (ou estâncias) iniciais do discurso de Júpiter no Concílio dos deuses (I, est. 24-29), que abre a parte narrativa, surge a orientação laudatória do autor. O pai dos deuses afirma que desde Viriato e Sertório, o destino (fado) dos portugueses (forte gente de Luso) é realizar feitos tão gloriosos que façam esquecer os dos impérios anteriores (assírio, persa, grego e romano).
O desenrolar da sua história atesta-o, pois, além de ser marcada pelas sucessivas e vitoriosas lutas contra mouros e castelhanos, mostra como um país tão pequeno descobre novos mundos e impõe a sua lei no concerto das nações. E, no final do poema, surge o episódio da Ilha dos Amores (IX, est. 19-92 – X,1-141), recompensa ficcional da gloriosa caminhada portuguesa pelos tempos. E é confirmado o receio de Baco de as suas façanhas de conquista serem ultrapassadas pelas dos portugueses.
Camões dedicou a sua obra-prima ao rei Dom Sebastião de Portugal (I, est. 6-18; Xm 145-156). Os feitos inéditos dos descobrimentos portugueses e a bem-sucedida chegada ao “novo reino que tanto sublimaram” (I, est. 1) no Oriente, foram sem dúvida os estímulos determinantes para a tarefa, desde há muito ambicionada, de redigir o épico português.
Havia, pois um ambiente de orgulho e ousadia no povo português. Navegadores e capitães eram heróis recentes da pequena nação, homens capazes de extraordinárias façanhas, como o “Castro forte»” (o vice-rei Dom João de Castro), falecido poucos anos antes de o poeta aportar na Índia.
E principalmente o Gama, a quem se devia o descobrimento da nova rota para o Oriente numa viagem difícil e com poucas probabilidades de êxito, e que vencera inúmeras batalhas contra reinos muçulmanos em terras hostis aos cristãos. Esta viagem épica foi, por isso, tomada como história central da obra, à volta da qual vão sendo contados episódios da História de Portugal, cujo enaltecimento é o escopo do poeta.
Vejamos mais em detalhe.
3.1.1. Na Introdução
Na esteira da ideologia e da estética renascentistas, o poema camoniano coloca o homem português no centro do mundo ao atribuir-lhe caraterísticas humanas e sobre-humanas e ao utilizá-lo como símbolo da confiança nas capacidades humanas.
O primeiro momento da progressiva construção do herói em Os Lusíadas ocorre na Proposição (I, est. 1-3), em que o vate sintetiza o conceito de herói e cujos principais dados são os seguintes: a intenção do poeta, “cantando espalharei por tida a parte” (glorificar os feitos do povo português, através do seu canto épico); a imortalidade como traço essencial do conceito de herói – “As armas e os barões assinalados”; “Daqueles reis que foram dilatando / A Fé, o Império…”; “E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando”; a assunção da dimensão coletiva, mas aristocrática, do herói da obra: “Que eu canto o peito ilustre lusitano” (não é a arraia miúda como na historiografia de Fernão Lopes); e a apresentação dos quatro planos do poema, na visão de Hernâni Cidade: (a Viagem – “As armas e os barões assinalados / Que, da ocidental praia lusitana, (…) / Passaram ainda além da Taprobana…”; a História de Portugal – “… reis que foram dilatando / A Fé, o Império…”; a mitologia – “Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / (…) A quem Neptuno e Marte obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta…”; e as considerações do poeta – “Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
Observa-se, desde já, a intenção do épico de imortalizar os portugueses pela grandeza dos seus feitos e por suplantarem os deuses antigos (“A quem Neptuno e Marte obedeceram”). Assim, inicia o processo de mitificação do herói, elevando-o a um plano superior e estatuto de imortal, que suplanta os heróis da Antiguidade, considerados modelos (Ulisses, Alexandre Magno, Trajano, Eneias).
Na Invocação (I, est. 4-5) subsequente à Proposição, Camões invoca as Tágides (ninfas do Tejo) solicitando-lhes que o auxiliem na tarefa que tem em mente. Ora, esta invocação é um outro dado que reforça o processo de engrandecimento e divinização dos heróis navegadores, dado que o próprio poeta considera que necessita dum estilo e dum talento superiores que sejam adequados à grandiosidade da tarefa. Daí que o poeta selecione as ninfas do rio português, divindades por ele criadas, a reforçar o caráter nacionalista do poema; adote o canto épico e um “som alto e sublimado”, um “estilo grandíloco e corrente”, uma “tuba canora e belicosa”, consentâneos com a grandiosidade do povo que se propõe cantar; e visione uma dimensão universal para o seu poema (“Que se espalhe e se cante no Universo”, já anunciada na Proposição – “Cantando espalharei por toda a parte”).
Dedicatória (I, est. 6-18) constitui outro momento de glorificação/imortalização heroica, mas que, neste caso, se projeta no próprio poeta, pois, ao cantar a imortalidade dos navegadores, ele se torna igualmente imortal (“Que não é prémio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno”).
3.1.2. Na viagem de Vasco da Gama e companheiros à Índia
A ação central do poema – a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia – corporiza a luta dos navegadores, capitaneados pelo Gama, contra as adversidades que surgem no trajeto, bem como a recompensa dos seus feitos e heroísmo. Essas adversidades, esses obstáculos, são de natureza diversa. Assim, logo no episódio da partida das naus em Belém e no do Velho do Restelo, se evidencia bem o clima emocional que envolve a partida dos navegadores: dor, sofrimento, choro, mágoa, saudade, insegurança, oposição familiar e da voz do bom senso (a voz do Velho) a esta aventura.
Noutros momentos da viagem, destacam-se os perigos terríveis que o mar desconhecido oferece. É o caso das chamadas Cousas do Mar: após a passagem do Equador, apesar de a rota ser já conhecida, os nautas deparam-se com diversos fenómenos caraterísticos das águas quentes dos trópicos – o Fogo-de-Santelmo e a Tromba Marítima –, a que se soma a Tempestade. Ante estes fenómenos, o poeta valoriza o conhecimento e o saber experimentais, tecendo crítica implícita aos que possuem do mundo apenas um conhecimento livresco, teórico (“Vejam agora os sábios na escrita / Que segredos são estes de Natura!” – V, es. 22). Nestes episódios, a mitificação do herói reside na questão da superação do medo e no desvendar dos segredos da natureza.
Outro elemento considerar é a hostilidade dos povos indígenas, concretizada nomeadamente nas tentativas frustradas das gentes de Quíloa e Moçambique para a destruição da armada, a contrastar com o caloroso acolhimento do Rei de Melinde. De facto, com a exceção de Melinde, até à chegada à Índia, os marinheiros tiveram de se haver com as hostilidades dos chefes locais.
O simbólico episódio do Adamastor é o mais importante e significativo na mitificação do herói, já que os portugueses desvendam o seu esconderijo, até aí nunca descoberto (mais uma vez, a ação lusa é associada ao conhecimento, ao desvendar do desconhecido). Por outro lado, temos a coragem e a determinação do Gama, que não se deixa intimidar pelo gigante, nem mesmo face às suas profecias aterradoras, acabando por o derrotar e reduzir à sua destruição, depois de ele confessar ao herói toda a sua vida de amargura – facto que simboliza a vitória do humano sobre a divindade. De facto, este episódio liga-se ao da Ilha dos Amores, pois foi a paixão do gigante por Tétis que o levou ao castigo de Júpiter, transformando-o num rochedo, constantemente rodeado pelo mar, o lar da sua amada. Ora, quando os portugueses são recebidos como deuses na ilha divina, Tétis une-se a Vasco da Gama, a significar que os portugueses superaram os deuses na coragem, na determinação e também no amor.
E o episódio da Ilha dos Amores constitui o auge do processo de mitificação dos portugueses, construído ao longo do poema. Neste passo, o amor surge como o prémio e forma de atingir a imortalidade. De facto, são as próprias deusas que escolhem os navegadores para com eles se relacionarem, legitimando-lhes, assim, o estatuto de heróis, alcandorando-os ao estatuto divino e imortalizando-os. Por outro lado, a estruturação do episódio traduz a construção progressiva de um ambiente que potencializa a divinização e mitificação dos heróis: o aparecimento da Ilha, mágico e súbito (“Que Vénus pelas ondas lha levava / […] Pera onde a forte armada se enxergava”); a descrição idílica e sensorial da Ilha, fiel ao “locus amoenus” clássico; os jogos de sedução das ninfas, aconselhadas por Tétis, após o desembarque dos marinheiros; a coroação e sagração dos heróis através do amor total com as ninfas; a verificação de que o esforço e o sacrifício conduzem à fama e à glória; os deleites que a Ilha oferece (“deleitosas honras”, “preeminências gloriosas”, “os triunfos”, “a fronte coroada / De palma e louro”, “a glória e maravilha”).
Quer dizer que, superados todos os obstáculos (Repare-se que, perto do final da narração da viagem ao Rei de Melinde, o Gama relata, de forma emotiva e comovente, o sofrimento e a dor dos marinheiros que morreram devido ao escorbuto, outro elemento que contribui para a referida mitificação – o homem que dá a vida pela pátria), os navegadores recebem o merecido prémio, figurado no episódio da Ilha, culminando, em glória e prazer, o que se tinha iniciado com dor.
O protagonista deste plano narrativo é o Gama, que assume, no final, o estatuto de herói épico em representação do povo que integra. O seu heroísmo revela-se na determinação com que parte de Belém, da “praia de lágrimas”, não consentindo que o seu espírito e determinação sejam abalados pelo sofrimento e pela dor que testemunha. Revela-se, igualmente, na vontade férrea de cumprir a missão de que foi incumbido, embora consciente de que ela exigiria um esforço sobre-humano (“mais do que prometia a força humana”). Revela-se, por último, na capacidade demonstrada de superar as adversidades e de vencer o medo, eminentemente simbolizado no episódio do Adamastor – a síntese de todos os perigos (humanos, cósmicos e míticos) que espreitavam os nautas portugueses, só lhes valendo “Deus” e o “santo coro dos Anjos”, invocados pelo capitão (cf V, est. 60) ou a “Divina Guarda”, invocada em II, est. 31, e VI, est. 81.
3.1.3. O plano da História de Portugal e o herói
Se a Viagem é a ação central, o escopo do Vate é glorificar o povo português, o que faz cantando a sua História a partir do começo geográfico na ponta ocidental do mundo conhecido.
Assim, após situar geograficamente Portugal na Península Ibérica e na Europa, o Gama narra cronologicamente a História de Portugal, de Viriato ao rei Dom Manuel – narrativa em que predominam os feitos guerreiros protagonizados por heróis indivíduos que, no entanto, contribuem para o engrandecimento do verdadeiro herói do poema – o povo português, herói coletivo e aristocrático.
O primeiro protagonista e herói mitificado no plano da História é Viriato, figura histórica e simultaneamente mítica de “Pastor” e “homem forte” que “os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá que dome”, ganhando o estatuto de protorresponsável pela génese deste “Reino ilustre”.
No canto III (estâncias 35 a 40), temos Egas Moniz, o aio fiel de Dom Afonso Henriques que, ao ver o amo cercado pelo inimigo, ofereceu a vida como penhor da lealdade a prestar pelo soberano ao rei de Castela, seu primo. Levantado o cerco e, como o monarca português tardou a cumprir a palavra dada por Egas Moniz, vindo mesmo a negar fazê-lo, este decide oferecer a sua vida e a dos familiares ao rei de Castela, cuja ira cede ante a dignidade e fidelidade do nobre português (“Mas o Rei vendo a estranha lealdade, / Mais pode, enfim, que a ira, a piedade.” – III, est. 40).
Ainda no canto III (estâncias 42 a 54), encontra-se o episódio da batalha de Ourique, onde é visível, novamente, o estatuto de herói dos portugueses que vencem corajosamente o exército mouro, muito superior em número ao português. Aqui, Afonso Henriques é eleito rei-herói, porque se lhe reconhece o estatuto de portador duma missão divina, outorgada por Cristo que lhe apareceu.
A batalha de Aljubarrota (IV, est 28 a 45), em cujo devir assume papel preponderante a figura de Nuno Álvares Pereira, o herói que desafia os compatriotas a pegar em armas contra o invasor. A postura adotada e o discurso proferido configuram em tudo o estatuto de herói: audácia / coragem, liderança, determinação, energia, sabedoria e defesa de um ideal, o da liberdade e da pátria. Por outro lado, este episódio faz ressaltar, mais uma vez, a valentia e a coragem dos portugueses que, não obstante se encontrarem em desvantagem numérica e menos apetrechados de armas, vencem os castelhanos, garantindo a liberdade e a independência da pátria.
No que diz respeito à figura real, a narração do Gama ao rei de Melinde engloba todos os reis portugueses até à data, mas não lhes dá igual destaque. Da 1.ª dinastia, destacam-se Dom Afonso Henriques, o primeiro monarca lusitano, e Dom Afonso IV, em razão da luta contra os mouros, espelhada nos episódios bélicos das batalhas de Ourique e do Salado, respetivamente. Já na 2.ª dinastia, ganham relevo a figuras de Dom João I, pelo papel desempenhado na defesa da independência nacional, retratado no episódio da batalha de Aljubarrota, e por ter iniciado a luta contra os mouros fora do território português, e a de Dom Manuel, o monarca que cumpriu o sonho do Oriente. Pelo exposto, se infere que a narração privilegia os monarcas e os reinados marcados pelos feitos guerreiros, ocupando outros soberanos um lugar secundário, exatamente por os seus reinados não terem sido caraterizados pelos feitos guerreiros ou pelas conquistas.
3.1.4. O plano das considerações do poeta
Também o poeta épico se considera elemento integrante do “peito ilustre lusitano”, o tal herói coletivo e aristocrático. Com efeito, sente-se dotado pelo engenho e a arte de cantar aqueles que “se vão da lei da morte libertando”, abandonando agora a “frauta rude” e tomando a “tuba canora e belicosa”. Por outro lado, sente-se incumbido de uma missão transcendente, a de não deixar que o dinheiro, a corrupção, o luxo, o poder ou a traição esvaziem a glória a que os ilustres lusos alcandoraram a Pátria. Assim, se fala da condição humana, também anatematiza os que ignoram o poder da cultura e erudição e desmerecem do ser homem, do ser português, do ser cristão. Por isso, faz a apologia do conhecimento colhido a partir da observação, da experiência e da inovação, queixa-se de ver o Reino sepultado “No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza” (X, est. 145) e aconselha o rei a tomar as rédeas do poder para reconhecer as ações dos heróis, administrar na justiça e equidade e recompensar o trabalho feito, os sofrimentos passados e a defesa da vida, liberdade e soberania (cf X, est. 146-156).
Quanto ao mais, também ele fez o percurso do Gama e seus nautas, percorreu o Oriente numa fase posterior da História e salvou a nado a epopeia que havia escrito. É o herói pela epopeia, a qual faz que a multivalente gesta portuguesa exista na memória coletiva.
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4. A mitificação do herói
O mito é a forma adotada pelos povos para a criação de heróis, que procuram deificar, imortalizar, ganhando com eles um estatuto de exceção no mundo. E a mitificação resulta da eminente excecionalidade do herói, da convicção de que foi constituído numa missão providencial inerente ao feito heroico, sem a qual este não seria realizável, e da necessidade que o povo tem desta figura heroica para sustentáculo da sua identidade e subsistência como povo.
Note-se que, como já foi apontado atrás, o conceito de herói, em Os Lusíadas, não é apresentado de uma só vez, vai-se, antes, construindo ao longo do poema.
Logo na Proposição (I, est. 1-3), Camões enuncia o herói da epopeia: “Que eu canto o peito ilustre lusitano” (símbolo de forma e audácia, valor e heroicidade, características portuguesas), ou seja, o valoroso povo português, herói coletivo, mas aristocrático, que se vai manifestando por heróis individuais – Vasco da Gama, o navegador que concentra em si os esforços de 80 anos (1417-1497), atingindo a Índia (no plano da Viagem), os reis e os heróis, como Nuno Álvares Pereira (no plano da História de Portugal). A figura do herói épico nacional carateriza-se, pois, pelos feitos grandiosos, nunca antes realizados por humanos, pela conquista da imortalidade, devido a esses feitos, pela vulnerabilidade dos deuses em relação aos portugueses, num anúncio da ascensão dos homens à condição divina, como acontecerá na Ilha dos Amores, e também pela superação dos heróis das epopeias antigas: Cesse tudo o que a Musa antiga canta / Que outro valor mais alto se alevanta
Na Dedicatória (I, est. 6-18), o poeta dedica o poema a D. Sebastião, reafirmando a natureza histórica do seu canto; com efeito, a epopeia camoniana não apresenta um carácter lendário como acontecera nas epopeias antigas; à obra do poeta luso está subjacente um fundo histórico – a História de Portugal – que irá adquirir a forma de uma narração épica. 
Diz J. Oliveira Macedo (in Sob o Signo do Império, 2002):
Camões pretende celebrar feitos gloriosos, dignos de louvor, praticados por pessoas valorosas – navegadores, guerreiros, reis, missionários (…) –, votadas à dilatação da Fé e do Império, e que conseguiram ultrapassar todas as barreiras (espaciais e ideais) no mar e em terra, merecendo por isso ser recordadas através dos tempos, ou seja, imortalizadas – “se vão da lei da morte libertando” (I, est. 2).
Ao longo do poema, Camões mitifica este herói e inicia a tarefa na Introdução e prossegue-a nas reflexões feitas no final do canto I, quando se debruça sobre a fragilidade do ser humano, considerado “bicho da Terra tão pequeno” (est. 106), ante os perigos que o espreitam constantemente.
No Consílio dos Deuses no Olimpo (I, est. 19-41), o herói nacional é enaltecido, sobretudo, através da oposição de Baco. Na realidade, o facto de um deus temer que a sua glória seja destruída pelos humanos serve inevitavelmente a construção do herói: (...) O padre Baco ali não consentia / (...) conhecendo / Que esquecerão seus feitos no Oriente / Se lá passar a Lusitana gente. Com efeito, para lá de todo o mérito dos nautas lusos, que é reconhecido por outros deuses (Vénus, Marte, Júpiter, que, no final da reunião, decide que os portugueses seriam ajudados a alcançar "a terra que buscavam"), é o receio de Baco que engrandece a gente lusa, conferindo-lhe um estatuto que culminará com a superação da própria condição humana realizada pelo "bicho da terra tão pequeno”, frágil e impotente perante as forças cósmicas. 
Ora, nos cantos seguintes, a narração retrata um grupo de navegadores, comandado por Vasco da Gama, que enfrenta os diversos perigos que lhe surgem no caminho e no cumprimento da sua missão e que os supera com determinação, abnegação, coragem e audácia.
O discurso do Velho do Restelo, embora traduza a visão de uma parte dos portugueses, que se opunha à empresa dos Descobrimentos, e a condenação da versão oficial deste empreendimento, pode ler-se como mais um passo na construção do herói nacional. Na realidade, a comparação do ser humano a Prometeu, que roubou o fogo (símbolo da sabedoria) aos deuses e, por isso, foi castigado, e a Ícaro, que voou tão alto que se aproximou do Sol, o que originou a perda das suas asas de cera e a sua morte, constitui, mais uma vez, a negação da pequenez do ser humano através do desejo de alcançar algo aparentemente inatingível, e é o facto de assumir essa vontade que permitirá ao Homem renunciar à passividade e encetar a busca que o levará à realização das suas capacidades latentes. A vaidade e a cobiça situam-se num plano material e os feitos lusos alcançarão uma dimensão purificada, absoluta, no seu encontro com o universo. É, aliás, para a ambiguidade subjacente à forma de estar do Homem no mundo que remete o verso final do discurso do velho: "Mísera sorte! Estranha condição!", por enfatizar a dicotomia aqui (aliado à passividade) / além (que conduz à mísera sorte, apesar de funcionar como catalisador das pulsões humanas que levam à práxis. 
Já no Canto V, com o “Fogo-de-Santelmo” e a “Tromba marítima”, é a práxis, aliada à experiência da percepção dos fenómenos naturais, que é enfatizada, quando o Gama, que narra ao rei de Melinde a viagem da armada portuguesa de Lisboa a Melinde, afirma: Contar-te (...) / Causas do mar, que os homens não emendem', Os casos vi (...). Vi, claramente visto (...) e “Eu o vi certamente (...). A repetição da forma verbal “vi” redefine a conceção livresca de saber, ao propor um novo método de captação da realidade, baseado na observação, e liga-se à visão renascentista da génese do conhecimento científico. O herói é, então, progressivamente construído ao longo da epopeia, não só pela coragem e valentia, mas porque detém um novo saber, adquirido através das próprias vivências e, por esse motivo, engrandece o espírito humano. É também este o sentido do episódio do Adamastor, em que o gigante critica a ousadia do povo luso, por ter penetrado os seus domínios (“Os vedados términos”), fazendo referência à ação constante dos portugueses, que os levou a fazer “grandes causas”, pois “nunca repousa[m)”. E o discurso do Adamastor funciona como um elogio supremo aos nautas que, de início, o ouvem, receosos, escutando as suas acusações, para, progressivamente, questionarem a identidade do monstro, o que revelará a sua vulnerabilidade face aos marinheiros lusos, pois, simbolicamente, este representa o cabo das Tormentas, que os portugueses conseguiram dobrar, pelo que as lágrimas são transferidas para o Adamastor, que se afasta “cum medonho choro”, determinando a vitória dos humanos sobre a natureza. A chegada à Índia, no Canto VII, é um pretexto para as ilações do poeta sobre a missão de Portugal na História universal, ainda que relacionadas com os ideais cristãos e políticos dominantes na época. 
Os portugueses são, assim, ousados e revelam toda a sua ousadia ao navegarem por mares desconhecidos (“por mares nunca dantes navegados”) e, ao enfrentarem o símbolo desse desconhecido, o Adamastor. E resulta de tal confronto a vitória sobre o medo, personificada nas ameaças que são dirigidas ao Gama e que ele enfrenta, prosseguindo, depois, a sua caminhada.
Significa isto que a viagem que figura a espinha dorsal do poema é a da descoberta do caminho marítimo para a Índia, representa muito mais do que uma viagem geográfica. Na verdade, esta é a viagem do confronto do ser humano com os seus limites, do desvendamento dos segredos escondidos, a o percurso pela rota do conhecimento. Assim, ao superarem os obstáculos que surgem no seu percurso, os navegadores portugueses superam-se a si mesmos, no sentido de que ultrapassam a sua fragilidade, a sua condição de “bichos da Terra tão pequenos”. E, pela sua coragem, determinação e ousadia, enfim, por terem cumprido a sua missão heroica, os portugueses são premiados enquanto heróis. E o prémio que lhes é atribuído é a Ilha dos Amores, símbolo do sonho concretizado, onde o ser humano, alçado ao nível dos deuses, alcança o Amor, a Beleza, a Felicidade e a Harmonia absolutas. Neste contexto, assume especial significado a Máquina do Mundo, revelada a Vasco da Gama por Tétis, a que acedem apenas os que, superando a sua própria condição, como fizeram os nossos navegadores, que chegaram “além da Taprobana”, “mais do que prometia a força humana”.
E é na Ilha dos Amores que se realiza aquilo que constitui a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do herói nacional, elevando os nautas, que, metonimicamente, representam o povo português, à condição de deuses, pois Vénus Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir ao Céu sereno. Os nautas unem-se às deusas amorosas, que os recompensam após o seu percurso iniciático de superação de todas as provações, num espaço onde encontram o amor, onde as deusas As mãos alvas lhe davam como esposas” e “Divinos os fizeram, sendo humanos, pois esta ilha Outra cousa não é que as deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada. E, seguindo a linha de pensamento de acordo com a qual concretiza o caráter épico da obra, o poeta deixa um convite à continuidade da ação dos portugueses, apontando-lhes o merecido prémio. 
O mito da Ilha dos Amores surge, assim, como algo que, de facto, não existe, mas que funciona ao nível do inconsciente coletivo como a realização dos desejos humanos associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é real. 
Finalmente, no Canto X, a ascensão dos heróis humanos na escala existencial é consumada, quando Tétis mostra ao Gama a máquina do mundo, constituída por onze esferas; no centro, encontrava-se a Terra, de acordo com a teoria de Ptolomeu, e os quatro elementos. 
Isto significa que a mitificação do herói resulta aqui da interação do plano da Mitologia com o plano da Viagem. A intriga dos deuses inicia-se com o primeiro Consílio dos Deuses no Olimpo e termina com o episódio da Ilha dos Amores. No Consílio, onde se discuta a abordagem dos deuses à viagem dos portugueses, Vénus, com Marte, seu amante, a seu lado, defende que os navegadores, seus protegidos, concretizem a viagem à Índia. No polo oposto, encontra-se Baco, a tentar impedi-los de concretizar os seus objetivos, por sentir ameaçado o seu domínio e fama no Oriente se ela se efetivar. Derrotada a sua posição no Consílio, Baco provoca a animosidade, contra os portugueses, por parte dos povos da costa oriental de África, leva as divindades marítimas a desencadearem uma tempestade e induz os mouros de Calecute a conspirarem contra o Gama e companheiros. Por seu turno, Vénus intervém, por sua vez, em auxílio dos navegadores, que finalizam a viagem com pleno sucesso. Para os recompensar, na viagem de regresso, auxiliada por Cupido, fá-los desembarcar na Ilha dos Amores, a Ínsua Divina, onde os aguardam as ninfas, que os recebem como heróis, ascendendo eles ao plano divino pela concretização dos seus amores com as deusas. Para completar a recompensa, Vénus proporciona ao Gama a contemplação da já referida Máquina do Mundo e, deste modo, a visão do cosmos.
Assim, através do plano da mitologia, que culmina com a mencionada união dos navegadores portugueses com as deusas do mar e a sua consequente divinização e mitificação, Camões exprime um dos ideais centrais do Renascimento: a confiança na capacidade humana para se opor e suplantar a tradição (os deuses e os heróis da Antiguidade), para superar, em suma, o obscurantismo e a prisão aos livros e para dominar o mundo e a natureza.
Ao unirem-se às ninfas, os marinheiros são recompensados com a imortalidade, simbolizada na união com as ninfas e na atribuição das coroas de louros dos heróis divinizados. Desta feita, os portugueses cumprem a missão para que foram escolhidos, enquanto povo predestinado desde o milagre da batalha de Ourique, e que é confirmada por Júpiter no Consílio dos Deuses. Por outro lado, o seu heroísmo fica associado a valores como a coragem, as virtudes militares, a experiência. Falta-lhes, contudo, o traço cultural, como Camões denuncia em diferentes momentos. Daí que o conceito de heroísmo assuma, em Os Lusíadas, a forma dum conceito abstrato, dum modelo teórico global: perfeição no plano moral e no intelectual, bem como no domínio da ação, “a imagem de um homem inteiro que impõe a sua vontade à natureza e que afirma a liberdade em face do destino.” (in MATOS, Maria Vitalina Leal, Tópicos para a Leitura de Os Lusíadas, 2014). No entanto, este modelo não se concretiza na obra camoniana na vertente intelectual e o aspeto moral, altamente presente na epopeia, decai com o desgaste do tempo. Basta atentar nas críticas que o poeta faz para se chegar a esta conclusão: à ignorância, à ingratidão, ao egoísmo, à cobiça, ao abuso de poder, à exploração dos mais fracos, etc. Com efeito, estamos na presença de um modelo teórico que Luís de Camões procura construir, mas que não se concretiza na prática, pelo menos na sua totalidade. Porém, o poeta não desarma e vê no rei a solução possível.
Neste sentido, Maria Vitalina Leal de Matos declara:
É verdade que a obra se apresenta como epopeia, inspirada pela euforia renascentista: a proeza dos portugueses realiza-se, os protagonistas alcançam os seus intentos. E o canto (como projeto que desde o início se apresenta, e como valor que se entrega ao Rei) também aí está, perfeito (X, est. 154-155). Nos dois planos ‑ o do conteúdo e o da poética ‑ Os Lusíadas parecem um poema de satisfação: neles encontramos heróis vitoriosos, inimigos derrotados, obras ditadas por valores superiores, lutas generosas, recompensa magnífica. Mas é verdade que a obra não esconde uma face de ceticismo, de amargura e de desconfiança.”.
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Em suma, o herói camoniano tem tanto de mítico como de verdadeiramente histórico. A vertente histórica situa-o na sua humanidade excecional, mas eventualmente fragmentada; a vertente mítica, que se lhe sobrepõe, torna-o vencedor de todos os obstáculos e gera a identidade inabalável dum povo que necessitava de tal herói e que o merece ter. Sendo um herói coletivo e aristocrático, fica, por um lado, despojado dos elementos que a degradação terrena impõe a este bicho homem e, por outro, capacitado para a superação – “Mais do que prometia (e permitia) a força humana” e alimenta a força e a memória coletivas. Um povo não vive sem mitos e sem heróis (sejam eles Afonso, Dinis, Pedro, João, Manuel, Sebastião, Marquês de Pombal, Salazar, Mário Soares ou Marcelo Rebelo de Sousa…).
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Cf Biblos (1999). Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. II. Lisboa/São Paulo: Verbo; Macedo, J. Oliveira (2002). Sob o Signo do Império. Porto: Ed. ASA; Matos, Maria Vitalina Leal (2014), Tópicos para a Leitura de Os Lusíadas. Coimbra: Ed. Almedina; Cidade, Hernâni (2001). Luís de Camões, o Épico. Queluz de Baixo: Editorial Presença; Raposo, Paulo: a mitificação do herói – http://paulo2raposo.blogspot.com/2012/11/mitificacao-do-heroi.html, ac. 2018, junho; Saraiva, A. J. e Lopes, Óscar (1978). História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora; Schmidt, Joel (2002). Dicionário de Mitologia Grega e Romana Lisboa, Edições 70
2018.06.22 – Louro de Carvalho

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