0. Nota
prévia
A
presente reflexão foi motivada pelo exercício n.º 7 do grupo I da Prova Escrita
de Português (cód. 639) do 12.º ano na 1.ª
fase de exames nacionais neste ano letivo de 2017/2018.
Afigura-se, a meu ver, tarefa
demasiado ingente pedir ao aluno que, num curto tempo de 120 minutos, “escreva
uma breve exposição na qual distinga o herói em Os Lusíadas, de Luís Vaz
de Camões, do herói em Mensagem, de Fernando Pessoa” – sem acesso ao
texto. Também é temerário, nestas circunstâncias, determinar que a exposição
deve incluir:
“Uma
introdução ao tema; um desenvolvimento no qual explicite, para cada uma das
obras, uma caraterística que permita distinguir o herói em Os Lusíadas do
herói em Mensagem, fundamentando as caraterísticas apresentadas em, pelo
menos, um exemplo significativo de cada uma das obras; e uma conclusão adequada
ao desenvolvimento do tema”.
Isto depois de ter o aluno
respondido a quatro questões sobre um poemeto de “Mensagem” e duas sobre um excerto de “Frei Luís de Sousa” e sabendo que há de responder a 7 questões com
base na leitura de um texto que virá a seguir e glosar um tema de interesse
para a atualidade.
É
certo que o IAVE,IP não é muito exigente. Basta, “para distinguir o herói em Os
Lusíadas do herói em Mensagem”,
que o examinando aborde “um tópico relativo a cada uma das obras”. E,
considerando que podem ser abordados outros igualmente relevantes, fornece os
seguintes exemplos de tópicos:
“Em Os Lusíadas, os heróis são
apresentados na sua dimensão humana e histórica, o que é patente, por exemplo,
nos protagonistas da viagem marítima até à Índia, nomeadamente Vasco da Gama e
os marinheiros, cujos feitos permitiram o desvendamento dos mares
desconhecidos; os heróis são os portugueses que, vencendo os seus medos e todos
os perigos, foram capazes de superar a própria condição humana e de ascender ao
plano dos deuses, como se comprova, por exemplo, quando são recompensados na
Ilha dos Amores. Em Mensagem, os heróis não se inscrevem num tempo nem
num espaço determinados, assumindo uma dimensão mítica/simbólica (caso de Dom
Sebastião, enquanto símbolo da ambição que poderá fazer renascer a glória da
pátria); os heróis situam-se na esfera da espiritualidade, como é o caso de Dom
Fernando, que age como instrumento da vontade divina/de uma vontade superior.”.
Além
disso,
“O texto deve ser bem estruturado e constituído por três partes
(introdução, desenvolvimento e conclusão) devidamente proporcionadas, assegurando,
“adequadamente, a progressão e o encadeamento das ideias”.
Não será
caso para quem passa por este exame ficar farto de heróis?
***
Assim,
vou fixar-me predominantemente no herói camoniano deixando para outra
oportunidade outros tipos de herói, embora tendo em a contextualização histórico-literária
***
1. O herói
na Antiguidade
O
que distingue o herói do homem comum está conexo com o universo do mito. A
própria definição de herói remete para a mitologia clássica, como afirma Joel
Schmidt no Dicionário de Mitologia Grega e Romana (Lisboa,
Edições 70, 2002):
“É chamada herói, na mitologia, toda a
personagem que exerceu, sobre os homens e sobre os acontecimentos, uma
determinada influência, que lutou com tanta bravura, ou realizou feitos de uma
tal temeridade, que se elevou acima dos seus semelhantes, os mortais, e que
pôde ousar aproximar-se dos deuses, merecendo assim depois da morte uma
veneração e um culto particulares”.
Anote-se
que, nos poemas hindus, a figura do herói era a incarnação de um deus. Assim,
tudo nele, desde o aspeto físico até à ação, pode ser pensado ou decorrer fora
de todos os moldes humanos, com proporções monstruosas desmedidas.
Já nos
poemas homéricos, o herói assume feição humana, sucedendo quase o mesmo com os
deuses, concebidos como realizações superiores de tipos humanos, sem limitações
que impedem em cada um destes o realizar-se como desejaria. E, mesmo quando
intervêm, os deuses fazem-no de forma discreta, levando a que a liberdade do
herói seja salvaguardada: pode discutir a vantagem ou desvantagem do conselho
do deus protetor, indo ao ponto de o contrariar.
Obviamente,
como personagem relevante pela excecionalidade com que enfrenta os mais
difíceis obstáculos, o herói está intimamente associado à epopeia, razão por
que terá sido a poesia épica, a Ilíada em particular, a primeira
a criar a ideia de herói. Assim, Aquiles, Ajax, Ulisses e muitos outros
entregam-se, nos combates da guerra de Tróia, a autênticos prodígios de
habilidade e coragem. Porém, já desde e por nascença, estes heróis são
diferentes dos homens. Na maior parte, são filhos dum deus ou duma deusa de
quem recebem, durante a sua existência, ajuda e proteção.
Foram, pois, os gregos quem primeiro definiu claramente o
protagonista conhecido como herói épico. Esses heróis de tragédia devem evocar
na e para a plateia um senso de heroísmo através de lendária e inspiradora
sabedoria. O herói tem de ser um homem cuja fortuna é trazida por suas próprias
caraterísticas admiradas. Os famosos poemas épicos gregos, A Odisseia e A Ilíada , contêm
esses heróis e ações que são imensos.
Em
Roma, a conceção de herói é um pouco diferente da grega. O herói virgiliano, o
mais proeminente, difere dos heróis homéricos, pois ele traduz os principais
valores romanos, pensando sempre na coletividade e no seu destino, não na
glória pessoal, na aretê grega. Ao
invés, ele possui, a “virtus” que
todo o “vir romanus” possui,
procurando ser um homem direito, honesto, reto e conveniente. A valentia e
coragem são qualidades de caráter, não de força. Temos, assim, na Eneida, um
herói que vai ao encontro do seu Destino, predito pela mãe Vénus, reiterado por
Júpiter, mas retardado por Juno. É um herói estoico que transparece pela
“pietas”. O “pius Aeneas” revela obediência irrestrita aos deuses e aos
superiores, mesmo que isso possa trazer-lhe infelicidade. Apresenta-se como
homem de missão e herói da paz, que apenas as circunstâncias levam à guerra.
Não realiza as próprias ambições, apenas cumpre o seu dever com justiça,
comiseração e fidelidade.
Assim,
os ideais augustanos estão representados pela composição do herói Eneias,
proveniente de Troia e destinado a fundar a Nova Troia que viria a ser Roma. Os
seus conceitos morais são amplamente identificados com os do “Princeps”: a “virtus”,
a “pietas” e a “humanitas”.
Este
herói troiano, filho de Anquises e de Afrodite, por um lado, descende da deusa
do amor e, por outro, tem a sua origem no próprio Zeus, como afirma Pierre
Grimal: “(...) Por parte do pai, filho de Cápis, descende da raça de Dárdano e,
por conseguinte, do próprio Zeus.”. Viveu nas montanhas até os 5 anos, sendo
confiado a Alcátoo, marido de sua irmã Hipodamia, para ser educado. Na guerra
de Troia, sobressai como um grande guerreiro, sendo somente inferior a Heitor.
Desde o nascimento as predições revelam que será rei e terá grande
descendência. Segundo Grimal, assim Afrodite profetiza a Anquises ao revelar-se-lhe,
após partilhar seu leito. Assim também Poseidon relembra a profecia de Afrodite
ao salvar o herói na Ilíada. Grimal (op. cit) sintetiza desse modo:
“Assim, desde os Poemas Homéricos,
Eneias surge como um herói protegido pelos deuses, aos quais obedece
respeitosamente, estando-lhe reservado um destino grandioso: nele repousa o
futuro da raça troiana. Todos estes elementos serão retomados por Virgílio na “Eneida” e interpretados no quadro da
lenda romana. Desse modo, após a queda de Troia, o herói parte com seu pai, seu
filho Iulo e sua esposa Creúsa para o monte Ida onde teria construído,
juntamente com os teucros dispersos, após o massacre dos gregos, uma nova
cidade onde reinou, cumprindo-se, assim, a profecia de Afrodite.”.
Uma
coisa é certa. Para os clássicos (literatura greco-latina) e, posteriormente, no
Renascimento (em que se tomou o legado greco-latino como
referência), o herói
acumulava os dois domínios, o épico e o mítico. Basta pensarmos no herói d´Os
Lusíadas (obra do Renascimento) para se dissiparem as dúvidas. O perfil deste
herói coletivo, evidenciando “todas as capacidades de afirmação do Homem ao
enfrentar a adversidade dos deuses e dos elementos” (Biblos, Enciclopédia das Literaturas
de Língua Portuguesa, vol. II, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1999), cujo comportamento se reparte
“por um tríptico de grandes valores, no seio dos quais se move expeditamente: é
a bravura militar destemida, a nobreza cavaleiresca e a excelsitude no Amor”.
***
2. O herói épico
Assim,
para se definir o herói épico importa não esquecer que este ganha vulto como
protagonista de narrativas heroicas, sobretudo épicas que se distinguem pelo
facto de nelas haver lugar especial para o desígnio religioso e profético (em
favor duma coletividade),
a fantasia, a inverosimilhança e o imprevisto, mas sucedendo que o terreno
discursivo onde impera o heroísmo obedece a regras próprias.
Não
obstante a centralidade exemplar do herói épico, a sua configuração foi-se
transformando consoante o enquadramento histórico-cultural, visto que é
personagem variavelmente construída e modulada segundo premissas ideológicas, literária
e historicamente motivada e, assim, sujeita à própria estrutura técnico-compositiva
do texto. Seja como for, há atributos inerentes ao conceito de herói que se
mantêm – as caraterísticas de qualificação e exceção pelas quais se destaca das
restantes figuras que povoam a história, definindo-se pela convergência de
determinadas qualidades e pelo caráter inédito e exemplar que elas possam
assumir perante o universo fictício ou real da história.
O herói épico tem, pois, de ser o homem cuja fortuna é
trazida pelas suas próprias caraterísticas admiradas. Os famosos poemas épicos
gregos, A Odisseia e A Ilíada , contêm esse tipo
de herói com as ações que os celebrizam. Mas também Rei Arthur, Beowulf,
Siegfried, Gilgamesh e Rama são exemplos de heróis épicos.
As caraterísticas do herói épico prendem-se com sete
parâmetros, que é conveniente explanar. Pela nobreza de nascimento, este herói é um rei, príncipe, semideus ou nobre de alguma capacidade; no atinente às capacidades sobre-humanas, é o guerreiro com o potencial de grandeza baseado em seus
relevantes atributos, como astúcia, bravura, humildade, sabedoria, virtude; no
concernente a viagens, o herói épico ganha fama por fazer viagens para lugares
exóticos por escolha ou chance, por
via de regra, para lutar contra o mal; como guerreiro incomparável, este herói
tem em geral a reputação de grande guerreiro, mesmo antes do começo da história;
quanto à legenda cultural, deve referir-se
que, antes de o herói épico poder ser
universalmente conhecido, ele deve primeiro ser uma lenda na sua cultura; no
capítulo da humildade, o herói
realiza grandes feitos por si mesmos e não pela glória, podendo ser punidos e
humilhados os heróis que se gabam ou exibem arrogância; e, no quadro das batalhas sobrenaturais, os oponentes e obstáculos que o herói enfrenta são
normalmente seres sobrenaturais, como Grendel, Poseidon ou um ciclope ou forças
da natureza grandemente personificadas.
Entretanto,
a figura do herói foi-se tornando mais humana, mais real, sem com isso perder a
grandiosidade, pois move-se num universo agridoce do perigo e aventura, mescla
de sedução e sofrimento, presente entre as inúmeras motivações que o
impulsionam para abraçar novos desafios e novas lutas. É um agente de fratura
nas vivências comuns a toda a sociedade, que prefere enveredar por
comportamentos e ações que inauguram novos trilhos que o desviam
progressivamente das outras personagens e dos valores que partilham. Este herói
não é necessariamente um guerreiro que enfrenta exércitos e que sai vencedor de
todas as lutas vividas. É, acima de tudo, aquele que sobressai pela
determinação e pela entrega a uma causa, esquecendo-se de si próprio em prol da
luta por um sonho. Torna-se mito de outro modo, vencendo a morte pela projeção
que ganhou como marca de referência para a sociedade, sendo assinalado como
exemplo a seguir.
Em
suma, enquanto o herói épico é sempre um herói mítico, essa realidade não se
mantém, obrigatoriamente, na configuração do herói mítico, pois este pode não
ser um herói épico. Por exemplo, n’Os Lusíadas o herói é,
sobretudo, épico (não entrando nesta classificação Inês de
Castro), ao passo
que em Mensagem surge o herói mítico por excelência, aquele
cuja vida foi a entrega a uma causa, a um sonho, algo que permanece no espírito
dos vindouros e lhes passa a mensagem de missão a cumprir (Dom
Sebastião, Padre António Vieira…).
A este
respeito diz Hernâni Cidade (in Luís de Camões, O Épico – 2001):
“Os Portugueses do Renascimento levantaram a
vida humana a maior altura, deram-lhe novas perspetivas e interesses, fizeram,
no campo da ação navegadora e guerreira, o que no campo da arte fizeram os
Italianos. Esses homens multímodos, navegantes e guerreiros, políticos e
poetas, geógrafos e cronistas, aventureiros e apóstolos, constituem um momento
insigne na história da personalidade.”.
***
3. O
herói em Os Lusíadas
Em Camões estão subjacentes dois tipos de herói: o
nato, a quem nada é exigido para ascender ao estatuto da imortalidade, pois
herda por nascimento os títulos que o libertarão da lei da morte – pelo que não
é verdadeiramente herói; e o
adquirido, mais concretamente aquele que tem de vencer os perigos e
contratempos para se elevar ao plano do semideus. Este é, para o poeta épico, o
verdadeiro herói, o ser excelente e excecional que alcança a sublimação. É,
segundo o nosso épico, o povo português cujo estrato valoroso, na Ilha dos
Amores, é conduzido pela mão dos deuses e levado por caminhos jamais pisados
por humanos, símbolo da glória e da eternidade. O Homem, “bicho da terra” tão
pequeno, conseguiu assim vencer o mar que o transcendia, graças à sua ousadia e
capacidade de sacrifício, superando-se e indo “ mais alto e mais longe”.
3.1. A
ação da obra e o herói épico
Como o
título indica, o herói desta epopeia é coletivo, os Lusíadas ou filhos de Luso, os portugueses. Nas estrofes (ou estâncias) iniciais do discurso de Júpiter no Concílio
dos deuses (I, est. 24-29), que abre
a parte narrativa, surge a orientação laudatória do autor. O pai dos deuses
afirma que desde Viriato e Sertório, o destino (fado) dos portugueses (forte gente de Luso) é realizar feitos tão gloriosos que façam esquecer
os dos impérios anteriores (assírio, persa, grego e romano).
O desenrolar
da sua história atesta-o, pois, além de ser marcada pelas sucessivas
e vitoriosas lutas contra mouros e castelhanos, mostra como um país tão
pequeno descobre novos mundos e impõe a sua lei no concerto das nações. E, no
final do poema, surge o episódio da Ilha dos Amores (IX, est.
19-92 – X,1-141), recompensa ficcional da gloriosa
caminhada portuguesa pelos tempos. E é confirmado o receio de Baco de
as suas façanhas de conquista serem ultrapassadas pelas dos portugueses.
Camões
dedicou a sua obra-prima ao rei Dom Sebastião de Portugal (I, est.
6-18; Xm 145-156). Os feitos
inéditos dos descobrimentos portugueses e a bem-sucedida chegada ao
“novo reino que tanto sublimaram” (I, est. 1) no Oriente, foram sem dúvida
os estímulos determinantes para a tarefa, desde há muito ambicionada, de
redigir o épico português.
Havia, pois
um ambiente de orgulho e ousadia no povo português. Navegadores
e capitães eram heróis recentes da pequena nação, homens capazes de
extraordinárias façanhas, como o “Castro forte»” (o vice-rei
Dom João de Castro), falecido
poucos anos antes de o poeta aportar na Índia.
E
principalmente o Gama, a quem se devia o descobrimento da nova rota
para o Oriente numa viagem difícil e com poucas probabilidades de êxito, e
que vencera inúmeras batalhas contra reinos muçulmanos em terras
hostis aos cristãos. Esta viagem épica foi, por isso, tomada como história
central da obra, à volta da qual vão sendo contados episódios da História
de Portugal, cujo enaltecimento é o escopo do poeta.
Vejamos mais
em detalhe.
3.1.1. Na
Introdução
Na esteira
da ideologia e da estética renascentistas, o poema camoniano coloca o homem
português no centro do mundo ao atribuir-lhe caraterísticas humanas e
sobre-humanas e ao utilizá-lo como símbolo da confiança nas capacidades
humanas.
O primeiro
momento da progressiva construção do herói em Os Lusíadas ocorre
na Proposição (I, est.
1-3), em que o vate sintetiza o conceito de herói e cujos
principais dados são os seguintes: a intenção do poeta, “cantando espalharei por tida a parte” (glorificar os feitos do povo português, através do seu canto épico); a imortalidade como traço
essencial do conceito de herói – “As armas
e os barões assinalados”; “Daqueles
reis que foram dilatando / A Fé, o Império…”; “E aqueles que por obras
valerosas / Se vão da lei da Morte libertando”; a assunção da dimensão coletiva, mas aristocrática, do herói da obra: “Que eu canto o peito ilustre lusitano” (não é a
arraia miúda como na historiografia de Fernão Lopes); e a apresentação dos quatro planos do poema, na
visão de Hernâni Cidade: (a Viagem – “As armas e os barões
assinalados / Que, da ocidental praia lusitana, (…) / Passaram ainda além da
Taprobana…”; a História de Portugal – “… reis que
foram dilatando / A Fé, o Império…”; a mitologia – “Cessem do sábio Grego
e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / (…) A quem Neptuno e Marte
obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta…”; e as considerações
do poeta – “Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me
ajudar o engenho e arte”.
Observa-se,
desde já, a intenção do épico de imortalizar os portugueses pela grandeza dos
seus feitos e por suplantarem os deuses antigos (“A quem Neptuno e Marte obedeceram”). Assim, inicia o processo de mitificação do herói,
elevando-o a um plano superior e estatuto de imortal, que suplanta os heróis da
Antiguidade, considerados modelos (Ulisses, Alexandre Magno, Trajano,
Eneias).
Na Invocação (I, est. 4-5) subsequente à Proposição,
Camões invoca as Tágides (ninfas do Tejo)
solicitando-lhes que o auxiliem na tarefa que tem em mente. Ora, esta
invocação é um outro dado que reforça o processo de
engrandecimento e divinização dos heróis navegadores, dado que o próprio poeta
considera que necessita dum estilo e dum talento superiores que sejam adequados
à grandiosidade da tarefa. Daí que o poeta selecione as ninfas do rio português,
divindades por ele criadas, a reforçar o caráter nacionalista do poema; adote o
canto épico e um “som alto e sublimado”, um “estilo grandíloco e corrente”, uma
“tuba canora e belicosa”, consentâneos com a grandiosidade do povo que se
propõe cantar; e visione uma dimensão universal para o seu poema (“Que se
espalhe e se cante no Universo”, já anunciada na Proposição – “Cantando
espalharei por toda a parte”).
A Dedicatória (I, est. 6-18) constitui outro momento de glorificação/imortalização
heroica, mas que, neste caso, se projeta no próprio poeta, pois, ao cantar a
imortalidade dos navegadores, ele se torna igualmente imortal (“Que não é
prémio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno”).
3.1.2. Na
viagem de Vasco da Gama e companheiros à Índia
A ação
central do poema – a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia –
corporiza a luta dos navegadores, capitaneados pelo Gama, contra as
adversidades que surgem no trajeto, bem como a recompensa dos seus feitos e
heroísmo. Essas adversidades, esses obstáculos, são de natureza diversa. Assim,
logo no episódio da partida das naus em Belém e
no do Velho do Restelo, se evidencia bem o clima emocional que
envolve a partida dos navegadores: dor, sofrimento, choro, mágoa, saudade,
insegurança, oposição familiar e da voz do bom senso (a voz do
Velho) a esta aventura.
Noutros
momentos da viagem, destacam-se os perigos terríveis que o mar desconhecido
oferece. É o caso das chamadas Cousas do Mar: após a passagem do
Equador, apesar de a rota ser já conhecida, os nautas deparam-se com diversos
fenómenos caraterísticos das águas quentes dos trópicos – o Fogo-de-Santelmo e
a Tromba Marítima –, a que se soma a Tempestade. Ante estes fenómenos, o poeta
valoriza o conhecimento e o saber experimentais, tecendo crítica implícita aos
que possuem do mundo apenas um conhecimento livresco, teórico (“Vejam
agora os sábios na escrita / Que segredos são estes de Natura!” – V, es. 22). Nestes episódios, a mitificação do herói reside na
questão da superação do medo e no desvendar dos segredos da natureza.
Outro
elemento considerar é a hostilidade dos povos indígenas, concretizada nomeadamente
nas tentativas frustradas das gentes de Quíloa e Moçambique para a destruição da
armada, a contrastar com o caloroso acolhimento do Rei de Melinde. De facto,
com a exceção de Melinde, até à chegada à Índia, os marinheiros tiveram de se
haver com as hostilidades dos chefes locais.
O simbólico episódio
do Adamastor é o mais importante e significativo na
mitificação do herói, já que os portugueses desvendam o seu esconderijo, até aí
nunca descoberto (mais uma vez, a ação lusa é associada ao conhecimento,
ao desvendar do desconhecido). Por outro
lado, temos a coragem e a determinação do Gama, que não se deixa intimidar pelo
gigante, nem mesmo face às suas profecias aterradoras, acabando por o derrotar
e reduzir à sua destruição, depois de ele confessar ao herói toda a sua vida de
amargura – facto que simboliza a vitória do humano sobre a divindade. De facto,
este episódio liga-se ao da Ilha dos Amores, pois foi a paixão do gigante por
Tétis que o levou ao castigo de Júpiter, transformando-o num rochedo,
constantemente rodeado pelo mar, o lar da sua amada. Ora, quando os portugueses
são recebidos como deuses na ilha divina, Tétis une-se a Vasco da Gama, a
significar que os portugueses superaram os deuses na coragem, na determinação e
também no amor.
E o episódio
da Ilha dos Amores constitui o auge do processo de
mitificação dos portugueses, construído ao longo do poema. Neste passo, o amor
surge como o prémio e forma de atingir a imortalidade. De facto, são as
próprias deusas que escolhem os navegadores para com eles se relacionarem,
legitimando-lhes, assim, o estatuto de heróis, alcandorando-os ao estatuto
divino e imortalizando-os. Por outro lado, a estruturação do episódio traduz a
construção progressiva de um ambiente que potencializa a divinização e
mitificação dos heróis: o aparecimento da Ilha, mágico e súbito (“Que Vénus
pelas ondas lha levava / […] Pera onde a forte armada se enxergava”); a descrição idílica e sensorial da Ilha, fiel ao “locus amoenus” clássico; os jogos de
sedução das ninfas, aconselhadas por Tétis, após o desembarque dos marinheiros;
a coroação e sagração dos heróis através do amor total com as ninfas; a
verificação de que o esforço e o sacrifício conduzem à fama e à glória; os
deleites que a Ilha oferece (“deleitosas honras”, “preeminências gloriosas”, “os
triunfos”, “a fronte coroada / De palma e louro”, “a glória e maravilha”).
Quer dizer
que, superados todos os obstáculos (Repare-se que, perto do final da
narração da viagem ao Rei de Melinde, o Gama relata, de forma emotiva e
comovente, o sofrimento e a dor dos marinheiros que morreram devido ao escorbuto, outro elemento que
contribui para a referida mitificação – o homem que dá a vida pela pátria), os navegadores recebem o merecido prémio, figurado
no episódio da Ilha, culminando, em glória e prazer, o que se tinha iniciado
com dor.
O
protagonista deste plano narrativo é o Gama, que assume, no final, o estatuto
de herói épico em representação do povo que integra. O seu heroísmo revela-se
na determinação com que parte de Belém, da “praia de
lágrimas”, não consentindo que o seu espírito e determinação sejam abalados
pelo sofrimento e pela dor que testemunha. Revela-se, igualmente, na vontade férrea de cumprir a missão de
que foi incumbido, embora consciente de que ela exigiria um esforço
sobre-humano (“mais do que prometia a força humana”).
Revela-se, por último, na capacidade demonstrada de superar as adversidades e
de vencer o medo, eminentemente simbolizado no
episódio do Adamastor – a síntese de todos os perigos (humanos,
cósmicos e míticos) que
espreitavam os nautas portugueses, só lhes valendo “Deus” e o “santo coro dos
Anjos”, invocados pelo capitão (cf V, est. 60) ou a
“Divina Guarda”, invocada em II, est. 31, e VI, est. 81.
3.1.3. O
plano da História de Portugal e o herói
Se a Viagem
é a ação central, o escopo do Vate é glorificar o povo português, o que faz
cantando a sua História a partir do começo geográfico na ponta ocidental do
mundo conhecido.
Assim, após
situar geograficamente Portugal na Península Ibérica e na Europa, o Gama narra cronologicamente
a História de Portugal, de Viriato ao rei Dom Manuel – narrativa em que
predominam os feitos guerreiros protagonizados por heróis indivíduos que, no
entanto, contribuem para o engrandecimento do verdadeiro herói do poema – o
povo português, herói coletivo e aristocrático.
O primeiro
protagonista e herói mitificado no plano da História é Viriato, figura
histórica e simultaneamente mítica de “Pastor” e “homem forte” que “os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá que
dome”, ganhando o estatuto de protorresponsável pela génese deste “Reino
ilustre”.
No canto III
(estâncias 35
a 40), temos Egas Moniz, o aio fiel de
Dom Afonso Henriques que, ao ver o amo cercado pelo inimigo, ofereceu a vida
como penhor da lealdade a prestar pelo soberano ao rei de Castela, seu primo.
Levantado o cerco e, como o monarca português tardou a cumprir a palavra dada
por Egas Moniz, vindo mesmo a negar fazê-lo, este decide oferecer a sua vida e
a dos familiares ao rei de Castela, cuja ira cede ante a dignidade e fidelidade
do nobre português (“Mas o Rei vendo a estranha lealdade, / Mais pode,
enfim, que a ira, a piedade.” – III, est. 40).
Ainda no
canto III (estâncias 42 a 54),
encontra-se o episódio da batalha de Ourique, onde é visível, novamente, o
estatuto de herói dos portugueses que vencem corajosamente o exército mouro,
muito superior em número ao português. Aqui, Afonso Henriques é eleito
rei-herói, porque se lhe reconhece o estatuto de portador duma missão divina,
outorgada por Cristo que lhe apareceu.
A batalha de
Aljubarrota (IV, est 28 a 45), em cujo
devir assume papel preponderante a figura de Nuno Álvares Pereira, o herói que
desafia os compatriotas a pegar em armas contra o invasor. A postura adotada e
o discurso proferido configuram em tudo o estatuto de herói: audácia /
coragem, liderança, determinação, energia, sabedoria e defesa de
um ideal, o da liberdade e da pátria. Por outro lado, este episódio faz ressaltar,
mais uma vez, a valentia e a coragem dos portugueses que, não obstante se
encontrarem em desvantagem numérica e menos apetrechados de armas, vencem os castelhanos,
garantindo a liberdade e a independência da pátria.
No que diz
respeito à figura real, a narração do Gama ao rei de Melinde engloba todos os
reis portugueses até à data, mas não lhes dá igual destaque. Da 1.ª dinastia,
destacam-se Dom Afonso Henriques, o primeiro monarca lusitano, e Dom Afonso IV,
em razão da luta contra os mouros, espelhada nos episódios bélicos das batalhas
de Ourique e do Salado, respetivamente. Já na 2.ª dinastia, ganham relevo a
figuras de Dom João I, pelo papel desempenhado na defesa da independência
nacional, retratado no episódio da batalha de Aljubarrota, e por ter iniciado a
luta contra os mouros fora do território português, e a de Dom Manuel, o
monarca que cumpriu o sonho do Oriente. Pelo exposto, se infere que a narração
privilegia os monarcas e os reinados marcados pelos feitos guerreiros, ocupando
outros soberanos um lugar secundário, exatamente por os seus reinados não terem
sido caraterizados pelos feitos guerreiros ou pelas conquistas.
3.1.4. O
plano das considerações do poeta
Também o
poeta épico se considera elemento integrante do “peito ilustre lusitano”, o tal
herói coletivo e aristocrático. Com efeito, sente-se dotado pelo engenho e a
arte de cantar aqueles que “se vão da lei da morte libertando”, abandonando
agora a “frauta rude” e tomando a “tuba canora e belicosa”. Por outro lado,
sente-se incumbido de uma missão transcendente, a de não deixar que o dinheiro,
a corrupção, o luxo, o poder ou a traição esvaziem a glória a que os ilustres
lusos alcandoraram a Pátria. Assim, se fala da condição humana, também
anatematiza os que ignoram o poder da cultura e erudição e desmerecem do ser
homem, do ser português, do ser cristão. Por isso, faz a apologia do
conhecimento colhido a partir da observação, da experiência e da inovação, queixa-se
de ver o Reino sepultado “No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera,
apagada e vil tristeza” (X, est. 145) e
aconselha o rei a tomar as rédeas do poder para reconhecer as ações dos heróis,
administrar na justiça e equidade e recompensar o trabalho feito, os
sofrimentos passados e a defesa da vida, liberdade e soberania (cf X, est. 146-156).
Quanto ao
mais, também ele fez o percurso do Gama e seus nautas, percorreu o Oriente numa
fase posterior da História e salvou a nado a epopeia que havia escrito. É o
herói pela epopeia, a qual faz que a multivalente gesta portuguesa exista na
memória coletiva.
***
4. A mitificação do herói
O mito é a
forma adotada pelos povos para a criação de heróis, que procuram deificar,
imortalizar, ganhando com eles um estatuto de exceção no mundo. E a mitificação
resulta da eminente excecionalidade do herói, da convicção de que foi
constituído numa missão providencial inerente ao feito heroico, sem a qual este
não seria realizável, e da necessidade que o povo tem desta figura heroica para
sustentáculo da sua identidade e subsistência como povo.
Note-se que,
como já foi apontado atrás, o conceito de herói, em Os Lusíadas,
não é apresentado de uma só vez, vai-se, antes, construindo ao longo do poema.
Logo na Proposição
(I, est. 1-3), Camões enuncia o herói da epopeia: “Que eu canto o
peito ilustre lusitano” (símbolo de forma e audácia, valor e heroicidade,
características portuguesas), ou seja,
o valoroso povo português, herói coletivo, mas aristocrático, que se vai
manifestando por heróis individuais – Vasco da Gama, o navegador que concentra
em si os esforços de 80 anos (1417-1497), atingindo
a Índia (no plano da
Viagem), os reis e os heróis, como Nuno
Álvares Pereira (no plano da História de Portugal). A figura do herói épico nacional carateriza-se,
pois, pelos feitos grandiosos, nunca antes realizados por humanos, pela
conquista da imortalidade, devido a esses feitos, pela vulnerabilidade dos
deuses em relação aos portugueses, num anúncio da ascensão dos homens à
condição divina, como acontecerá na Ilha dos Amores, e também pela superação
dos heróis das epopeias antigas: “Cesse
tudo o que a Musa antiga canta / Que outro valor mais alto se alevanta”.
Na
Dedicatória (I, est. 6-18), o poeta
dedica o poema a D. Sebastião, reafirmando a natureza histórica do seu canto;
com efeito, a epopeia camoniana não apresenta um carácter lendário como
acontecera nas epopeias antigas; à obra do poeta luso está subjacente um fundo
histórico – a História de Portugal – que irá adquirir a forma de uma narração
épica.
Diz J.
Oliveira Macedo (in Sob o Signo do Império, 2002):
“Camões pretende celebrar feitos gloriosos,
dignos de louvor, praticados por pessoas valorosas – navegadores, guerreiros,
reis, missionários (…) –, votadas à dilatação da Fé e do Império, e que
conseguiram ultrapassar todas as barreiras (espaciais e ideais) no mar e em
terra, merecendo por isso ser recordadas através dos tempos, ou seja,
imortalizadas – “se vão da lei da morte libertando” (I, est. 2).
Ao longo do
poema, Camões mitifica este herói e inicia a tarefa na Introdução e prossegue-a nas reflexões feitas no final do canto I,
quando se debruça sobre a fragilidade do ser humano, considerado “bicho da Terra tão pequeno” (est. 106), ante os perigos que o espreitam constantemente.
No Consílio dos Deuses no Olimpo (I, est.
19-41), o herói nacional é enaltecido,
sobretudo, através da oposição de Baco. Na realidade, o facto de um
deus temer que a sua glória seja destruída pelos humanos serve
inevitavelmente a construção do herói: “(...) O padre Baco ali não consentia / (...) conhecendo / Que
esquecerão seus feitos no Oriente / Se lá passar a Lusitana gente”.
Com efeito, para lá de todo o mérito dos nautas lusos, que é reconhecido por
outros deuses (Vénus,
Marte, Júpiter, que, no final da reunião, decide que os portugueses seriam
ajudados a alcançar "a terra
que buscavam"), é o
receio de Baco que engrandece a gente lusa, conferindo-lhe um estatuto que
culminará com a superação da própria condição humana realizada pelo "bicho
da terra tão pequeno”, frágil e impotente perante as forças cósmicas.
Ora, nos
cantos seguintes, a narração retrata um grupo de navegadores, comandado por
Vasco da Gama, que enfrenta os diversos perigos que lhe surgem no caminho e no
cumprimento da sua missão e que os supera com determinação, abnegação, coragem
e audácia.
O discurso do Velho do Restelo, embora
traduza a visão de uma parte dos portugueses, que se opunha à empresa dos
Descobrimentos, e a condenação da versão oficial deste empreendimento, pode
ler-se como mais um passo na construção do herói nacional. Na realidade, a
comparação do ser humano a Prometeu, que roubou o fogo (símbolo da
sabedoria) aos deuses e, por isso, foi
castigado, e a Ícaro, que voou tão alto que se aproximou do Sol, o que originou
a perda das suas asas de cera e a sua morte, constitui, mais uma vez, a negação
da pequenez do ser humano através do desejo de alcançar algo aparentemente
inatingível, e é o facto de assumir essa vontade que permitirá ao Homem renunciar
à passividade e encetar a busca que o levará à realização das suas capacidades
latentes. A vaidade e a cobiça situam-se num plano material e os feitos lusos
alcançarão uma dimensão purificada, absoluta, no seu encontro com o universo.
É, aliás, para a ambiguidade subjacente à forma de estar do Homem no mundo que
remete o verso final do discurso do velho: "Mísera sorte! Estranha
condição!", por enfatizar a dicotomia aqui (aliado à
passividade) / além
(que conduz à mísera sorte, apesar de funcionar como catalisador das pulsões
humanas que levam à práxis.
Já no Canto
V, com o “Fogo-de-Santelmo” e a “Tromba
marítima”, é a práxis, aliada à experiência da percepção dos fenómenos
naturais, que é enfatizada, quando o Gama, que narra ao rei de Melinde a viagem
da armada portuguesa de Lisboa a Melinde, afirma: “Contar-te (...) / Causas do mar, que os homens não emendem”',
“Os casos vi (...)”. “Vi, claramente visto (...)” e
“Eu o vi certamente (...)”. A repetição da forma
verbal “vi” redefine a conceção livresca de saber, ao propor um novo método de
captação da realidade, baseado na observação, e liga-se à visão renascentista
da génese do conhecimento científico. O herói é, então, progressivamente
construído ao longo da epopeia, não só pela coragem e valentia, mas porque
detém um novo saber, adquirido através das próprias vivências e, por esse
motivo, engrandece o espírito humano. É também este o sentido do episódio do
Adamastor, em que o gigante critica a ousadia do povo luso, por ter penetrado
os seus domínios (“Os vedados términos”), fazendo referência à ação constante dos portugueses,
que os levou a fazer “grandes causas”, pois “nunca repousa[m)”. E o discurso do Adamastor funciona
como um elogio supremo aos nautas que, de início, o ouvem, receosos, escutando
as suas acusações, para, progressivamente, questionarem a identidade do
monstro, o que revelará a sua vulnerabilidade face aos marinheiros lusos, pois,
simbolicamente, este representa o cabo das Tormentas, que os portugueses
conseguiram dobrar, pelo que as lágrimas são transferidas para o Adamastor, que
se afasta “cum medonho choro”, determinando a vitória dos humanos sobre
a natureza. A chegada à Índia, no Canto VII, é um pretexto para
as ilações do poeta sobre a missão de Portugal na História universal, ainda que
relacionadas com os ideais cristãos e políticos dominantes na época.
Os
portugueses são, assim, ousados e revelam toda a sua ousadia ao navegarem por
mares desconhecidos (“por mares nunca dantes navegados”) e, ao enfrentarem o símbolo desse desconhecido, o
Adamastor. E resulta de tal confronto a vitória sobre o medo, personificada nas
ameaças que são dirigidas ao Gama e que ele enfrenta, prosseguindo, depois, a
sua caminhada.
Significa
isto que a viagem que figura a espinha dorsal do poema é a da descoberta do
caminho marítimo para a Índia, representa muito mais do que uma viagem
geográfica. Na verdade, esta é a viagem do confronto do ser humano com os seus
limites, do desvendamento dos segredos escondidos, a o percurso pela rota do
conhecimento. Assim, ao superarem os obstáculos que surgem no seu percurso, os
navegadores portugueses superam-se a si mesmos, no sentido de que ultrapassam a
sua fragilidade, a sua condição de “bichos da Terra tão pequenos”. E, pela sua
coragem, determinação e ousadia, enfim, por terem cumprido a sua missão
heroica, os portugueses são premiados enquanto heróis. E o prémio que lhes é
atribuído é a Ilha dos Amores,
símbolo do sonho concretizado, onde o ser humano, alçado ao nível dos deuses,
alcança o Amor, a Beleza, a Felicidade e a Harmonia absolutas. Neste contexto,
assume especial significado a Máquina do Mundo, revelada a Vasco da Gama por
Tétis, a que acedem apenas os que, superando a sua própria condição, como
fizeram os nossos navegadores, que chegaram “além da Taprobana”, “mais do que
prometia a força humana”.
E é na Ilha dos Amores que se realiza
aquilo que constitui a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do
herói nacional, elevando os nautas, que, metonimicamente, representam o povo
português, à condição de deuses, pois Vénus “Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir ao Céu
sereno”. Os nautas unem-se às deusas amorosas, que os recompensam
após o seu percurso iniciático de superação de todas as provações, num espaço
onde encontram o amor, onde as deusas “As mãos alvas lhe davam como esposas” e “Divinos os
fizeram, sendo humanos”,
pois esta ilha “Outra cousa
não é que as deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada”. E,
seguindo a linha de pensamento de acordo com a qual concretiza o caráter épico
da obra, o poeta deixa um convite à continuidade da ação dos portugueses,
apontando-lhes o merecido prémio.
O mito da
Ilha dos Amores surge, assim, como algo que, de facto, não existe, mas que
funciona ao nível do inconsciente coletivo como a realização dos desejos
humanos associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é
real.
Finalmente,
no Canto X, a ascensão dos
heróis humanos na escala existencial é consumada, quando Tétis mostra
ao Gama a máquina do mundo, constituída por onze esferas; no centro,
encontrava-se a Terra, de acordo com a teoria de Ptolomeu, e os quatro
elementos.
Isto
significa que a mitificação do herói resulta aqui da interação do plano da
Mitologia com o plano da Viagem. A intriga dos deuses inicia-se com o primeiro Consílio dos Deuses no Olimpo e termina
com o episódio da Ilha dos Amores. No
Consílio, onde se discuta a abordagem dos deuses à viagem dos portugueses,
Vénus, com Marte, seu amante, a seu lado, defende que os navegadores, seus
protegidos, concretizem a viagem à Índia. No polo oposto, encontra-se Baco, a
tentar impedi-los de concretizar os seus objetivos, por sentir ameaçado o seu
domínio e fama no Oriente se ela se efetivar. Derrotada a sua posição no Consílio,
Baco provoca a animosidade, contra os portugueses, por parte dos povos da costa
oriental de África, leva as divindades marítimas a desencadearem uma tempestade
e induz os mouros de Calecute a conspirarem contra o Gama e companheiros. Por
seu turno, Vénus intervém, por sua vez, em auxílio dos navegadores, que
finalizam a viagem com pleno sucesso. Para os recompensar, na viagem de
regresso, auxiliada por Cupido, fá-los desembarcar na Ilha dos Amores, a Ínsua
Divina, onde os aguardam as ninfas, que os recebem como heróis, ascendendo
eles ao plano divino pela concretização dos seus amores com as deusas. Para
completar a recompensa, Vénus proporciona ao Gama a contemplação da já referida
Máquina do Mundo e, deste modo, a visão do cosmos.
Assim,
através do plano da mitologia, que culmina com a mencionada união dos
navegadores portugueses com as deusas do mar e a sua consequente divinização e
mitificação, Camões exprime um dos ideais centrais do Renascimento: a confiança
na capacidade humana para se opor e suplantar a tradição (os deuses e
os heróis da Antiguidade), para
superar, em suma, o obscurantismo e a prisão aos livros e para dominar o mundo
e a natureza.
Ao unirem-se
às ninfas, os marinheiros são recompensados com a imortalidade, simbolizada na
união com as ninfas e na atribuição das coroas de louros dos heróis
divinizados. Desta feita, os portugueses cumprem a missão para que foram
escolhidos, enquanto povo predestinado desde o milagre da batalha de Ourique, e
que é confirmada por Júpiter no Consílio dos Deuses. Por outro lado, o seu
heroísmo fica associado a valores como a coragem, as virtudes militares, a
experiência. Falta-lhes, contudo, o traço cultural, como Camões denuncia em
diferentes momentos. Daí que o conceito de heroísmo assuma, em Os
Lusíadas, a forma dum conceito abstrato, dum modelo teórico global:
perfeição no plano moral e no intelectual, bem como no domínio da ação, “a
imagem de um homem inteiro que impõe a sua vontade à natureza e que afirma a
liberdade em face do destino.” (in MATOS, Maria Vitalina Leal, Tópicos para a
Leitura de Os Lusíadas, 2014). No
entanto, este modelo não se concretiza na obra camoniana na vertente
intelectual e o aspeto moral, altamente presente na epopeia, decai com o
desgaste do tempo. Basta atentar nas críticas que o poeta faz para se chegar a
esta conclusão: à ignorância, à ingratidão, ao egoísmo, à cobiça, ao abuso de
poder, à exploração dos mais fracos, etc. Com efeito, estamos na presença de um
modelo teórico que Luís de Camões procura construir, mas que não se concretiza
na prática, pelo menos na sua totalidade. Porém, o poeta não desarma e vê no
rei a solução possível.
Neste
sentido, Maria Vitalina Leal de Matos declara:
“É verdade que a obra se apresenta como
epopeia, inspirada pela euforia renascentista: a proeza dos portugueses
realiza-se, os protagonistas alcançam os seus intentos. E o canto (como projeto
que desde o início se apresenta, e como valor que se entrega ao Rei) também aí
está, perfeito (X, est. 154-155). Nos dois planos ‑ o do conteúdo e o da
poética ‑ Os Lusíadas parecem um poema de satisfação: neles
encontramos heróis vitoriosos, inimigos derrotados, obras ditadas por valores
superiores, lutas generosas, recompensa magnífica. Mas é verdade que a obra não
esconde uma face de ceticismo, de amargura e de desconfiança.”.
***
Em suma, o
herói camoniano tem tanto de mítico como de verdadeiramente histórico. A
vertente histórica situa-o na sua humanidade excecional, mas eventualmente
fragmentada; a vertente mítica, que se lhe sobrepõe, torna-o vencedor de todos
os obstáculos e gera a identidade inabalável dum povo que necessitava de tal
herói e que o merece ter. Sendo um herói coletivo e aristocrático, fica, por um
lado, despojado dos elementos que a degradação terrena impõe a este bicho homem
e, por outro, capacitado para a superação – “Mais do que prometia (e permitia)
a força humana” e alimenta a força e a memória coletivas. Um povo não vive sem
mitos e sem heróis (sejam eles Afonso, Dinis, Pedro, João, Manuel,
Sebastião, Marquês de Pombal, Salazar, Mário Soares ou Marcelo Rebelo de Sousa…).
***
Cf Biblos (1999). Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa,
vol. II. Lisboa/São Paulo: Verbo; Macedo, J. Oliveira (2002). Sob
o Signo do Império. Porto: Ed. ASA;
Matos, Maria
Vitalina Leal (2014), Tópicos para a Leitura de Os Lusíadas.
Coimbra: Ed. Almedina; Cidade, Hernâni (2001). Luís
de Camões, o Épico. Queluz de
Baixo: Editorial Presença; Raposo, Paulo: a mitificação do
herói – http://paulo2raposo.blogspot.com/2012/11/mitificacao-do-heroi.html,
ac. 2018, junho; Saraiva, A. J. e Lopes, Óscar (1978). História
da Literatura Portuguesa. Porto:
Porto Editora; Schmidt, Joel (2002). Dicionário
de Mitologia Grega e Romana Lisboa, Edições 70
2018.06.22 –
Louro de Carvalho
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