Ontem, dia
8 de junho, sexta-feira subsequente à oitava do Corpus Christi, celebrou-se, apesar de não ser “dia santo”, a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus.
É uma das três solenidades em honra explícita de Cristo Senhor na Liturgia do
Tempo Comum da Igreja Católica.
É
verdade que esta celebração tem em si uma origem devocional com base nas
aparições de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, da ordem da Visitação de
Santa Maria, mostrando simbolicamente o ícone do “coração” ensanguentado e
atravessado pela lança, registando a multitude das ofensas da humanidade,
prometendo graças imensas e solicitando a conversão da mente e do coração, a
consagração na verdade e a reparação ou desagravo pelos pecados pessoais e
pelos do mundo inteiro. É esta a espiritualidade do oferecimento das obras do
dia, das primeiras sextas-feiras de cada mês, da comunhão reparadora, da Hora
Santa (de
adoração) e da
consagração pessoal ou coletiva ao Coração de Jesus.
Todavia,
a Solenidade tem profundas e largas raízes bíblicas que a Liturgia sintetiza no
Prefácio do Coração de Cristo, fonte de
salvação:
“Elevado sobre a cruz, com admirável amor, deu a sua vida por nós, e fez
brotar sangue e água do seu lado trespassado, donde nasceram os sacramentos da
Igreja, para que todos os homens, atraídos ao Coração aberto do Salvador,
pudessem beber com alegria nas fontes da salvação”.
***
Obviamente,
o coração vale, não na sua fisicidade, mas como símbolo de todo o amor, de toda
a misericórdia e de toda a ternura do Pai para com os homens no seu todo e no
ser de cada um.
Tanto
assim é que a antífona de entrada da missa toma os vv 11 e 19 do Salmo 33 (32) para assumir “os pensamentos do seu coração permanecem por
todas as gerações para libertar da morte as almas dos seus fiéis, para os
alimentar no tempo da fome”. De facto, o Senhor, na sua preocupação
libertadora e providente, pensa em todos em todo o momento e cuida de nós com
um amor mais forte do que a morte.
E o rito
da comunhão é ilustrado com uma de duas passagens do Evangelho de João: “Se alguém tem sede, venha a Mim e beba, diz
o Senhor. Se alguém acredita em Mim, do seu coração brotará uma fonte de água
viva” (Jo 7,37-38);
e “Um dos soldados abriu o seu lado com
uma lança e dele brotou sangue e água” (Jo 19,34).
Podemos
desde já anotar duas dimensões da Solenidade que espelham o mistério de Cristo.
A primeira tem a ver com o manancial de alimento que brota da cruz para nós: o
sangue e água que veiculam o nascimento da Igreja do lado aberto do Senhor, a
qual, pelos sacramentos, nomeadamente do Batismo, como início/abertura, e da
Eucaristia, como plenitude, leva os crentes ao coração de Cristo para beberem
das fontes da salvação e comerem do maná descido do Céu, não já no deserto, mas
no altar do sacrifício redentor. A segunda dimensão diz respeito à cooperação
que o homem é chamado a dar à realização do mistério enquanto plano de Deus.
Nem o Pai, de coração infinitamente misericordioso, terno e amoroso, quis fazer
tudo sozinho, nem o seu Cristo, o Filho tornado homem, absorveu em exclusivo a
obra da manifestação do amor, ternura e misericórdia do Pai. Repare-se que o
soldado, sem o saber, serviu de instrumento à visualidade do mistério do lado
aberto do Senhor. Por outro lado, o desafio do Mestre registado por João
constitui, por certo, um lancinante convite a que vamos beber das águas da
salvação, águas redentoras em Cristo, águas santificadoras no Espírito Santo,
mas constitui igualmente um apelo à aceitação da força apostólica da fé. Do coração
de quem crê em Cristo, brotará a fonte de água viva – obviamente não para o ar
ou para o desperdício, mas para a contaminação positiva da salvação pela via
testemunhal, apostólica e missionária.
***
Por seu
turno, a Liturgia da Palavra no Ano B leva-nos a meditar passagens da Profecia
de Oseias (Os 11,1.3-4.8c-9), da Carta aos Efésios (Ef
3,8-12.14-19) e do
Evangelho de João (Jo 19,31-37).
A
perícopa joanina, fazendo explícita referência ao “dia da Preparação” da Páscoa
judaica e ao Cordeiro pascal, manifesta o verdadeiro sentido da crucifixão de
Jesus para quem devemos olhar numa procura e aceitação da salvação que Ele nos
oferece. Esta procura leva-nos ao encontro com o dom; e a aceitação significa o
entrosamento da nossa vontade com a vontade do Pai. Com efeito, o dom redentor
do Deus feito homem tudo preparou para que a partir da Ceia tivéssemos o
alimento no seu Corpo e no seu Sangue, não de forma antropófaga, mas nas
espécies de pão e de vinho. Deixou-se exalçar no madeiro para, cumprindo a
vontade do Pai, nos oferecer, qual anho libertador, o perdão dos pecados; olhou
ao alto e viu que Deus não o abandonou, mas aceitou o seu sacrifício da disponibilidade
até à morte; abriu os braços para nos abraçar; abriu os olhos para nos ver;
inclinou o rosto para nos beijar; e providenciou para que o soldado lhe
rasgasse o lado para nos acolher e alimentar, nos dar o Espírito que nos ensina
e santifica, nos garantir a sua presença e apoio na missão de sair pelo mundo a
anunciar o perdão e nos apresentar à comunhão trinitária, pois com Ele, por Ele
e n’Ele somos filhos de Deus e irmãos na comunidade dos filhos, a Ecclesia dos redimidos, que nos leva ao
atrevimento de professar a mesma fé, aguardar na mesma esperança a vinda dos bens
prometidos e a viver e servir na mesma caridade.
Com toda
a razão, a teologia consolidada na Tradição vê no sangue e na água que jorraram
do lado do Cristo crucificado os sinais pascais do Batismo, o do acolhimento no
seio do mistério de Cristo, e da Eucaristia, o do ponto de convergência, cume,
consolidação e difusão da vida cristã para a salvação do mundo.
Mas o
Crucificado, exposto no Calvário, está ali a dar-nos a lição da 1.ª carta de
João (1Jo
4,10b) a dizer-nos:
“Deus amou-nos e enviou o seu Filho, como
vítima de expiação pelos nossos pecados”; e a reiterar o convite do
seguimento de Jesus e da humildade do seu coração, como refere Mateus (Mt
11, 29ab): “Tomai o meu jugo sobre vós, que sou manso e
humilde de coração”. Como se vê, o Mártir do Gólgota permite o enunciado do
amor do Pai e do Filho e lança o repto ao seguimento do Mestre e à aprendizagem
da lição da humildade na verdade.
Depois,
este dia da Preparação tona-se significativo por iniciar o retiro do Crucificado
nas sombras do túmulo que no primeiro dia da semana cristã se tornou o túmulo
vazio e desenhou a abertura para as aparições às mulheres e aos discípulos,
dando azo a que celebremos semanalmente a Páscoa da Ressurreição, vivendo e
testemunhando a alegria de viver o Evangelho em comunidade e na alegria do e
com o Ressuscitado.
***
O
apóstolo Paulo olha para o mistério da Cruz como sendo a fonte da obrigação de “anunciar
aos gentios a
insondável riqueza de Cristo” e de a “todos iluminar sobre a realização do
mistério escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas para que
agora, por meio da Igreja, seja dada a conhecer aos Principados e às
Autoridades no alto do Céu, a multiforme sabedoria de Deus, de acordo com o
desígnio eterno que Ele realizou em Cristo Jesus nosso Senhor”. Na verdade, em
Cristo, mediante a fé n’Ele, temos a liberdade e coragem de nos aproximarmos de
Deus com confiança”.
É efetivamente a abundância do amor de Deus que nos induz à confiança neste
mistério, a qual nos pode levar ao compromisso com o testemunho dele perante o
mundo e com a missão de o propor a todos e a todas com quem nos cruzarmos na
vida do quotidiano ou nas ações pelas grandes causas. Por isso, aprendendo a
lição do Gólgota e pedindo aos crentes que não desarmem perante as tribulações,
o apóstolo confessa:
“Dobro os joelhos diante do Pai, de quem
recebe o nome toda a paternidade, nos céus e na terra: Ele vos conceda, de
acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios de força, pelo seu Espírito,
para que se robusteça em vós o homem interior; que Cristo, pela fé, habite nos
vossos corações; que estejais enraizados e alicerçados no amor, para terdes a
capacidade de apreender, com todos os santos, a largura, o comprimento, a
altura e a profundidade, a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que
ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a
plenitude de Deus”.
De
facto, o incomparável e inimaginável amor de Cristo manifesta inequivocamente o
amor infinito do Pai, de que nos aproximamos com toda a confiança pela fé em
Cristo. Diante deste mistério, que não é outra coisa que o plano salvífico de
Deus, cujo anúncio foi confiado aos homens, nós devemos adorar e dar graças,
dobrando os joelhos, pois seríamos totalmente incapazes do anúncio se o Pai não
nos tivesse dado esta capacidade por meio do seu Espírito. E devemos
comprometer-nos ativamente com esta missão lançando mão dos meios que temos e
das oportunidades que nos forem oferecidas e que também devemos procurar.
***
Porém, a
fragilidade humana e as solicitações de vária ordem pregam as suas partidas. E
o homem e a comunidade humana falham. Por isso, a Profecia de Oseias reveste-se
de pertinente atualidade. Para expressar a imensa ternura de Deus, o profeta
recorre a imagens e modos de dizer de extraordinário realismo e audácia. Deus é
o pai e a mãe que chega a arrepender-se e a mudar de atitude para com os seus
filhos infiéis. Todavia, este recurso não resulta de suposta falta de
conhecimento da transcendência divina. Ao invés, Deus comporta-se assim, porque
é Deus, de eterna paciência, e não o homem, de contingente volubilidade. Por
outro lado, esta atitude do nosso Deus – pai e mãe – reveste-se da forma de
mestria pedagógica: como Ele age para connosco, também nós devemos agir assim
para com o nosso semelhante, aliás como disse Jesus ao doutor da Lei, depois de
relatar o episódio do samaritano: “Vai e
faz tu também do mesmo modo!” (Lc 10,37).
Recordemos
as passagens de Oseias atinentes a esta temática:
“Quando
Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egito o meu filho. Eu ensinava
Efraim a andar e trazia-o nos braços, mas não viram que era Eu quem deles
cuidava. Atraía-os com laços de humanidade e com vínculos de amor; tratava-os
como como quem pega num menino ao colo e inclinava-me para lhes dar de comer,
pois o meu coração estremece de compaixão. Eu sou Deus e não homem, o Santo no
meio de Ti e não venho para destruir.”.
Na verdade, a
atitude de Deus para com o seu povo e para com cada um de nós é a da mãe e do
pai: embora repreenda, trata-nos com desvelo e com todo do cuidado e ternura; e
confia em nós, mesmo que, por abuso da nossa liberdade, não mereçamos a confiança.
Ele não desiste de nós.
***
Apresenta-se
o Coração de Jesus atravessado pelo pecado da humanidade, pelo que solicita
conversão, consagração e reparação. É, pois, urgente aderir a este apelo do
Coração divino, mas não se pode cair numa espécie de relação comercial com o
Senhor: fazer o que Ele pede para que Ele cumpra o que prometeu, deixando de
fazer o que devemos de eventualmente Ele não cumprir. É certo que nós devemos
fazer o que Ele manda em nome do seu amor generoso e gratuito, da amizade que
Ele estabelece connosco, mas nunca podemos duvidar da sua capacidade e da sua
vontade de nos acompanhar com amor de pai e de mãe sem nunca pensar em desistir
de nós. Por outro lado, é conveniente situar a espiritualidade da festa no
mistério da comunhão dos santos que professamos no Símbolo dos Apóstolos (o bem que faz cada um beneficia todos
os membros da Igreja, levando a agradecer por isso, assim como o mal praticado
por cada um ensombra a Igreja e leva-a ao pedido de perdão). Com efeito, não é apenas o Coração
de Cristo-cabeça da Igreja que está trespassado ou desfigurado; também o Corpo
de Cristo-Igreja tem muitos achaques devido aos erros dos filhos da Igreja que
o espírito mundanal teima em introduzir, pelo que têm razão as vozes que
apregoam a necessidade da reforma contínua da Igreja, não apenas nas suas
estruturas e estratégias, mas também e sobretudo nas mentes e nos corações, nas
atitudes, nos comportamentos, nas ações, nas atividades. Além disso, são
inúmeras as manifestações da quebra histórica e atual da unidade e da sadia
convivência em comunidade eclesial; e, se alguns querem uma unidade a todo o
custo e a coincidir com a uniformidade, outros dispersam-se na diversidade
perdendo o sentido da unidade da fé e da caridade. E não podemos esquecer que,
embora a cruz tenha quatro extremidades, o crucificado é um só com muitas
chagas, é certo, mas com um perfil único para a Ressurreição que aconteceu
efetivamente em cristo e há de acontecer com cada um de nós. Por isso, à
semelhança do ser de Cristo e segundo o seu apelo lancinante “Ut unum sint” (Jo 17,22), é preciso escutar este apelo, regar a resposta com
a leitura, proclamação e meditação do Evangelho e sua aplicação à vida com
vista à edificação de pessoas sãs e comunidades vivas, com aquela unidade que
advém da profissão da mesma fé e da celebração dos mesmos mistérios, embora na
diversidade benfazeja dos múltiplos dons, carismas e ministérios.
Enfim, é
necessário e salutar fazer celebração da festa do amor gratuito e inefável de
Deus, grande como o mar sem margens e sem fundo, da festa da Igreja imersa
nesse amor em partilha no dinamismo da comunicação ou comunhão dos santos, da
festa de cada crente e dos crentes em sintonia, apesar das carências, das
debilidades e das insuficiências, pois elas serão superadas com Deus e em Deus.
E é urgente celebrar compromisso de cada um e da comunidade com a conversão,
consagração e reparação da parte de cada um e das comunidades eclesiais, bem
como com a reforma contínua da Igreja.
“Agradecei ao Senhor, bendizei o seu nome.
Anunciai
a todos os povos a grandeza das suas obras, proclamai a todos que o seu nome é
santo.”.
2018.06.09 –
Louro de Carvalho
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