sábado, 9 de junho de 2018

A festa do amor de Deus grande como o mar sem margens e sem fundo


Ontem, dia 8 de junho, sexta-feira subsequente à oitava do Corpus Christi, celebrou-se, apesar de não ser “dia santo”, a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. É uma das três solenidades em honra explícita de Cristo Senhor na Liturgia do Tempo Comum da Igreja Católica.
É verdade que esta celebração tem em si uma origem devocional com base nas aparições de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, da ordem da Visitação de Santa Maria, mostrando simbolicamente o ícone do “coração” ensanguentado e atravessado pela lança, registando a multitude das ofensas da humanidade, prometendo graças imensas e solicitando a conversão da mente e do coração, a consagração na verdade e a reparação ou desagravo pelos pecados pessoais e pelos do mundo inteiro. É esta a espiritualidade do oferecimento das obras do dia, das primeiras sextas-feiras de cada mês, da comunhão reparadora, da Hora Santa (de adoração) e da consagração pessoal ou coletiva ao Coração de Jesus.
Todavia, a Solenidade tem profundas e largas raízes bíblicas que a Liturgia sintetiza no Prefácio do Coração de Cristo, fonte de salvação:
Elevado sobre a cruz, com admirável amor, deu a sua vida por nós, e fez brotar sangue e água do seu lado trespassado, donde nasceram os sacramentos da Igreja, para que todos os homens, atraídos ao Coração aberto do Salvador, pudessem beber com alegria nas fontes da salvação”.   
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Obviamente, o coração vale, não na sua fisicidade, mas como símbolo de todo o amor, de toda a misericórdia e de toda a ternura do Pai para com os homens no seu todo e no ser de cada um.
Tanto assim é que a antífona de entrada da missa toma os vv 11 e 19 do Salmo 33 (32) para assumir “os pensamentos do seu coração permanecem por todas as gerações para libertar da morte as almas dos seus fiéis, para os alimentar no tempo da fome”. De facto, o Senhor, na sua preocupação libertadora e providente, pensa em todos em todo o momento e cuida de nós com um amor mais forte do que a morte.  
E o rito da comunhão é ilustrado com uma de duas passagens do Evangelho de João: “Se alguém tem sede, venha a Mim e beba, diz o Senhor. Se alguém acredita em Mim, do seu coração brotará uma fonte de água viva” (Jo 7,37-38); e “Um dos soldados abriu o seu lado com uma lança e dele brotou sangue e água” (Jo 19,34).
Podemos desde já anotar duas dimensões da Solenidade que espelham o mistério de Cristo. A primeira tem a ver com o manancial de alimento que brota da cruz para nós: o sangue e água que veiculam o nascimento da Igreja do lado aberto do Senhor, a qual, pelos sacramentos, nomeadamente do Batismo, como início/abertura, e da Eucaristia, como plenitude, leva os crentes ao coração de Cristo para beberem das fontes da salvação e comerem do maná descido do Céu, não já no deserto, mas no altar do sacrifício redentor. A segunda dimensão diz respeito à cooperação que o homem é chamado a dar à realização do mistério enquanto plano de Deus. Nem o Pai, de coração infinitamente misericordioso, terno e amoroso, quis fazer tudo sozinho, nem o seu Cristo, o Filho tornado homem, absorveu em exclusivo a obra da manifestação do amor, ternura e misericórdia do Pai. Repare-se que o soldado, sem o saber, serviu de instrumento à visualidade do mistério do lado aberto do Senhor. Por outro lado, o desafio do Mestre registado por João constitui, por certo, um lancinante convite a que vamos beber das águas da salvação, águas redentoras em Cristo, águas santificadoras no Espírito Santo, mas constitui igualmente um apelo à aceitação da força apostólica da fé. Do coração de quem crê em Cristo, brotará a fonte de água viva – obviamente não para o ar ou para o desperdício, mas para a contaminação positiva da salvação pela via testemunhal, apostólica e missionária.
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Por seu turno, a Liturgia da Palavra no Ano B leva-nos a meditar passagens da Profecia de Oseias (Os 11,1.3-4.8c-9), da Carta aos Efésios (Ef 3,8-12.14-19) e do Evangelho de João (Jo 19,31-37).
A perícopa joanina, fazendo explícita referência ao “dia da Preparação” da Páscoa judaica e ao Cordeiro pascal, manifesta o verdadeiro sentido da crucifixão de Jesus para quem devemos olhar numa procura e aceitação da salvação que Ele nos oferece. Esta procura leva-nos ao encontro com o dom; e a aceitação significa o entrosamento da nossa vontade com a vontade do Pai. Com efeito, o dom redentor do Deus feito homem tudo preparou para que a partir da Ceia tivéssemos o alimento no seu Corpo e no seu Sangue, não de forma antropófaga, mas nas espécies de pão e de vinho. Deixou-se exalçar no madeiro para, cumprindo a vontade do Pai, nos oferecer, qual anho libertador, o perdão dos pecados; olhou ao alto e viu que Deus não o abandonou, mas aceitou o seu sacrifício da disponibilidade até à morte; abriu os braços para nos abraçar; abriu os olhos para nos ver; inclinou o rosto para nos beijar; e providenciou para que o soldado lhe rasgasse o lado para nos acolher e alimentar, nos dar o Espírito que nos ensina e santifica, nos garantir a sua presença e apoio na missão de sair pelo mundo a anunciar o perdão e nos apresentar à comunhão trinitária, pois com Ele, por Ele e n’Ele somos filhos de Deus e irmãos na comunidade dos filhos, a Ecclesia dos redimidos, que nos leva ao atrevimento de professar a mesma fé, aguardar na mesma esperança a vinda dos bens prometidos e a viver e servir na mesma caridade.
Com toda a razão, a teologia consolidada na Tradição vê no sangue e na água que jorraram do lado do Cristo crucificado os sinais pascais do Batismo, o do acolhimento no seio do mistério de Cristo, e da Eucaristia, o do ponto de convergência, cume, consolidação e difusão da vida cristã para a salvação do mundo.
Mas o Crucificado, exposto no Calvário, está ali a dar-nos a lição da 1.ª carta de João (1Jo 4,10b) a dizer-nos: “Deus amou-nos e enviou o seu Filho, como vítima de expiação pelos nossos pecados”; e a reiterar o convite do seguimento de Jesus e da humildade do seu coração, como refere Mateus (Mt 11, 29ab): “Tomai o meu jugo sobre vós, que sou manso e humilde de coração”. Como se vê, o Mártir do Gólgota permite o enunciado do amor do Pai e do Filho e lança o repto ao seguimento do Mestre e à aprendizagem da lição da humildade na verdade.
Depois, este dia da Preparação tona-se significativo por iniciar o retiro do Crucificado nas sombras do túmulo que no primeiro dia da semana cristã se tornou o túmulo vazio e desenhou a abertura para as aparições às mulheres e aos discípulos, dando azo a que celebremos semanalmente a Páscoa da Ressurreição, vivendo e testemunhando a alegria de viver o Evangelho em comunidade e na alegria do e com o Ressuscitado.
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O apóstolo Paulo olha para o mistério da Cruz como sendo a fonte da obrigação de “anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo” e de a “todos iluminar sobre a realização do mistério escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas para que agora, por meio da Igreja, seja dada a conhecer aos Principados e às Autoridades no alto do Céu, a multiforme sabedoria de Deus, de acordo com o desígnio eterno que Ele realizou em Cristo Jesus nosso Senhor”. Na verdade, em Cristo, mediante a fé n’Ele, temos a liberdade e coragem de nos aproximarmos de Deus com confiança”. É efetivamente a abundância do amor de Deus que nos induz à confiança neste mistério, a qual nos pode levar ao compromisso com o testemunho dele perante o mundo e com a missão de o propor a todos e a todas com quem nos cruzarmos na vida do quotidiano ou nas ações pelas grandes causas. Por isso, aprendendo a lição do Gólgota e pedindo aos crentes que não desarmem perante as tribulações, o apóstolo confessa:
Dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda a paternidade, nos céus e na terra: Ele vos conceda, de acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios de força, pelo seu Espírito, para que se robusteça em vós o homem interior; que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações; que estejais enraizados e alicerçados no amor, para terdes a capacidade de apreender, com todos os santos, a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus”.       
De facto, o incomparável e inimaginável amor de Cristo manifesta inequivocamente o amor infinito do Pai, de que nos aproximamos com toda a confiança pela fé em Cristo. Diante deste mistério, que não é outra coisa que o plano salvífico de Deus, cujo anúncio foi confiado aos homens, nós devemos adorar e dar graças, dobrando os joelhos, pois seríamos totalmente incapazes do anúncio se o Pai não nos tivesse dado esta capacidade por meio do seu Espírito. E devemos comprometer-nos ativamente com esta missão lançando mão dos meios que temos e das oportunidades que nos forem oferecidas e que também devemos procurar.
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Porém, a fragilidade humana e as solicitações de vária ordem pregam as suas partidas. E o homem e a comunidade humana falham. Por isso, a Profecia de Oseias reveste-se de pertinente atualidade. Para expressar a imensa ternura de Deus, o profeta recorre a imagens e modos de dizer de extraordinário realismo e audácia. Deus é o pai e a mãe que chega a arrepender-se e a mudar de atitude para com os seus filhos infiéis. Todavia, este recurso não resulta de suposta falta de conhecimento da transcendência divina. Ao invés, Deus comporta-se assim, porque é Deus, de eterna paciência, e não o homem, de contingente volubilidade. Por outro lado, esta atitude do nosso Deus – pai e mãe – reveste-se da forma de mestria pedagógica: como Ele age para connosco, também nós devemos agir assim para com o nosso semelhante, aliás como disse Jesus ao doutor da Lei, depois de relatar o episódio do samaritano: “Vai e faz tu também do mesmo modo!” (Lc 10,37).
Recordemos as passagens de Oseias atinentes a esta temática:
Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egito o meu filho. Eu ensinava Efraim a andar e trazia-o nos braços, mas não viram que era Eu quem deles cuidava. Atraía-os com laços de humanidade e com vínculos de amor; tratava-os como como quem pega num menino ao colo e inclinava-me para lhes dar de comer, pois o meu coração estremece de compaixão. Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de Ti e não venho para destruir.”.
Na verdade, a atitude de Deus para com o seu povo e para com cada um de nós é a da mãe e do pai: embora repreenda, trata-nos com desvelo e com todo do cuidado e ternura; e confia em nós, mesmo que, por abuso da nossa liberdade, não mereçamos a confiança. Ele não desiste de nós.
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Apresenta-se o Coração de Jesus atravessado pelo pecado da humanidade, pelo que solicita conversão, consagração e reparação. É, pois, urgente aderir a este apelo do Coração divino, mas não se pode cair numa espécie de relação comercial com o Senhor: fazer o que Ele pede para que Ele cumpra o que prometeu, deixando de fazer o que devemos de eventualmente Ele não cumprir. É certo que nós devemos fazer o que Ele manda em nome do seu amor generoso e gratuito, da amizade que Ele estabelece connosco, mas nunca podemos duvidar da sua capacidade e da sua vontade de nos acompanhar com amor de pai e de mãe sem nunca pensar em desistir de nós. Por outro lado, é conveniente situar a espiritualidade da festa no mistério da comunhão dos santos que professamos no Símbolo dos Apóstolos (o bem que faz cada um beneficia todos os membros da Igreja, levando a agradecer por isso, assim como o mal praticado por cada um ensombra a Igreja e leva-a ao pedido de perdão). Com efeito, não é apenas o Coração de Cristo-cabeça da Igreja que está trespassado ou desfigurado; também o Corpo de Cristo-Igreja tem muitos achaques devido aos erros dos filhos da Igreja que o espírito mundanal teima em introduzir, pelo que têm razão as vozes que apregoam a necessidade da reforma contínua da Igreja, não apenas nas suas estruturas e estratégias, mas também e sobretudo nas mentes e nos corações, nas atitudes, nos comportamentos, nas ações, nas atividades. Além disso, são inúmeras as manifestações da quebra histórica e atual da unidade e da sadia convivência em comunidade eclesial; e, se alguns querem uma unidade a todo o custo e a coincidir com a uniformidade, outros dispersam-se na diversidade perdendo o sentido da unidade da fé e da caridade. E não podemos esquecer que, embora a cruz tenha quatro extremidades, o crucificado é um só com muitas chagas, é certo, mas com um perfil único para a Ressurreição que aconteceu efetivamente em cristo e há de acontecer com cada um de nós. Por isso, à semelhança do ser de Cristo e segundo o seu apelo lancinante “Ut unum sint” (Jo 17,22), é preciso escutar este apelo, regar a resposta com a leitura, proclamação e meditação do Evangelho e sua aplicação à vida com vista à edificação de pessoas sãs e comunidades vivas, com aquela unidade que advém da profissão da mesma fé e da celebração dos mesmos mistérios, embora na diversidade benfazeja dos múltiplos dons, carismas e ministérios.
Enfim, é necessário e salutar fazer celebração da festa do amor gratuito e inefável de Deus, grande como o mar sem margens e sem fundo, da festa da Igreja imersa nesse amor em partilha no dinamismo da comunicação ou comunhão dos santos, da festa de cada crente e dos crentes em sintonia, apesar das carências, das debilidades e das insuficiências, pois elas serão superadas com Deus e em Deus. E é urgente celebrar compromisso de cada um e da comunidade com a conversão, consagração e reparação da parte de cada um e das comunidades eclesiais, bem como com a reforma contínua da Igreja.
Agradecei ao Senhor, bendizei o seu nome.
Anunciai a todos os povos a grandeza das suas obras, proclamai a todos que o seu nome é santo.”.
2018.06.09 – Louro de Carvalho 

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