Foi uma vigorosa asserção de Ismael
Teixeira, sacerdote do patriarcado de Lisboa conhecido como “iron priest” (“padre de
ferro”) num dos painéis organizados no
âmbito da 14.ª Nacional da Pastoral da Cultura, que debateu no passado dia 2,
em Fátima, o tema “Desporto – Virtudes e
riscos”. E sustentou que a “Igreja não pode passar ao lado do desporto”,
“manancial de virtudes” fundamentais não só para a saúde, mas também para a ética
e para a espiritualidade.
Assumindo o
“desporto como lugar pastoral” e púlpito para anúncio dos valores vividos na
Igreja, o “iron priest” encara esta
atividade como espaço de ascese e sublimação, secundando o “equilíbrio como
homem e sacerdote”, sobretudo na ‘constância’ e na relação ‘em equipa’.
O sacerdote
que participará, a 24 de junho, na corrida “iron
man” que decorrerá na Marginal de Nice, em França, onde a 14 de julho de
2017 um camião avançou sobre a multidão, vitimando letalmente mais de 80
pessoas, enunciou algumas virtudes desportivas, entre as quais se destaca, o
“espírito de solidariedade”, o “fair play”, o “aprender a sacrificar os interesses
pessoais em favor do grupo” e a “camaradagem”. Todavia, escalpelizou o
“endeusamento do desporto”, que pode induzir a negligência de aspetos
“essenciais”, como o inerente ao risco da vida ao levar longe demais o esforço,
frisando que há muita “ambição” entre os “iron man”. Além disso, o Padre Ismael
contou entre os riscos do desporto a “viciação de resultados”, o consumo de
aditivos ilícitos, a violência, a negligência da família ou a dependência de
patrocínios, esta particularmente sentida na modalidade a que o clérigo se
dedica, o triatlo de longa distância.
Por seu
turno, o jornalista Ribeiro Cristóvão, que participou no mesmo painel,
referiu-se à “situação atual” portuguesa, tendo anotado que “está quase a
atingir as raias do degradante”, já que que “a sociedade evoluiu nesse
sentido”, sendo que “hoje vale tudo” no desporto, desde a “corrupção” à
“combinação de resultados”. A contrario,
evocou como exemplar desportivista o selecionador nacional de futebol, Fernando
Santos, que, para lá de um grande homem, “passou a ser um grande cristão” após
um Curso de Cristandade, empenhando-se em lutas desdenhadas pela sociedade,
designadamente a luta contra a legalização do aborto.
Jorge
Gabriel, apresentador de televisão também participante no painel, acentuou que o
desporto é reflexo de tudo o mais, pelo que os seus valores “são os que se
reclamam para a vida”.
***
O treinador de
râguebi Tomaz Morais, na conferência de abertura da predita 14.ª Jornada
Nacional, referiu que a crise do desporto português tem a ver com quem lidera”, sobretudo
ao estimular “comportamentos desviantes”, e sustentou que “o desporto precisa de outra visão cultural”, caso contrário “o lado mau da
formação” tomará “conta do lado bom”.
A pari, garantiu que “a educação cristã é
uma raiz de força” de que “não podemos desistir” e, a ilustrar esta asserção, lembrou que, na
sua infância “complicada”, “quando ia à missa ao domingo, ia com a bola”.
A sua intervenção
começou com uma viagem à infância e às dificuldades por que passou – “tinha 5
anos e já fazia croquetes e enrolava empadas” –, acentuando que os pais não
desistiram da educação cristã e recordando a sua atividade nos escuteiros e na
Igreja. Declarou que o jogo fora a razão da sua existência “enquanto miúdo” e
continua a ser “uma grande paixão”. A este propósito, lembrando que, “aos 7
anos, era federado como guarda-redes” e, aos 8, estava também federado como
jogador de râguebi”, frisou que “o adversário não é senão um amigo que joga do
outro lado” e salientou que “a mesma bola que cria amigos” é a “mesma que cria
o pior da vida, que são os inimigos”, acrescentando:
“Aquilo
de que mais me orgulho enquanto pessoa é ter amigos de várias proveniências (…)
e isso foi feito com a bola”.
O desportista
evocou o falecido Padre Ricardo Neves, que, numa peregrinação que fez com ele a
Fátima, onde conversaram, entre outros assuntos, sobre o que significa “chegar
primeiro”, para confidenciar:
“Aprendi
com o Padre Ricardo que ser primeiro é muito mais do que ser campeões; ser
primeiro é termos um coração aberto, um coração que não foge às
responsabilidades e um coração que sabe perder”.
O comentador
defendeu que “o desporto não é o estado mercantil a que chegou, mas “a essência
máxima da expressão dos valores humanos”. Assim, querendo torná-lo num
“conjunto de valores essenciais”, é preciso torná-lo “realmente importante” e “não
só mais uma coisa”.
Acentuando
que o desporto oferece “o bem mais escasso”, o da “tolerância”, declarou que
esta atividade, enquanto “conjugação de valores éticos”, “não permite a
arrogância, não permite que haja comportamentos desviantes, porque quem os tem
não tem lugar no desporto”, e assinalou que “quem não é humilde no desporto,
não consegue desfrutar dele”. E acrescentou:
“Se
o desporto é uma escola de virtudes, de desenvolvimento integral das pessoas,
se é um meio para e não um fim em si mesmo, temos de o tornar realmente
importante na escola, com a educação física, em casa, dando espaço aos jovens
para falarem do desporto”.
Assegurando
que o caráter formativo do desporto se expressa no saber vencer e na aceitação
da derrota, Tomaz Morais confessou:
“Ninguém
gosta de perder por mais de 100 pontos, como eu já perdi. Mas isto é que nos dá
a força para poder ganhar.”.
E, verificando
que “o desporto é pouco percebido em Portugal”, reconheceu que essa
incompreensão começa na família, quando, por exemplo, se castigam os jovens com
a proibição de treinar e jogar por causa de más notas na escola.
***
Dom João
Lavrador, Bispo de Angra e presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens
Culturais e Comunicações Sociais, lamentando “as evidências de imagens tremendamente
negativas” do desporto “e que apagam, ou pelo menos escondem, os verdadeiros
valores”, disse:
“Certamente, agora que estamos prestes a
iniciar o Mundial 2018 [de futebol], a oportunidade desta reflexão é de todos
reconhecida e necessária para nos consciencializarmos mais e melhor para uma
valorização do desporto em benefício da pessoa e da sociedade, atendendo aos
valores necessários para a promoção da dignidade humana e a do bem comum”.
E,
referindo-se ao sentido que a Pastoral da Cultura dá ao tema, frisou:
“Quando nos referimos ao desporto no âmbito
da pastoral da cultura, estamos certamente a reconhecer a sua importância na
edificação da pessoa e da sociedade atendendo ao desenvolvimento global do
homem e da sociedade orientada para o bem comum e alicerçada nos verdadeiros
valores que integram o Reino de Deus”.
O prelado
evocou a nota pastoral da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) intitulada “O
Desporto ao serviço da construção da pessoa e do encontro dos povos”, de
novembro de 2003, por ocasião do campeonato europeu de futebol que o país ia acolher
em junho e julho de 2004. A CEP, querendo contribuir para uma cultura que faça
do jogo (e do futebol
em especial) um instrumento
de realização do homem integral e de encontro de povos, pedia:
Que “os atletas continuem a dignificar o mundo do
desporto, oferecendo-lhe, não só o melhor das suas forças físicas, mas também,
e sobretudo, promovendo, com o seu comportamento dentro e fora do campo, os
valores da lealdade, da solidariedade, do comportamento correto, do respeito
pelos outros”.
Os Bispos apelavam
aos dirigentes para que fossem “os guardiães do verdadeiro sentido do jogo,
fazendo “uma gestão equilibrada das instituições e estruturas a que presidem”,
promovendo “a verdade desportiva”, fomentando “o respeito pelas instituições”,
atuando “com transparência”, procurando, como educadores, “inculcar uma cultura
dos valores elevados, como a lealdade, a amizade, a tolerância, e o respeito
pela verdade”, e rejeitando e denunciando “a mentira, os negócios nebulosos, a
agressividade, o desrespeito pelo adversário”. E concluíam:
“Que o desporto não seja um fator de
conflito ou de divisão nas famílias ou um obstáculo para o encontro, a partilha
e a solidariedade familiar; que o futebol não seja um fator de alienação, que
faça esquecer as responsabilidades que cada um tem para com Deus e para com os
outros”.
Também Dom
João Lavrador fez referência ao documento inédito do Vaticano publicado a 1 de
junho pp sobre a perspetiva cristã do desporto e a pessoa humana, sob o título
“Dar o melhor de si”, de que ressalta
o seguinte enunciado sobre a relação da Igreja com o desporto:
“Da forma como se escreveu a história do
desporto, chegou-se a pensar que a Igreja católica teve um ponto de vista
negativo sobre o desporto e o seu impacto, especialmente durante a Idade Média
e na primeira parte da Idade Moderna, devido às posturas negativas de alguns
católicos em relação ao corpo. Esta tendência negativa, todavia, baseia-se numa
má interpretação da postura católica em relação ao corpo durante esses períodos
e esquece a influência positiva das tradições educativas, teológicas e
espirituais católicas referentes ao desporto, valorizando-o a pleno título do
ponto de vista cultural.”.
Porém, o
prelado açoriano não deixou o crédito por mãos alheias ao citar doutrina do
Mistério eclesial. Assim, do discurso de João Paulo II aos homens do Desporto por
ocasião do Jubileu do ano 2000 (28 de outubro de 2000) retirou que o desporto é “um dos
fenómenos relevantes que, com uma linguagem que todos compreendem, pode comunicar
valores deveras profundos”, podendo ser “veículo de excelsos ideais humanos e espirituais, quando é praticado no
pleno respeito das regras”, mas que, se for manipulado para outros fins, pode
“defraudar a sua autêntica finalidade”
ao dar “espaço a outros interesses, que
ignoram a centralidade da pessoa humana”.
Ficam, deste
modo, patentes, não só as virtualidades do desporto, mas também as
possibilidades de ser utilizado para fins que não dizem respeito à dignidade
humana.
Aliás no mesmo
discurso o Bispo de Angra lê:
“As potencialidades do fenómeno desportivo
tornam-no um significativo instrumento para o desenvolvimento global da pessoa
e um fator mais útil do que nunca para a construção de uma sociedade mais à
medida do homem”.
E concretiza
sublinhando:
“O sentido de fraternidade, a magnanimidade,
a honestidade e o respeito pelo corpo, virtudes sem dúvida indispensáveis a todo
o bom atleta, contribuem para a edificação duma sociedade civil, onde o
antagonismo é substituído pela competição, onde ao confronto se prefere o
encontro e à contraposição rancorosa, o confronto leal. […] Aliás, assim, o
desporto não é um fim, mas um meio; pode tornar-se veículo de civilização e de
genuíno entretenimento, estimulando a pessoa a dar o melhor de si e a evitar o
que pode ser perigoso ou de grave prejuízo para si ou para o próximo.”.
E João Paulo
II denuncia:
“Infelizmente, não são poucos, e talvez
estejam a tornar-se mais evidentes, os sinais de um mal-estar que às vezes põem
em discussão os próprios valores éticos que fundamentam a prática desportiva.
[…] Ao lado de um desporto que ajuda a pessoa, há de facto outro que a
prejudica; ao lado de um desporto que exalta o corpo, há outro que o mortifica
e o atraiçoa; ao lado de um desporto que persegue ideais nobres, há outro que
só recorre ao lucro; ao lado de um desporto que une, há outro que divide.”.
E incita a
incorporar no desporto os valores espirituais para este corresponder a uma edificação
global do ser humano, pois, “enquanto favorece a robustez física e tempera o
caráter, o desporto nunca deve distrair dos deveres espirituais quem o pratica
e o aprecia”. Aliás, para o Pontífice polaco, “seria como correr”, segundo o
que escreve São Paulo, apenas “por uma coroa corruptível”, esquecendo que os
cristãos jamais podem perder de vista “a coroa imarcescível” (cf 1Cor 9,25), pelo que se reconhece que “a dimensão espiritual
deve ser cultivada e harmonizada com as várias atividades de entretenimento,
entre as quais se insere também o desporto”.
Depois, o
Bispo responsável pela Pastoral da Cultura mencionou a homilia da Celebração do
Jubileu dos Desportistas (29 de outubro de 2000), em que o Papa referia duas perspetivas relevantes do desporto: a que
reputa de importância notável, ao considerá-lo como sinal dos tempos; e a que
diz ser de grande responsabilidade dos desportistas do mundo para a construção
de uma nova civilização do amor, a sua abrangência global e a sua difusão
mundial.
Sobre a
primeira, sublinha:
“Hoje a prática desportiva adquire uma
importância notável, porque pode favorecer nos jovens a confirmação de valores
relevantes como a lealdade, a perseverança, a amizade, a partilha e a solidariedade.
[…] Precisamente por este motivo, nos últimos anos, ela desenvolveu-se cada vez
mais como um dos fenómenos típicos da modernidade, como um ‘sinal dos tempos’
capaz de interpretar as novas exigências e as renovadas expectativas da
humanidade. […] Aliás o desporto difundiu-se em todos os quadrantes do mundo,
ultrapassando diversidades de culturas e de nações.”.
Quanto à segunda,
refere que, “em virtude do perfil planetário adquirido por esta atividade, é
grande a responsabilidade dos desportistas do mundo”, pelo que “são chamados a
fazer do desporto uma ocasião de encontro e de diálogo, para lá de toda a
barreira de língua, raça e cultura”, pois “o desporto pode oferecer uma
contribuição válida para o entendimento pacífico entre os povos e colaborar
para a confirmação da nova civilização do amor no mundo”.
E o prelado de
Angra terminou com palavras do Concílio Vaticano II vincando que “a Igreja
lembra a todos que a cultura deve orientar-se para a perfeição integral da
pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade” (GS, 59), e acrescentando que “por isso, é necessário
cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a capacidade de admirar, de
intuir, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido
religioso, moral e social” (ib, 59).
***
É de
recordar que a 14.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura se centrou no
significado antropológico e nas atuais conexões socioculturais do Desporto –
poética e ética do corpo e do espírito, poderes e desvios da irradiação social
(negócio,
corrupção, alienação, etc.) –, tendo também
os conferencistas refletido sobre a possibilidade de atualização da perspetiva
cristã do ideal humanista de “mens sana
in corpore sano” (mente sã em
corpo são).
Foram
efetivamente a conquista da taça do Euro 2016 e a participação da seleção nacional
no Mundial 2018 que levaram o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,
ouvindo os Referentes diocesanos, a dedicar a Jornada deste ano à reflexão
sobre o desporto e a sua importância na cultura e na transmissão de valores ao
homem e à sociedade. Nestes termos o prelado da CEP na Pastoral da Cultura congratulou-se
por esta opção, uma vez que “ninguém ignora a capacidade do desporto para
mobilizar e para atrair a atenção das populações e como o desporto se torna veículo
de transmissão de ideais e valores”.
Cumpre,
pois, a cada pessoa e a cada grupo eclesial e cívico continuar a reflexão e
tirar as ilações pertinentes.
2018.06.06 –
Louro de Carvalho
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