Parece
ser esta a ilação mais pertinente da reflexão surgida na Liturgia da Palavra
conduzida pelo presidente da Celebração Eucarística na Igreja dos missionários
passionistas neste 11.º domingo do Tempo Comum, no Ano B.
Na
verdade, a leitura da perícopa do Evangelho de Marcos tomada para a celebração
do dia de hoje (Mc 4,26-34) faz-nos pensar, rezar e cantar o mistério do Reino
de Deus apresentado em parábolas para que o entendam, na sua revelação profunda
e eficaz, aqueles que imploram e aceitam a graça de serem discípulos e falarem
como discípulos (cf Is 50,4), com vista à irradiação apostólica – para o que se
requer o estatuto da pequenez, a postura da simplicidade, a atitude da
humildade e a disponibilidade para a sabedoria (cf Mt 11,25).
Repare-se
que aos Doze Jesus explicou tudo, porque “a vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus; mas, aos que estão de
fora, tudo se lhes propõe em parábolas, para que ao olhar, olhem e não
vejam, ao ouvir, oiçam e não compreendam, não vão eles
converter-se e ser perdoados” (Mc 4,11-12). Não é, por certo, verdade que Jesus quisesse tolher a
conversão de alguém, mas pretendia ensinar que a via da mesma é exigente,
requerendo tempo e maturação.
Vejamos que o mistério dinâmico do Reino é apreendido a partir do
processo seminal.
Em primeiro lugar, surge como parábola do Reino o episódio recorrente
do semeador que saiu a semear (vd Mc 1,1-20). Não há reino sem saída,
como não há reino sem semente e sem ela ser lançada à terra. O que exige morte
da semente (Se o grão de trigo não morrer…, fica só; mas, se
morrer, dará muito fruto – Jo 12,24). Depois, é preciso que a semente seja recebida em bom terreno, o dos “que ouvem a
palavra, a recebem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um” (Mc 4,20).
Assim, aquela primeira parábola de Marcos constitui o desafio a que se
valorize a semente, que é a Palavra de Deus, que se imite o grande semeador,
Deus Pai, o grande Agricultor e o grande Pastor – que vai ao encontro do
terreno, bom, mau ou assim-assim e lança a semente – e que, rejeitando sermos a
aridez e a planura do caminho, as pedras (da
tribulação ou da perseguição) que não deixam criar raízes no húmus do coração, os espinhos dos
cuidados e paixões ou ambições mundanais, sejamos a boa terra, a dos que ouvem
a palavra, a acolhem e a fazem frutificar, incluindo lançá-la à terra que está à
nossa volta ou mesmo longe, mas ao nosso alcance.
***
A
primeira das parábolas de hoje parece levar-nos ao papel que devemos
desempenhar como semeadores. Neste papel inerente à condição de discípulos e
apóstolos, devemos considerar que é preciso lançar a semente à terra, pois se
não semearmos, não teremos colheita. Temos mesmo de fazer tudo o que está ao
nosso alcance: semear, acompanhar e cuidar. Porém, não podemos deixar aninhar
em nós a veleidade ou a arrogância de nos comportarmos como donos e senhores da
semeadura, pois uns são os que semeiam e outros serão os que vêm fazer a
colheita. De facto, jesus adverte, como refere o Evangelho de João:
“Alegram-se ao mesmo tempo aquele que
semeia e o que ceifa. Nisto, porém, é verdadeiro o ditado: ‘um é o que semeia e
outro o que ceifa’. Porque Eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes;
outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga.” (Jo 4, 36-38).
Ora, quantos não prolongam os seus mandatos, mesmo em Igreja,
para se reverem na obra que idealizaram e acompanharam! Quanto de carreirismo e
de narcisismo anda campeando em Igreja e na sociedade que se diz por ela
inspirada!
Devemos,
assim, considerar que, “esteja o semeador a dormir ou desperto, de noite e de
dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como (Mc
4,27). Todavia, este
processo é evolutivo e bem ordenado: “A terra produz por si, primeiro o caule,
depois a espiga e, finalmente, o trigo perfeito na espiga. E, quando o fruto
amadurece, logo ele lhe mete a foice, porque chegou o tempo da ceifa.” (Mc
4,28-29).
Portanto,
façamos tudo o que podemos e devemos, mas sem stresse.
O texto
que insere a segunda parábola de hoje (Mc 4,30-32) remete-nos pedagogicamente para
o método socrático, o da descoberta através de perguntas: “Com que havemos de comparar o Reino de Deus? Ou com qual parábola o
representaremos?” (Mc 4,30). Na verdade, o Mestre não esconde o segredo da metodologia.
E Marcos é claro neste ponto:
“Com muitas parábolas como estas,
pregava-lhes a Palavra, conforme eram capazes de compreender. Não lhes falava
senão em parábolas; mas explicava tudo aos discípulos, em particular.” (Mc 4,33-34).
E o
símile com que se significa e representa o mistério oculto, mas em projeto, do
Reino é desconcertante: o Reino de Deus “é como um como um grão de mostarda que, ao
ser deitado à terra, é a mais pequena de todas as sementes que existem; mas,
uma vez semeado, cresce, transforma-se na maior de todas as plantas do horto e
estende tanto os ramos, que as aves do céu se podem abrigar à sua sombra”
(Mc
4,31-32).
Esta
passagem remete-nos também para a paciência necessária a quem espera. E
naturalmente o modelo de paciência (do verbo latino “patior”, sofro, espero) é Deus como nos refere Lucas no
cap. 15: O Pai teve o condão de, a pedido
do filho mais novo, repartir os bens pelos dois irmãos; deixou que o mais novo
se afastasse, esperou que ele voltasse e correu ao seu encontro para o abraçar (sem
o deixar pedir que o trate como um dos jornaleiros, porque na casa do Pai os
filho são sempre filhos)
e mandar fazer a festa do reencontro. E
teve a paciência de instar com o mais velho que estava renitente quanto à participação na festa.
Importa
cuidar do processo seminal, mas sem ambicionar que tudo aconteça depressa, nem
querer, durante o processo de crescimento, eliminar o joio para salvar o trigo e,
na colheita, joeirar o que é bom ou o que é mau (essa prerrogativa
judicial é de Deus),
nem ficar a desconfiar da pretensa insuficiência pelo facto de a semente ser
pequena, porque a Deus nada é impossível (cf Lc 1,37). Apesar de pequena, vai cumprir
o que diz a profecia messiânica de Ezequiel (Ez 17,22-24), tomada para 1.ª leitura desta
dominga.
Com
efeito, o Senhor, como excelso agricultor, diz – e há de cumprir – que tomará
do alto dos ramos do cedro uma haste e a plantará num
monte bastante alto em Israel. E ela deitará ramos, produzirá frutos e
tornar-se-á um cedro magnífico. Nele habitarão todas as espécies de aves e à
sombra dos seus ramos repousarão todas as espécies de voláteis. Assim, todas as
árvores dos campos saberão que Ele é o Senhor: quem humilha a árvore elevada e
eleva a árvore humilhada, quem faz secar a árvore verdejante e florescer a que
está seca.
Ora, Jesus bem conhece a Escritura e sabe que o messianismo
prometido se fez entender mais pelo lado da vertente imperial, em contraposição
aos impérios reinantes, do que pela vertente pastoril e agrícola, que também os
profetas exploraram devidamente. Por isso, os discípulos iam persistindo no não
entendimento da missão messiânica do Mestre como Ele a queria apresentar.
O importante era que fosse percetível o cuidado com que o
pastor pegava do cajado para orientar as ovelhas, que chama pelo seu nome,
porque as conhece e dá a vida por elas, e para as defender do lobos; e não para
bater nas ovelhas, o que faria o rei imperador se elas se desgarrassem ou
criassem inimizades entre si. Por outro lado, o rei-pastor não se limita a esperar
que a tresmalha volte ao redil para a acolher, mas vai à sua procura por
trancos e barrancos e carrega-a aos ombros. Depois, ao chegar ao pé das outras,
alegremente proclama a festa pelo encontro da perdida. O rei-juiz passar-lhe-ia
um corretivo, decretaria uma medida de coação e instaurava um inquérito com
vista ao julgamento.
O importante era que fosse percetível a atividade constante
do rei-agricultor que sai a lançar a semente à terra, espera que ela caia em
bom terreno, mas não desanima por muita dela cair no caminho, entre pedras ou
entre espinhos, pois, na sua paciência esperançosa, sabe que a semente caída em
bom terreno suplantará as demais e que hão de receber o influxo dos frutos
colhidos da boa terra. E, por outro lado, era desejável que os discípulos,
pelas parábolas, entendessem que tinham de fazer tudo o que está ao seu
alcance, mas com a paciência de quem espera o curso paulatino do processo
seminal (que dá vida consistente), sem ambições desmedidas de buscar a colheita prematura dos
frutos, sem a prosápia de fazer pouco da pequenez da semente, sabendo que no
cume do desenvolvimento seminal, n’Ele “habitarão todas as espécies de aves e à
sombra dos seus ramos repousarão todas as espécies de voláteis”. O rei-imperador
não teria paciência para esperar: descartaria o que é inútil, cortaria ou queimaria
o que está a mais ou o que alegadamente não cresce a tempo.
O que importa é que os discípulos percebam a disponibilidade
do Senhor – e o acompanhem nesta disponibilidade – de sofrer o martírio do
Gólgota, no cumprimento da profecia de Isaías sobre o Servo sofrente (Is 52,13 – 53,12), para que todos tenham vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10). O rei-imperador mobilizaria legiões para se defender e
impor o seu império infligindo pesadas derrotas aos inimigos. E este
rei-imperador espiritual mobilizaria legiões de anjos para o efeito. Mas este
rei-agricultor e/ou rei-pastor mostra o seu poder esperando, cuidando, perdoando
e mobilizando pela misericórdia e para a misericórdia.
***
Enfim, se tivermos e conta este dinamismo discreto, mas
eficaz, do processo seminal do Reino, podemos tranquilizar-nos com este
enunciado paulino, tomado para 2.ª leitura da liturgia desta dominga, aplicável
a todos os que se sentem no mundo, mas não sendo do mundo nem do seu espírito, pompas
e seduções – e do qual não fogem, porque têm para com ele um compromisso em
nome de Deus:
“Estamos
sempre confiantes e conscientes de que, permanecendo neste corpo, vivemos
exilados, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão... Cheios
dessa confiança, preferimos exilar-nos do corpo, para irmos morar junto do
Senhor. Por isso também, quer permaneçamos na nossa morada, quer a deixemos,
esforçamo-nos por Lhe agradar. Com efeito, todos havemos de comparecer perante
o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba conforme aquilo que fez de
bem ou de mal, enquanto estava no corpo.” (2Cor 5,6-10).
Efetivamente,
enquanto tivermos a missão de andar em saída por este mundo de Cristo (indo ou fazendo outros irem aos lugares
mais recônditos ou escusos) ou de acolher os demais como que num hospital de campanha em tempo e
lugar de guerra, temos de tentar perceber o que o mistério do Reino constitui
de esfuziante para nós e do que nos exige como postura e tarefa no nosso
desenvolvimento pessoal e na solidariedade para com as pessoas, as sociedades e
a criação.
2018.06.17 – Louro de carvalho
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