domingo, 17 de junho de 2018

Fazer tudo o que está ao nosso alcance, mas sem stresse


Parece ser esta a ilação mais pertinente da reflexão surgida na Liturgia da Palavra conduzida pelo presidente da Celebração Eucarística na Igreja dos missionários passionistas neste 11.º domingo do Tempo Comum, no Ano B.
Na verdade, a leitura da perícopa do Evangelho de Marcos tomada para a celebração do dia de hoje (Mc 4,26-34) faz-nos pensar, rezar e cantar o mistério do Reino de Deus apresentado em parábolas para que o entendam, na sua revelação profunda e eficaz, aqueles que imploram e aceitam a graça de serem discípulos e falarem como discípulos (cf Is 50,4), com vista à irradiação apostólica – para o que se requer o estatuto da pequenez, a postura da simplicidade, a atitude da humildade e a disponibilidade para a sabedoria (cf Mt 11,25).
Repare-se que aos Doze Jesus explicou tudo, porque “a vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus; mas, aos que estão de fora, tudo se lhes propõe em parábolas, para que ao olhar, olhem e não vejam, ao ouvir, oiçam e não compreendam, não vão eles converter-se e ser perdoados” (Mc 4,11-12). Não é, por certo, verdade que Jesus quisesse tolher a conversão de alguém, mas pretendia ensinar que a via da mesma é exigente, requerendo tempo e maturação.
Vejamos que o mistério dinâmico do Reino é apreendido a partir do processo seminal.
Em primeiro lugar, surge como parábola do Reino o episódio recorrente do semeador que saiu a semear (vd Mc 1,1-20). Não há reino sem saída, como não há reino sem semente e sem ela ser lançada à terra. O que exige morte da semente (Se o grão de trigo não morrer…, fica só; mas, se morrer, dará muito fruto – Jo 12,24). Depois, é preciso que a semente seja recebida em bom terreno, o dos “que ouvem a palavra, a recebem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um” (Mc 4,20).
Assim, aquela primeira parábola de Marcos constitui o desafio a que se valorize a semente, que é a Palavra de Deus, que se imite o grande semeador, Deus Pai, o grande Agricultor e o grande Pastor – que vai ao encontro do terreno, bom, mau ou assim-assim e lança a semente – e que, rejeitando sermos a aridez e a planura do caminho, as pedras (da tribulação ou da perseguição) que não deixam criar raízes no húmus do coração, os espinhos dos cuidados e paixões ou ambições mundanais, sejamos a boa terra, a dos que ouvem a palavra, a acolhem e a fazem frutificar, incluindo lançá-la à terra que está à nossa volta ou mesmo longe, mas ao nosso alcance.
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A primeira das parábolas de hoje parece levar-nos ao papel que devemos desempenhar como semeadores. Neste papel inerente à condição de discípulos e apóstolos, devemos considerar que é preciso lançar a semente à terra, pois se não semearmos, não teremos colheita. Temos mesmo de fazer tudo o que está ao nosso alcance: semear, acompanhar e cuidar. Porém, não podemos deixar aninhar em nós a veleidade ou a arrogância de nos comportarmos como donos e senhores da semeadura, pois uns são os que semeiam e outros serão os que vêm fazer a colheita. De facto, jesus adverte, como refere o Evangelho de João:
Alegram-se ao mesmo tempo aquele que semeia e o que ceifa. Nisto, porém, é verdadeiro o ditado: ‘um é o que semeia e outro o que ceifa’. Porque Eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga.” (Jo 4, 36-38).
Ora, quantos não prolongam os seus mandatos, mesmo em Igreja, para se reverem na obra que idealizaram e acompanharam! Quanto de carreirismo e de narcisismo anda campeando em Igreja e na sociedade que se diz por ela inspirada!
Devemos, assim, considerar que, “esteja o semeador a dormir ou desperto, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como (Mc 4,27). Todavia, este processo é evolutivo e bem ordenado: “A terra produz por si, primeiro o caule, depois a espiga e, finalmente, o trigo perfeito na espiga. E, quando o fruto amadurece, logo ele lhe mete a foice, porque chegou o tempo da ceifa.” (Mc 4,28-29).
Portanto, façamos tudo o que podemos e devemos, mas sem stresse.
O texto que insere a segunda parábola de hoje (Mc 4,30-32) remete-nos pedagogicamente para o método socrático, o da descoberta através de perguntas: “Com que havemos de comparar o Reino de Deus? Ou com qual parábola o representaremos?” (Mc 4,30). Na verdade, o Mestre não esconde o segredo da metodologia. E Marcos é claro neste ponto:
Com muitas parábolas como estas, pregava-lhes a Palavra, conforme eram capazes de compreender. Não lhes falava senão em parábolas; mas explicava tudo aos discípulos, em particular.” (Mc 4,33-34).
E o símile com que se significa e representa o mistério oculto, mas em projeto, do Reino é desconcertante: o Reino de Deus “é como um como um grão de mostarda que, ao ser deitado à terra, é a mais pequena de todas as sementes que existem; mas, uma vez semeado, cresce, transforma-se na maior de todas as plantas do horto e estende tanto os ramos, que as aves do céu se podem abrigar à sua sombra” (Mc 4,31-32).
Esta passagem remete-nos também para a paciência necessária a quem espera. E naturalmente o modelo de paciência (do verbo latino “patior”, sofro, espero) é Deus como nos refere Lucas no cap. 15: O Pai teve o condão de, a pedido do filho mais novo, repartir os bens pelos dois irmãos; deixou que o mais novo se afastasse, esperou que ele voltasse e correu ao seu encontro para o abraçar (sem o deixar pedir que o trate como um dos jornaleiros, porque na casa do Pai os filho são sempre filhos) e mandar fazer a festa do reencontro. E teve a paciência de instar com o mais velho que estava renitente quanto à participação na festa.
Importa cuidar do processo seminal, mas sem ambicionar que tudo aconteça depressa, nem querer, durante o processo de crescimento, eliminar o joio para salvar o trigo e, na colheita, joeirar o que é bom ou o que é mau (essa prerrogativa judicial é de Deus), nem ficar a desconfiar da pretensa insuficiência pelo facto de a semente ser pequena, porque a Deus nada é impossível (cf Lc 1,37). Apesar de pequena, vai cumprir o que diz a profecia messiânica de Ezequiel (Ez 17,22-24), tomada para 1.ª leitura desta dominga.
Com efeito, o Senhor, como excelso agricultor, diz – e há de cumprir – que tomará do alto dos ramos do cedro uma haste e a plantará num monte bastante alto em Israel. E ela deitará ramos, produzirá frutos e tornar-se-á um cedro magnífico. Nele habitarão todas as espécies de aves e à sombra dos seus ramos repousarão todas as espécies de voláteis. Assim, todas as árvores dos campos saberão que Ele é o Senhor: quem humilha a árvore elevada e eleva a árvore humilhada, quem faz secar a árvore verdejante e florescer a que está seca.
Ora, Jesus bem conhece a Escritura e sabe que o messianismo prometido se fez entender mais pelo lado da vertente imperial, em contraposição aos impérios reinantes, do que pela vertente pastoril e agrícola, que também os profetas exploraram devidamente. Por isso, os discípulos iam persistindo no não entendimento da missão messiânica do Mestre como Ele a queria apresentar.
O importante era que fosse percetível o cuidado com que o pastor pegava do cajado para orientar as ovelhas, que chama pelo seu nome, porque as conhece e dá a vida por elas, e para as defender do lobos; e não para bater nas ovelhas, o que faria o rei imperador se elas se desgarrassem ou criassem inimizades entre si. Por outro lado, o rei-pastor não se limita a esperar que a tresmalha volte ao redil para a acolher, mas vai à sua procura por trancos e barrancos e carrega-a aos ombros. Depois, ao chegar ao pé das outras, alegremente proclama a festa pelo encontro da perdida. O rei-juiz passar-lhe-ia um corretivo, decretaria uma medida de coação e instaurava um inquérito com vista ao julgamento.
O importante era que fosse percetível a atividade constante do rei-agricultor que sai a lançar a semente à terra, espera que ela caia em bom terreno, mas não desanima por muita dela cair no caminho, entre pedras ou entre espinhos, pois, na sua paciência esperançosa, sabe que a semente caída em bom terreno suplantará as demais e que hão de receber o influxo dos frutos colhidos da boa terra. E, por outro lado, era desejável que os discípulos, pelas parábolas, entendessem que tinham de fazer tudo o que está ao seu alcance, mas com a paciência de quem espera o curso paulatino do processo seminal (que dá vida consistente), sem ambições desmedidas de buscar a colheita prematura dos frutos, sem a prosápia de fazer pouco da pequenez da semente, sabendo que no cume do desenvolvimento seminal, n’Ele “habitarão todas as espécies de aves e à sombra dos seus ramos repousarão todas as espécies de voláteis”. O rei-imperador não teria paciência para esperar: descartaria o que é inútil, cortaria ou queimaria o que está a mais ou o que alegadamente não cresce a tempo.
O que importa é que os discípulos percebam a disponibilidade do Senhor – e o acompanhem nesta disponibilidade – de sofrer o martírio do Gólgota, no cumprimento da profecia de Isaías sobre o Servo sofrente (Is 52,13 – 53,12), para que todos tenham vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10). O rei-imperador mobilizaria legiões para se defender e impor o seu império infligindo pesadas derrotas aos inimigos. E este rei-imperador espiritual mobilizaria legiões de anjos para o efeito. Mas este rei-agricultor e/ou rei-pastor mostra o seu poder esperando, cuidando, perdoando e mobilizando pela misericórdia e para a misericórdia.
***
Enfim, se tivermos e conta este dinamismo discreto, mas eficaz, do processo seminal do Reino, podemos tranquilizar-nos com este enunciado paulino, tomado para 2.ª leitura da liturgia desta dominga, aplicável a todos os que se sentem no mundo, mas não sendo do mundo nem do seu espírito, pompas e seduções – e do qual não fogem, porque têm para com ele um compromisso em nome de Deus:
Estamos sempre confiantes e conscientes de que, permanecendo neste corpo, vivemos exilados, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão... Cheios dessa confiança, preferimos exilar-nos do corpo, para irmos morar junto do Senhor. Por isso também, quer permaneçamos na nossa morada, quer a deixemos, esforçamo-nos por Lhe agradar. Com efeito, todos havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba conforme aquilo que fez de bem ou de mal, enquanto estava no corpo.” (2Cor 5,6-10).
Efetivamente, enquanto tivermos a missão de andar em saída por este mundo de Cristo (indo ou fazendo outros irem aos lugares mais recônditos ou escusos) ou de acolher os demais como que num hospital de campanha em tempo e lugar de guerra, temos de tentar perceber o que o mistério do Reino constitui de esfuziante para nós e do que nos exige como postura e tarefa no nosso desenvolvimento pessoal e na solidariedade para com as pessoas, as sociedades e a criação.
2018.06.17 – Louro de carvalho  

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