Muito divulgada e repetida, musicada por vários
compositores sobre texto em várias línguas e inserida na versão portuguesa da
Liturgia da Horas, como um dos hinos da Hora Intermédia de sábado no Tempo
Comum, é a chamada Oração de São Francisco de Assis.
Configura um conjunto de petições dirigidas ao Senhor no sentido de fazer
do orante um edificador, paladino e instrumento pessoal da paz que Jesus nos
deixou como dádiva e como tarefa de cada dia.
Por outro lado, trata-se de um pequeno que enumera ideias fundamentais que
servem muito bem o contributo pessoal para o bem da paz. É um belo e multíplice
propósito de vida arvorado em estilo de paz, um padrão de educação para a paz.
Eis o texto numa das versões vernáculas
autorizadas:
***
Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde há ódio, que eu leve o amor.
Onde há ofensa, que eu leve o perdão.
Onde há discórdia, que eu leve a união.
Onde há dúvida, que eu leve a fé.
Onde há erro, que eu leve a verdade.
Onde há desespero, que eu leve a esperança.
Onde há tristeza, que eu leve a alegria.
Onde trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
***
***
Para uma análise do texto
Como facilmente se pode ver, os propósitos
atitudinais de paz são enunciados em torno da petição inicial de feição
globalizante, tendo à cabeça o vocativo “Senhor”
(Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa paz).
Segue-se um rol de oito petições em desfile paralelístico, anafórico e em
versos estruturalmente antitéticos: cada verso é iniciado pelo advérbio
relativo “onde” a marcar os lugares em que há situações que postulam a nossa
intervenção pessoal.
Começando pela situação pior, que é a de ódio,
visitamos as situações de ofensa, discórdia (muito má do
ângulo grupal e comunitário), dúvida (má
quando conveniente), erro (mau quando
crasso), desespero (péssimo do ponto de
vista pessoal), tristeza (dramática quando
mórbida) e trevas (origem e fim do mal e
da ignorância). A estas situações, mordentes e mórbidas, o orante
quer acorrer antiteticamente com os respetivos antídotos: o amor, o perdão, a
fé, a verdade, a esperança, a alegria e a luz – expressos em termos antónimos que
nalgumas versões vêm grafados com maiúscula. Note-se a forma verbal “leve” (de
verbo de movimento), num conjuntivo optativo
sintaticamente separado do verso inicial, mas semanticamente com ele conexo,
uma vez que o crente sabe que não consegue a realização de nenhum dos seus
propósitos sem o auxílio do Senhor, que está a invocar. Porém, o desejo orante
é ir àqueles lugares “aonde” é urgente levar ação benfazeja da fé, da esperança
e da caridade, tornadas Luz e cujos frutos serão o perdão, a união e a alegria.
Anote-se que o dinamismo do apostolado da paz leva
o orante a transformar aquele “onde” da situação de mal num urgente “aonde” a
exigir a ação de cada pessoa munida do espírito, alma e corpo do Evangelho,
conteúdo e método, bem como a ação concertada da parte do coletivo.
Depois, desfilam quatro versos a partir dum termo,
“Mestre”, que representa uma variante
significativa dos atributos do Senhor, aqui num vocativo precedido da
interjeição “oh”, de espanto e disponibilidade, porque o orante, como apóstolo,
tem de inverter radicalmente as suas preocupações: em vez de procurar, antes, a
satisfação das suas aspirações (que não deve descartar de todo)
– ser consolado, compreendido e amado –, tem de almejar sobretudo a satisfação
das aspirações dos outros, pelo que tem de se obrigar, antes de mais, a
consolar, compreender e amar. A construção dos versos dependentes do verso “Oh Mestre, fazei que eu procure mais” é também
antitética, mas não através de antónimos, mas da contraposição de segmentos
verbais na voz ativa e na voz passiva, sendo mais relevante praticar as ações
de consolar, compreender e amar que ser objeto delas.
Na presente versão, vê-se desenhado um anaforismo
semântico, sendo que em algumas versões o anaforismo é mesmo vocabular. Basta o
verso de início vir formulado em “Oh Mestre, fazei que eu procure
menos”
para os versos seguintes serem: “ser consolado do que consolar;
/ ser compreendido do que compreender; / ser amado do que amar”.
O verso ora destacado constitui um reforço do verso inicial, que serve
de mote ou cabeça à glosa de 16 versos (distribuíveis por quatro quadras) a fazer a quadratura
perfeita, a que talvez se deva a facilidade com que a oração é repetidamente
rezada e cantada. Se quiséssemos reportar-nos à nossa poesia palaciana,
poderíamos ver no texto um vilancete com mote, glosa (voltas) e cabo.
Este verso, que inicia uma quadra antitética como
se disse, tem como chave, tal como o primeiro, a forma verbal “fazei” no imperativo,
sinal de que o orante por si não é capaz de se posicionar nas atitudes e
comportamentos que os valores enunciados postulam. Assim, o crente reconhece a
sua insuficiência e socorre-se da humildade para implorar, confiando na divina omnipotência,
a capacitação para construir o perfil desejado e o feliz e apostólico
desempenho.
Finalmente, vem a quadra final, que serve de
conclusão do enunciado, que resulta de acumulação, e de fundamentação para a
formulação daquele conjunto de petições.
***
A génese desta oração
Comummente atribui-se a oração pela paz a São
Francisco de Assis. Porém, ainda que ela tenha a ver com a preocupação
franciscana de paz universal e bem para todos e seja expoente da fraternidade e
da postura da aprendizagem com o Mestre, o texto não é na pena de Francisco.
Dificilmente o irmão Francisco conceberia uma longa oração dirigida ao Senhor
totalmente impetratória e tão visivelmente pressurosa e preocupante. O poverello era bem mais tranquilo e
otimista, irmão a sério. Por outro lado, Christian Renoux, historiador francês,
pesquisou as origens do texto e descobriu que o primeiro registo é de 1912. Foi
publicado na revista francesa “La
Clochette”, sem assinatura e com o título “Oração Bonita para Fazer durante a Missa”. e passou a ser chamada
também de “Oração pela Paz”. Segundo o
historiador, a oração foi associada ao padroeiro dos animais porque foi
impressa algumas vezes com à imagem dele.
A predita revista era uma “petite revue
catholique pieuse” fundada pelo sacerdote e jornalista Esiher Suquerel,
falecido em 1923. E a hipótese é que ele mesmo tenha sido o autor da prece.
Em 1913, a oração foi retomada por Louis Boissey (falecido
em 1932), apaixonado pelo tema da paz; em janeiro, foi publicada
nos “Annales de Notre Dame de Paix” (França),
citando como origem “La Cloclette”. No mesmo ano, Estanislau de la
Rochethoulon Grente (falecido em 1941),
fundador de “Le Souvernir Normand“, publicou-a na sua revista.
Mas a mensagem de paz e de esperança ganhou força
durante a I Guerra Mundial e, em 20 de janeiro de 1916, a oração foi
publicada no “L’Osservatore Romano”,
jornal da Santa Sé. Segundo este jornal, “Le Souvenir Normand” havia
enviado ao Santo Padre “o texto de algumas orações pela paz”. Entre elas, destacava-se
esta dirigida especialmente ao Sagrado Coração.
Em 3 de fevereiro do mesmo ano, “La Croix”
de Paris dava a conhecer que, em 25 de janeiro, o cardeal Gasparri escrevera ao
marquês de La Rochethulon et Gante a agradecer-lhe o envio feito a Sua
Santidade. Três dias depois, o mesmo jornal reproduziu o texto do “L’Osservatore
Romano”. Também, naqueles dias, o capuchinho Etienne de Paris,
diretor da Ordem Terceira, mandou imprimir em Reims uma imagem de São
Francisco, com a invocação ao sagrado Coração no verso. No rodapé, sublinhava
que a oração, retirada de “Le Souvenir Normand”, era uma síntese
perfeita do ideal franciscano que precisava de ser promovido na sociedade de
então.
Em 1917, foi divulgada com um título chamativo: “Oração para uso dos que querem colaborar na
preparação de um mundo melhor”.
Os primeiros a relacionar a oração com São
Francisco foi a organização protestante “Chevaliers
de la Paix”, ou Cavaleiros da Paz, às vésperas do 7.º centenário da morte
do santo (1926).
A partir de 1925, a oração começara a ser
difundida pelo mundo afora, a partir dos Estados Unidos e do Canadá,
seguindo-se os países germânicos. Os mídia católicos franceses começaram a
atribuí-la a São Francisco em 1947.
Na 2.ª metade do século XX, a “Oração Simples”,
como a chamavam em Assis, começou a tornar-se popular, sobretudo quando os
frades do Sacro Convento a imprimiram em diversas línguas, sob o seu nome, nas
imagens de São Francisco.
Esta prece tornou-se a oração quase oficial dos
escuteiros e das famílias franciscanas; os anglicanos consideram-na como a
oração ecuménica por excelência; algumas igrejas e congregações protestantes adotaram-na
inclusive como texto litúrgico; foi pronunciada numa das sessões da ONU; e, ultimamente,
tem grande acolhimento entre as religiões não cristãs, sobretudo desde
que Assis se
tornou o centro mundial do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. O segredo
deste sucesso deve-se à atribuição a São Francisco e à riqueza do conteúdo,
unida à simplicidade; e é precisamente o conteúdo e o título original, “Invocação
ao Sagrado Coração”, que permitem atribuir a composição a um autor não
anterior ao início do século XX.
Fonte de inspiração pode ter sido a fórmula
de Consagração ao Sagrado Coração, promulgada por Leão XIII em 1899 e
recomendada por São Pio X em 1905 para ser recitada anualmente:
“Sede o Rei de todos os que
vivem no engano do erro ou que, por discordarem, de Vós se separaram; chamai-os
ao porto da verdade e da unidade da Fé, para que, assim, em breve, não haja
mais que um só rebanho sob um só Pastor. Sede o Rei de todos os que estão
envoltos nas superstições do paganismo e não recuseis tirá-los das trevas para
trazê-los à luz do Reino de Deus. Obtende, ó Senhor, a integridade e liberdade
segura para a vossa Igreja; dai a todo o povo a tranquilidade da ordem.”.
E o Padre Etienne (de Paris)
via nela certa concordância com o espírito e o estilo franciscanos, como se comprova
lendo, por exemplo, a Admoestação 27 de São Francisco:
“Onde há caridade e sabedoria, não há medo nem ignorância.
Onde há paciência e humildade, não há ira nem perturbação.
Onde à pobreza se une a alegria, não há cobiça nem avareza.
Onde há paz e meditação, não há nervosismo nem dissipação.
Onde o temor de Deus está a guardar a casa (cf Lc 11,21),
O inimigo não encontra porta para entrar.”.
Isto é o que faz que a oração seja considerada por
muitos como franciscana e, embora seja erro atribuí-la a São Francisco de
Assis, ela deve ser rezada e cantada.
***
Considerações dum franciscano
Frei Adelino G. Pilonetto,
OFM Cap, considera que a Oração pela Paz, Oração do Amor, Oração simples, tem
um sabor ecuménico e expressa conteúdos de tanta sinceridade e beleza que necessariamente
encontra ressonância no coração das pessoas, pois o conteúdo corresponde às
aspirações íntimas dos melhores cristãos do nosso tempo. E, não se tratando
duma oração antiga, embora sejam antigas as suas raízes, foi graças à sua
simplicidade, pertinência e beleza que muitos se afeiçoaram a ela e,
inadvertidamente, os franciscanos a adotaram como própria.
Como se disse, quem a enviou ao Papa Bento XV,
juntamente com outras orações pela paz, foi o Marquês de la Rochetulon,
fundador do semanário católico Souvenir
Normand. Nessa época, faziam-se, em toda parte, orações instantes pela paz,
visto que a Europa inteira se debatia com os fantasmas trágicos da I Guerra
Mundial (1914-1918).
Soube-se que aquelas orações, inclusive a que seria atribuída
a São Francisco, eram dirigidas ao Sagrado Coração de Jesus, devoção que se vinha
a expandir com muito fervor desde o final do século XIX e com a qual “se pretendia resgatar uma dimensão esquecida
no cristianismo tradicional: a riqueza da santa humanidade de Jesus, do seu
amor incondicional, da sua misericórdia, do seu enternecimento para com todos,
especialmente para com os pobres e os pecadores, as crianças e as mulheres”.
A partir deste contexto, a Oração pela
Paz ganhou asas e correu mundo, recebendo acolhimento entusiasta de
cristãos e mesmo de seguidores de outras religiões, que nela encontravam a
expressão inspirada dos ancestrais desejos de união e de paz.
A atribuição a Francisco de Assis
não é propriamente uma falsificação fraudulenta, mas uma casualidade
histórica, que, entretanto, contribuiu para tornar manifesta uma notável
afinidade existente entre a Oração pela Paz e a espiritualidade franciscana.
Um primeiro passo deu-se por volta de 1913, quando a
oração foi estampada no verso de um póster devocional que trazia a figura de
São Francisco de Assis. O texto tinha simplesmente como título: “Oração pela Paz”. Tempos depois, por
volta de 1936, foi publicado um póster semelhante em Londres com a mesma
oração, traduzida em inglês, no verso. Desta vez, porém, ela foi atribuída
diretamente ao santo representado na gravura, e recebeu como título: “Uma Oração de São Francisco”. Com isto
firmou-se ainda mais a sua popularidade. Outro passo foi quando o senador
americano Tom Connally a leu na Conferência da ONU, em 1945. Porém, em todas as
outras edições anteriores, o texto é anónimo, até em revistas franciscanas,
inclusive no ano do VII Centenário de São Francisco.
Leonardo Boff conta episódio semelhante, ocorrido
pouco depois da publicação da Oração pela
Paz em Roma. Um franciscano que visitava a Ordem Terceira Secular de Reims,
na França, mandou imprimir um cartão tendo dum lado a figura de São Francisco
com a regra da Ordem Franciscana Secular na mão e, do outro, a Oração pela Paz com a indicação da
fonte: Souvenir Normand. No final,
uma pequena frase rezava:
“Essa oração
resume os ideais franciscanos e, ao mesmo tempo, representa uma resposta às
urgências de nosso tempo”.
Esta frase levou a que deixasse de ser apenas Oração pela Paz para ser também Oração de São Francisco ou Oração da Paz de São Francisco de Assis.
Assim, passou a ser, simultaneamente, resumo da devoção ao Sagrado Coração de
Jesus e da espiritualidade franciscana. Com efeito, há parentesco entre a Oração pela Paz e a espiritualidade
franciscana, permitindo que uma se reconheça na outra. Talvez L. Boff exagere
na fundamentação de tal parentesco:
“Existe uma espiritualidade
franciscana difusa no espírito do nosso tempo, nascida da experiência de
Francisco, de Clara e de seus companheiros [ … ]. A Oração pela Paz, também chamada Oração
de São Francisco, constitui uma das cristalizações desta espiritualidade
difusa. Ela não provém diretamente da pena do Francisco histórico, mas da
espiritualidade do São Francisco da fé. Ele é seu pai espiritual e por isso seu
autor no sentido mais profundo e abrangente da palavra. Sem ele, com certeza,
essa Oração pela Paz jamais teria
sido formulada nem divulgada e muito menos se teria imposto como uma das
orações mais ecuménicas hoje existentes. Ela é rezada pelos fiéis de todos os
credos e por professantes de todos os caminhos espirituais.”.
***
O conteúdo desta oração
Além do alto teor evangélico da oração, os estudiosos
identificam nela ressonâncias de temas clássicos da espiritualidade medieval,
especialmente agostiniana, sobretudo nas obras de misericórdia espiritual e no
mecanismo esquemático do combate aos vícios pelas virtudes. As expressões repetitivas
lembram João Fécamp, autor muito próximo da literatura franciscana dos
primórdios. A 2.ª parte da Oração apresenta semelhanças de estilo com os ditos de Frei Egídio, companheiro de São
Francisco, e com a Admoestação 27 do próprio Santo, como se viu acima.
A semelhança com os ditos do Beato Egídio é maior, mas é de anotar o paralelismo da
formulação anafórica e antitética bem-aventurantista:
“Bem-aventurado
aquele que ama sem desejar ser amado.
Bem-aventurado
aquele que venera sem querer ser venerado.
Bem-aventurado
aquele que serve sem querer ser servido.
Bem-aventurado
aquele que trata bem os outros sem desejar ser bem tratado”.
***
Concluindo
A concluir, são de ressaltar duas coisas: a “Oração pela Paz” não é de Francisco de
Assis, não convindo, assim, continuar a designá-la como “Oração de São Francisco”, pelo facto de ela não o ser; e a oração
está impregnada de espírito franciscano, tendo a ver com a espiritualidade e o carisma
dos irmãos e irmãs menores. Convém, pois, tê-la em alto apreço, rezando-a e
divulgando-a, pois é uma bela oração simples e inspirada, de sabor ecuménico,
que nasce do coração e fala ao coração, em perfeita consonância com o Evangelho
– a regra dos crentes e da Igreja. Ademais, é próprio do franciscanismo
alegrar-se reconhecendo e admirando o bem onde quer que ele se encontre: nos
irmãos, nos escritos dum pagão ou nos costumes dos sarracenos.
Bibliografia sobre o tema:
– Willibrord Christiann van Dijk, “Une prière en
quête d’auteur”, en Evangile Aujourd’hui,
1975, n. 86, 65-70; Jerôme Poulenc, L’inspiration moderne de la prière
“Seigneur faites de moi un instrument de votre paix”, en Archivium Franciscanum Historicum, 68 (1975), 450-453; Christian
Renoux, La priére pour la paix attribuée
a Sant François: une énigme a résoudre. Les Editions Franciscaines, 9 rue
Marie Rose, 75014-Paris, 2001; La
preghiera per la pace attribuita a san Francesco. Padova, Edizioni
Messaggero, 2003, 179 pgs.; Frei
Adelino G. Pilonetto http://franciscanos.org.br/?p=24385.
2018.06.19 – Louro de Carvalho
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