Tanta polémica com Angola por causa da operação Fizz, tanta
suspeita sobre a incapacidade de a justiça angolana fazer justiça ao antigo
Vice-Presidente Manuel Vicente e tão séria tempestade nas relações bilaterais!
Tantos factos investigados configuradores de tantos crimes!
Afinal, veio o Ministério Público (MP) considerar, no passado dia 21, que ao longo do julgamento
do caso Fizz, ficou provado que o magistrado Orlando Figueira e o advogado
Paulo Blanco cometeram um crime de corrupção (não
muitos) – o magistrado na forma passiva (corrompido) e o advogado
na forma ativa (corruptor), ambos com
grau de culpa diferente. Por consequência, pediu ao tribunal que decretasse
pena de prisão até 5 anos, mas suspensa. E, em relação ao empresário Armindo Pires, que representa Manuel
Vicente, a procuradora considerou não haver prova de que tenha cometido
qualquer crime.
Em julgamento os três arguidos estão acusados dos crimes
de corrupção, falsificação de documento e violação do segredo de justiça.
E o ex-Vice-Presidente angolano, que chegou a ser acusado por corrupção ativa no
processo, será investigado em processo à parte, que o Tribunal da Relação entregou
às autoridades angolanas. Em causa está o arquivamento de dois inquéritos em
que Vicente era investigado e que Figueira tinha em mãos.
A procuradora
Leonor Machado sustentou que, ao longo do julgamento, ficou “claro” que Figueira cometera um crime
de corrupção passiva e que o crime de branqueamento de capitais se refletira em
transferências de parte dos mais de 700 mil euros que fez para uma conta em
Andorra. Deixou, entretanto, cair o crime de violação do segredo de
justiça. Quanto a Blanco,
considerou apenas ter ficado provado o crime de corrupção ativa para ato
ilícito. E clarificou que é diferente o grau de culpa de ambos, sendo
mais intenso o grau de culpa de Orlando Figueira por se tratar de magistrado
que tinha conhecimento destas matérias. Porém, como esteve preso ao longo de
dois anos, a pena deve agora ser semelhante à de Blanco. Deve ainda o magistrado ser suspenso de funções por cinco anos.
***
Durante as
alegações finais, a procuradora lembrou que os indícios no processo devem ser
avaliados em conjunto e até considerou “brilhante” a forma como a defesa abriu
uma “brecha” no caso durante o julgamento, direcionando o caso para o
presidente do Banco Privado Atlântico, Carlos Silva, e dissociando-o de
Vicente. No entanto, frisou não haver dúvidas das ligações entre Silva e Vicente e reforçou que Silva “agiu
sempre no interesse de Manuel Vicente” – proximidade que, segundo alega,
“decorre do peso da Sonangol nas sociedades comerciais de Carlos Silva”, apesar
de a Sonangol ser, à data dos crimes, liderada por Vicente e ter sido
“relegada para um plano secundário face à Globalpactum”, empresa detentora da
Atlântico Europa SGPS (que integra o Banco Privado Atlântico). Por outro lado, a Portmill, sociedade investigada
por Figueira, “não tem qualquer ligação a Carlos Silva, mas a Vicente”.
A
procuradora acolheu como “credíveis”
as declarações de Blanco, dizendo até que foi “amordaçado”, por
neste momento não poder exercer a profissão relativamente a cidadãos angolanos
visados no processo. E teceu-lhe alguns elogios, sublinhando que fez o
seu trabalho como “um bom advogado”, que conseguia movimentar-se bem pelos
corredores do DCIAP. Ao invés, foi bem mais crítica relativamente a Figueira, pois, enquanto, por um
lado, ao advogado cabia criar estas relações em defesa dos clientes, ao
magistrado cabia resguardar-se e não manter uma relação tão próxima. Aliás,
refere que ele “usou e abusou da
confiança de Cândida Almeida”, então diretora do DCIAP (Departamento
Central de Investigação e Ação Penal), conhecida
por escolher a sua equipa por critérios profissionais e “pessoais”. Leonor
Machado até considera que podia ter acelerado o processo relativo a Vicente,
dadas as eleições em Angola, mas isso não significava não fazer “as diligências
mínimas” para apurar o que se passou”. Tal asserção levou Figueira a mostrar-se
desconfortável na cadeira por várias vezes.
Quanto a Pires, com plenos poderes para
representar Vicente cá, a procuradora considerou não haver indícios que o condenem pelos crimes de que vinha
acusado: apenas um mail para Vicente, um telefonema e uma
reunião com Blanco. E, segundo Leonor Machado, mesmo que no email haja uma
referência a possíveis escutas, essas seriam relativas a investigações em que o
alvo era Vicente.
Rita
Relógio, a advogada de Blanco, lembrou como ao longo do julgamento as defesas
tentaram “arduamente” mostrar que os arguidos não cometeram os crimes de que
vinham acusados. Mas recusou haver uma “estratégia comum” da defesa, como
implicara a procuradora.
Relógio
arrasou a investigação, demonstrando que ficou presa a uma carta anónima, cujas
informações foram confirmadas por “fontes abertas da internet”, nomeadamente
pelo Google e pela Wikipedia, como confirmou um dos inspetores da PJ ouvidos em
tribunal. Assim, o MP optou por não realizar diligências probatórias por não
valorar meios de prova que tinha à sua disposição antes da acusação e, se
o tivesse feito, os autos tinham terminado no arquivamento, pelo menos
relativamente a Blanco.
Sublinhou
como o processo afetou a dignidade de Blanco, que sofreu consequências
gravíssimas com o mesmo. E, porque a forma como a investigação foi conduzida
e a leviandade como foi produzida a acusação envergonham a justiça portuguesa, pede
a plena absolvição.
Por sua vez,
Carla Marinho, a advogada de Figueira, disse não ter existido qualquer acordo
entre os arguidos e Vicente. Segundo a causídica, Figueira despachou os inquéritos
de acordo com a lei, a sua consciência jurídica e com o conhecimento da sua
superior hierárquica. A advogada explicou que Figueira foi contratado pelo banqueiro
angolano apenas pela sua competência e pelo seu conhecimento na área
económico-financeira.
***
Voltou a ser
referido nesta sessão de julgamento pela procuradora Leonor Machado o nome do
advogado Proença de Carvalho, que Figueira e Blanco dizem ter intermediado o
contrato celebrado com Carlos Silva. A procuradora sustentou que, de facto,
Proença de Carvalho participara na cessação do contrato de trabalho que
Figueira fez com a empresa angolana Primagest – depois de o contrato não ter
sido cumprido e de Figueira não ter ido trabalhar efetivamente para Angola. E o
advogado, que foi mencionado em julgamento e que pediu o levantamento do sigilo
profissional para prestar declarações, admitiu que, de facto, participou nesta
fase do contrato, mas não a pedido de Carlos Silva, tendo afirmado que foi
apenas seu advogado num processo.
Entretanto,
no dia 21, chegou uma carta
anónima ao tribunal que veio contestar esse facto. Na carta, uma alegada
testemunha do processo de divórcio de Silva acusa o advogado e o banqueiro de
terem retirado dos bens declarados em tribunal várias contas bancárias e revela
as alegadas intenções de Silva no processo Fizz. A carta, junta ao caso, poderá
originar inquérito à parte.
Também o
advogado Paulo Blanco juntou ao processo um assento de nascimento para provar
que Proença de Carvalho tem um filho com menos de 50 anos, ao invés do que
disse quando prestou depoimento. É Francisco Proença de Carvalho, com 38 anos,
ligado à Ifogest, a empresa do pai de Silva com quem os futuros funcionários do
Banco Privado Atlântico Europa assinaram contrato de trabalho, antes de o banco
ter licença bancária.
O tribunal
já tem fotocopiados os 33 volumes do processo e os apensos (num total de
49 volumes) a enviar para Angola, já que o
Tribunal a Relação e Lisboa decidiu que o processo relativo a Vicente devia ser
investigado no seu país. E essa remessa acontecerá porque as autoridades
angolanas não se contentaram com o formato digital e pediram uma cópia de tudo em
papel.
***
O coletivo de juízes recusa ouvir, a pedido do MP, o
procurador Rosário Teixeira como testemunha por ter intervindo no processo. O MP
recorre para a Relação alegando que uma juíza que integra o coletivo também
participou em buscas no inquérito.
No recurso,
assinado por Inês Bonina, a procuradora que investigou o caso (não pela procuradora de julgamento que
tinha arrolado a testemunha), diz não entender a decisão do coletivo presidido por Alfredo Costa,
proferida a 26 de abril. Segundo o despacho, Teixeira não podia ser ouvido em tribunal
por ter intervindo no processo. Com efeito, participou nas buscas que as autoridades
fizeram ao escritório de Blanco, mas, segundo, Bonina, a sua
participação não foi mais que “uma mera coadjuvação, não tendo sequer a decisão
de realizar a busca sido tomada por si”. Mais argumenta a magistrada que Ana Cristina Silva,
uma das juízas que integra o coletivo, também participou nalgumas buscas em
fase inquérito –
nomeadamente à sede duma empresa, a Magnavirtus, e ao escritório de Angélica Conchinha,
que representa dezenas de empresas angolanas em Portugal. Ora, se uma juíza
pode integrar o Tribunal Coletivo que se encontra a julgar o processo, tendo
participado numa busca em fase de inquérito, não se vê como obstar à inquirição
de um magistrado do MP, que também só participou numa única busca e que, desde
então, não teve nenhuma outra intervenção profissional neste processo.
Considera o
MP que o fundamento do coletivo para recusa em ouvir Teixeira não podia ser baseado
nos “regimes dos impedimentos, escusas e recusas dos magistrados porque
esse instituto não se destina a proteger a produção de prova, mas a
imparcialidade do juiz e magistrados”; e que a testemunha deve ser ouvida em tribunal para “a descoberta
da verdade e para a boa decisão da causa”. Mais refere que as questões que
Teixeira devia esclarecer se prendem não com a busca em que participou, mas com
o funcionamento do DCIAP, à semelhança do que fizeram outras testemunhas como
Cândida Almeida, Vítor Magalhães e Teresa Sanchez – que à data prestavam
funções no DCIAP. Por outro lado, o facto de Teixeira ter sido referido várias vezes
em julgamento reforça a importância da sua audição.
Rosário
Teixeira já fora arrolado como testemunha por Blanco em novembro passado, e o coletivo
aceitou. No entanto, em abril e durante o julgamento, o coletivo de juízes
considerou que ele não podia prestar declarações, dada a sua intervenção no
caso.
E, já depois
de recusar a audição de Rosário Teixeira, o juiz acabou por anular o depoimento
já prestado em julgamento pelo procurador Ricardo Matos, que também participou
nas buscas, e que sustentou em tribunal que algumas práticas de Figueira não
eram comuns. Para o MP, esta anulação foi feita “de modo inédito e
incompreensível”, a pedido da defesa e depois da recusa de Teixeira. Mais uma
vez, argumenta o MP, esta decisão nada mais é que uma “incongruência”
relativamente “à passividade” referente ao facto de
a juíza que presidiu à busca em sede de inquérito fazer parte do coletivo. Tal impedimento a ser reconhecido, seria necessariamente
segundo Bonina, alargado a todo o coletivo e imporia a anulação e repetição do
julgamento.
Por isso, num
segundo recurso agora enviado ao Tribunal da Relação de Lisboa, o MP alerta
para o facto de o coletivo ter aceitado ouvir Ricardo Matos enquanto testemunha
também em novembro, por iniciativa de Blanco, e de Figueira só ter pedido
a sua nulidade em maio de 2018. Aos olhos de Inês Bonina, na interpretação da lei,
essa nulidade teria que ter sido declarada até ao dia 24 de abril.
Recorde-se
que, sob o argumento da intervenção no processo, por altura das buscas, o
coletivo de juízes também dispensou a audição de dois advogados do Banco
Privado Atlântico.
Os dois
recursos agora apresentados pelo MP só serão apreciados pelo Tribunal da
Relação após a sentença, que ficou marcado para 8 de outubro, e juntamente com
os possíveis recursos que daqui surjam. Ou seja, por agora o julgamento corre
os termos com as alegações finais marcadas para o final deste mês e, depois, virá
a leitura da sentença.
Só após
proferida a sentença e se alguma das partes recorrer é que estes recursos sobem
para o tribunal superior. Importante referir que, se os juízes da Relação
entenderem que o MP tem razão e que Teixeira deve ser ouvido (assim como o depoimento de Ricardo
Matos considerado),
então a decisão final terá que ser anulada. E será marcada uma sessão para
ouvir o procurador, novas alegações finais e nova sentença.
***
Quer dizer:
tanta parra para tão pouca uva. Com efeito, era anunciada uma acusação tão
sólida e sustentada, tinha entrado a justiça no próprio mundo da justiça a
cortar cerce e a direito. E agora, entre insuficiências, contradições e
incongruências, o MP, como acusador, deixa cair alguns crimes porque os factos
não sustentam o seu cometimento, escuda-se genericamente em transferências,
e-mail, telefonema reunião, Google e Wiquipedia. Por isso, limita-se a pedir
uma pena suspensa e, ainda, para o procurador a acessória pena de suspensão de
funções na magistratura por 5 anos. Neste cenário, é fácil que as defesas
saibam mover-se por entre os aparentes grossos pingos de chuva do processo
penal e reclamem a plena absolvição dos seus constituintes.
E deste
megaprocesso sobram 33 volumes de processo e mais 16 de apensos – ao todo 49 –
com guia de marcha para Luanda!
Ah!
Esquecia-me de referir que tudo pode vir a ser anulado se os recursos
interpostos pelo MP (e que
serão apreciados só após a sentença) vierem a desembocar na repetição do julgamento.
É caso para
lembrar ao Primeiro-Ministro do Governo de Portugal: a justiça funciona não só
quando se chega à conclusão de que os factos da acusação não são provados, mas
também quando os processos se enredam em insuficiências, contradições e
incongruências, na referência a nomes e na recusa da sua audição. Assim, um
juiz que interveio no inquérito pode participar no julgamento do mesmo caso; já
o procurador que interveio no inquérito poderá ou não participar no julgamento,
a critério dos juízes… Uns podem ser ouvidos, mas outros não, pelo menos às
vezes. No entanto, a justiça funciona: “Terra
tamen movetur”.
2018.06.23 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário