sábado, 23 de junho de 2018

O caso Fizz passou a ser outro caso, o 49


Tanta polémica com Angola por causa da operação Fizz, tanta suspeita sobre a incapacidade de a justiça angolana fazer justiça ao antigo Vice-Presidente Manuel Vicente e tão séria tempestade nas relações bilaterais! Tantos factos investigados configuradores de tantos crimes!
Afinal, veio o Ministério Público (MP) considerar, no passado dia 21, que ao longo do julgamento do caso Fizz, ficou provado que o magistrado Orlando Figueira e o advogado Paulo Blanco cometeram um crime de corrupção (não muitos) – o magistrado na forma passiva (corrompido) e o advogado na forma ativa (corruptor), ambos com grau de culpa diferente. Por consequência, pediu ao tribunal que decretasse pena de prisão até 5 anos, mas suspensa. E, em relação ao empresário Armindo Pires, que representa Manuel Vicente, a procuradora considerou não haver prova de que tenha cometido qualquer crime.
Em julgamento os três arguidos estão acusados dos crimes de corrupção, falsificação de documento e violação do segredo de justiça. E o ex-Vice-Presidente angolano, que chegou a ser acusado por corrupção ativa no processo, será investigado em processo à parte, que o Tribunal da Relação entregou às autoridades angolanas. Em causa está o arquivamento de dois inquéritos em que Vicente era investigado e que Figueira tinha em mãos.
A procuradora Leonor Machado sustentou que, ao longo do julgamento, ficou “claro” que Figueira cometera um crime de corrupção passiva e que o crime de branqueamento de capitais se refletira em transferências de parte dos mais de 700 mil euros que fez para uma conta em Andorra. Deixou, entretanto, cair o crime de violação do segredo de justiça. Quanto a  Blanco, considerou apenas ter ficado provado o crime de corrupção ativa para ato ilícito. E clarificou que é diferente o grau de culpa de ambos, sendo mais intenso o grau de culpa de Orlando Figueira por se tratar de magistrado que tinha conhecimento destas matérias. Porém, como esteve preso ao longo de dois anos, a pena deve agora ser semelhante à de Blanco. Deve ainda o magistrado ser suspenso de funções por cinco anos.
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Durante as alegações finais, a procuradora lembrou que os indícios no processo devem ser avaliados em conjunto e até considerou “brilhante” a forma como a defesa abriu uma “brecha” no caso durante o julgamento, direcionando o caso para o presidente do Banco Privado Atlântico, Carlos Silva, e dissociando-o de Vicente. No entanto, frisou não haver dúvidas das ligações entre Silva e Vicente e reforçou que Silva “agiu sempre no interesse de Manuel Vicente” – proximidade que, segundo alega, “decorre do peso da Sonangol nas sociedades comerciais de Carlos Silva”, apesar de a Sonangol ser, à data dos crimes, liderada por Vicente e ter sido “relegada para um plano secundário face à Globalpactum”, empresa detentora da Atlântico Europa SGPS (que integra o Banco Privado Atlântico). Por outro lado, a Portmill, sociedade investigada por Figueira, “não tem qualquer ligação a Carlos Silva, mas a Vicente”.
A procuradora acolheu como “credíveis” as declarações de Blanco, dizendo até que foi “amordaçado”, por neste momento não poder exercer a profissão relativamente a cidadãos angolanos visados no processo.  E teceu-lhe alguns elogios, sublinhando que fez o seu trabalho como “um bom advogado”, que conseguia movimentar-se bem pelos corredores do DCIAP. Ao invés, foi bem mais crítica relativamente a Figueira, pois, enquanto, por um lado, ao advogado cabia criar estas relações em defesa dos clientes, ao magistrado cabia resguardar-se e não manter uma relação tão próxima. Aliás, refere que ele “usou e abusou da confiança de Cândida Almeida”, então diretora do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), conhecida por escolher a sua equipa por critérios profissionais e “pessoais”. Leonor Machado até considera que podia ter acelerado o processo relativo a Vicente, dadas as eleições em Angola, mas isso não significava não fazer “as diligências mínimas” para apurar o que se passou”. Tal asserção levou Figueira a mostrar-se desconfortável na cadeira por várias vezes.
Quanto a Pires, com plenos poderes para representar Vicente cá, a procuradora considerou não haver indícios que o condenem pelos crimes de que vinha acusado: apenas um mail para Vicente, um telefonema e uma reunião com Blanco. E, segundo Leonor Machado, mesmo que no email haja uma referência a possíveis escutas, essas seriam relativas a investigações em que o alvo era Vicente.
Rita Relógio, a advogada de Blanco, lembrou como ao longo do julgamento as defesas tentaram “arduamente” mostrar que os arguidos não cometeram os crimes de que vinham acusados. Mas recusou haver uma “estratégia comum” da defesa, como implicara a procuradora.
Relógio arrasou a investigação, demonstrando que ficou presa a uma carta anónima, cujas informações foram confirmadas por “fontes abertas da internet”, nomeadamente pelo Google e pela Wikipedia, como confirmou um dos inspetores da PJ ouvidos em tribunal. Assim, o MP optou por não realizar diligências probatórias por não valorar meios de prova que tinha à  sua disposição antes da acusação e, se o tivesse feito, os autos tinham terminado no arquivamento, pelo menos relativamente a Blanco.
Sublinhou como o processo afetou a dignidade de Blanco, que sofreu consequências gravíssimas com o mesmo. E, porque a forma como a investigação foi conduzida e a leviandade como foi produzida a acusação envergonham a justiça portuguesa, pede a plena absolvição.
Por sua vez, Carla Marinho, a advogada de Figueira, disse não ter existido qualquer acordo entre os arguidos e Vicente. Segundo a causídica, Figueira despachou os inquéritos de acordo com a lei, a sua consciência jurídica e com o conhecimento da sua superior hierárquica. A advogada explicou que Figueira foi contratado pelo banqueiro angolano apenas pela sua competência e pelo seu conhecimento na área económico-financeira.
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Voltou a ser referido nesta sessão de julgamento pela procuradora Leonor Machado o nome do advogado Proença de Carvalho, que Figueira e Blanco dizem ter intermediado o contrato celebrado com Carlos Silva. A procuradora sustentou que, de facto, Proença de Carvalho participara na cessação do contrato de trabalho que Figueira fez com a empresa angolana Primagest – depois de o contrato não ter sido cumprido e de Figueira não ter ido trabalhar efetivamente para Angola. E o advogado, que foi mencionado em julgamento e que pediu o levantamento do sigilo profissional para prestar declarações, admitiu que, de facto, participou nesta fase do contrato, mas não a pedido de Carlos Silva, tendo afirmado que foi apenas seu advogado num processo.
Entretanto, no dia 21, chegou uma carta anónima ao tribunal que veio contestar esse facto. Na carta, uma alegada testemunha do processo de divórcio de Silva acusa o advogado e o banqueiro de terem retirado dos bens declarados em tribunal várias contas bancárias e revela as alegadas intenções de Silva no processo Fizz. A carta, junta ao caso, poderá originar inquérito à parte.
Também o advogado Paulo Blanco juntou ao processo um assento de nascimento para provar que Proença de Carvalho tem um filho com menos de 50 anos, ao invés do que disse quando prestou depoimento. É Francisco Proença de Carvalho, com 38 anos, ligado à Ifogest, a empresa do pai de Silva com quem os futuros funcionários do Banco Privado Atlântico Europa assinaram contrato de trabalho, antes de o banco ter licença bancária.
O tribunal já tem fotocopiados os 33 volumes do processo e os apensos (num total de 49 volumes) a enviar para Angola, já que o Tribunal a Relação e Lisboa decidiu que o processo relativo a Vicente devia ser investigado no seu país. E essa remessa acontecerá porque as autoridades angolanas não se contentaram com o formato digital e pediram uma cópia de tudo em papel.
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O coletivo de juízes recusa ouvir, a pedido do MP, o procurador Rosário Teixeira como testemunha por ter intervindo no processo. O MP recorre para a Relação alegando que uma juíza que integra o coletivo também participou em buscas no inquérito.
No recurso, assinado por Inês Bonina, a procuradora que investigou o caso (não pela procuradora de julgamento que tinha arrolado a testemunha), diz não entender a decisão do coletivo presidido por Alfredo Costa, proferida a 26 de abril. Segundo o despacho, Teixeira não podia ser ouvido em tribunal por ter intervindo no processo. Com efeito, participou nas buscas que as autoridades fizeram ao escritório de Blanco, mas, segundo, Bonina, a sua participação não foi mais que “uma mera coadjuvação, não tendo sequer a decisão de realizar a busca sido tomada por si”. Mais argumenta a magistrada que Ana Cristina Silva, uma das juízas que integra o coletivo, também participou nalgumas buscas em fase inquérito – nomeadamente à sede duma empresa, a Magnavirtus, e ao escritório de Angélica Conchinha, que representa dezenas de empresas angolanas em Portugal. Ora, se uma juíza pode integrar o Tribunal Coletivo que se encontra a julgar o processo, tendo participado numa busca em fase de inquérito, não se vê como obstar à inquirição de um magistrado do MP, que também só participou numa única busca e que, desde então, não teve nenhuma outra intervenção profissional neste processo.
Considera o MP que o fundamento do coletivo para recusa em ouvir Teixeira não podia ser baseado nos “regimes dos impedimentos, escusas e recusas dos magistrados porque esse instituto não se destina a proteger a produção de prova, mas a imparcialidade do juiz e magistrados”; e que a testemunha deve ser ouvida em tribunal para “a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa”. Mais refere que as questões que Teixeira devia esclarecer se prendem não com a busca em que participou, mas com o funcionamento do DCIAP, à semelhança do que fizeram outras testemunhas como Cândida Almeida, Vítor Magalhães e Teresa Sanchez – que à data prestavam funções no DCIAP. Por outro lado, o facto de Teixeira ter sido referido várias vezes em julgamento reforça a importância da sua audição.
Rosário Teixeira já fora arrolado como testemunha por Blanco em novembro passado, e o coletivo aceitou. No entanto, em abril e durante o julgamento, o coletivo de juízes considerou que ele não podia prestar declarações, dada a sua intervenção no caso.
E, já depois de recusar a audição de Rosário Teixeira, o juiz acabou por anular o depoimento já prestado em julgamento pelo procurador Ricardo Matos, que também participou nas buscas, e que sustentou em tribunal que algumas práticas de Figueira não eram comuns. Para o MP, esta anulação foi feita “de modo inédito e incompreensível”, a pedido da defesa e depois da recusa de Teixeira. Mais uma vez, argumenta o MP, esta decisão nada mais é que uma “incongruência” relativamente “à passividade referente ao facto de a juíza que presidiu à busca em sede de inquérito fazer parte do coletivo. Tal impedimento a ser reconhecido, seria necessariamente segundo Bonina, alargado a todo o coletivo e imporia a anulação e repetição do julgamento.
Por isso, num segundo recurso agora enviado ao Tribunal da Relação de Lisboa, o MP alerta para o facto de o coletivo ter aceitado ouvir Ricardo Matos enquanto testemunha também em novembro, por iniciativa de Blanco, e de Figueira só ter pedido a sua nulidade em maio de 2018. Aos olhos de Inês Bonina, na interpretação da lei, essa nulidade teria que ter sido declarada até ao dia 24 de abril.
Recorde-se que, sob o argumento da intervenção no processo, por altura das buscas, o coletivo de juízes também dispensou a audição de dois advogados do Banco Privado Atlântico.
Os dois recursos agora apresentados pelo MP só serão apreciados pelo Tribunal da Relação após a sentença, que ficou marcado para 8 de outubro, e juntamente com os possíveis recursos que daqui surjam. Ou seja, por agora o julgamento corre os termos com as alegações finais marcadas para o final deste mês e, depois, virá a leitura da sentença.
Só após proferida a sentença e se alguma das partes recorrer é que estes recursos sobem para o tribunal superior. Importante referir que, se os juízes da Relação entenderem que o MP tem razão e que Teixeira deve ser ouvido (assim como o depoimento de Ricardo Matos considerado), então a decisão final terá que ser anulada. E será marcada uma sessão para ouvir o procurador, novas alegações finais e nova sentença.
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Quer dizer: tanta parra para tão pouca uva. Com efeito, era anunciada uma acusação tão sólida e sustentada, tinha entrado a justiça no próprio mundo da justiça a cortar cerce e a direito. E agora, entre insuficiências, contradições e incongruências, o MP, como acusador, deixa cair alguns crimes porque os factos não sustentam o seu cometimento, escuda-se genericamente em transferências, e-mail, telefonema reunião, Google e Wiquipedia. Por isso, limita-se a pedir uma pena suspensa e, ainda, para o procurador a acessória pena de suspensão de funções na magistratura por 5 anos. Neste cenário, é fácil que as defesas saibam mover-se por entre os aparentes grossos pingos de chuva do processo penal e reclamem a plena absolvição dos seus constituintes.
E deste megaprocesso sobram 33 volumes de processo e mais 16 de apensos – ao todo 49 – com guia de marcha para Luanda!
Ah! Esquecia-me de referir que tudo pode vir a ser anulado se os recursos interpostos pelo MP (e que serão apreciados só após a sentença) vierem a desembocar na repetição do julgamento.
É caso para lembrar ao Primeiro-Ministro do Governo de Portugal: a justiça funciona não só quando se chega à conclusão de que os factos da acusação não são provados, mas também quando os processos se enredam em insuficiências, contradições e incongruências, na referência a nomes e na recusa da sua audição. Assim, um juiz que interveio no inquérito pode participar no julgamento do mesmo caso; já o procurador que interveio no inquérito poderá ou não participar no julgamento, a critério dos juízes… Uns podem ser ouvidos, mas outros não, pelo menos às vezes. No entanto, a justiça funciona: “Terra tamen movetur”.
2018.06.23 – Louro de Carvalho

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