domingo, 26 de março de 2017

A Declaração de Roma no 60.º aniversário do Tratado que instituiu a CEE

No dia 25 de março de 2017, os dirigentes de 27 Estados-Membros e do Conselho Europeu, do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, no 60.º aniversário do Tratado de Roma, que instituiu a CEE, ora UE, assinaram uma declaração que perspetiva o futuro da UE.
Salientam com orgulho as conquistas da UE, designadamente: a construção da unidade europeia como “empreendimento audacioso, virado para o futuro”, “com instituições comuns e valores sólidos”, “uma comunidade de paz, liberdade, democracia, direitos humanos e Estado de direito, uma grande potência económica com níveis inigualados de proteção social e bem-estar”.
Sonho de poucos, tornado na esperança de muitos, a Europa voltou a ser uma só. E hoje – declaram – “estamos unidos e mais fortes”.
Cientes de que a UE enfrenta desafios sem precedentes (a nível mundial e interno) – conflitos regionais, terrorismo, pressões migratórias crescentes, protecionismo e desigualdades sociais e económicas – os líderes consideram-se “determinados a dar resposta aos desafios de um mundo em rápida mutação” e a oferecer aos cidadãos segurança e novas oportunidades.
Convictos de que “a unidade é uma necessidade” e “a nossa livre escolha”, porfiam tornar a UE “mais forte e mais resiliente” com mais unidade, solidariedade e respeito pelas regras comuns. No propósito de influenciar as dinâmicas mundiais e na defesa dos interesses e valores comuns, propõem-se atuar “em conjunto, a ritmos e com intensidades diferentes quando for necessário, avançando todos na mesma direção”, mas “em consonância com os Tratados e mantendo a porta aberta àqueles que se nos queiram juntar mais tarde. Esta “União é indivisa e indivisível”.
Nestes tempos de mudança, os líderes europeus comprometem-se a trabalhar em prol de:- Uma Europa segura e protegida, em que os cidadãos se sintam seguros e circulem livremente, mas com fronteiras externas protegidas, com “uma política de migração eficiente, responsável e sustentável” e com a determinação de lutar “contra o terrorismo e a criminalidade organizada”.
- Uma Europa próspera e sustentável, que gere crescimento e emprego e com “um mercado único forte, conectado e em desenvolvimento, aberto às transformações tecnológicas, e com uma moeda única estável e mais reforçada” a abrir “caminho ao crescimento, à coesão, à competitividade, à inovação e aos intercâmbios, em especial para as pequenas e médias empresas – onde haja “convergência das economias” e “a energia seja segura e económica e o ambiente limpo e seguro”.
- Uma Europa social, baseada no crescimento sustentável que fomente o progresso económico e social, bem como a coesão e a convergência, salvaguardando ao mesmo tempo a integridade do mercado interno”, e promotora da igualdade entre mulheres e homens, bem como dos direitos e da igualdade de oportunidades para todos, lutando “contra o desemprego, a discriminação, a exclusão social e a pobreza”.- Uma Europa mais forte no plano mundial, que desenvolva as parcerias existentes, construa parcerias novas e promova a estabilidade e a prosperidade na sua vizinhança imediata a leste e a sul, mas também no Médio Oriente, em África e no mundo.E comprometem-se a ouvir e responder às preocupações expressas pelos cidadãos e a colaborar com os parlamentos nacionais “num espírito de confiança e cooperação leal, tanto entre os Estados-Membros como entre estes e as instituições da UE, no quadro da subsidiariedade”.

Finalmente, declaram:
“Enquanto dirigentes, trabalhando em conjunto no Conselho Europeu e entre as nossas instituições, velaremos por que a agenda hoje acordada seja posta em prática, de forma a tornar-se na realidade de amanhã. Estamos unidos para o nosso bem – a Europa é o nosso futuro comum.”.

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O Presidente da Comissão Europeia considera que a Declaração marca “o início de um novo capítulo” para uma “Europa unida a 27” e prepara o cenário para um crescente sentimento de otimismo. Além disso, entende que o texto é um bom começo para uma ampla discussão sobre o futuro do bloco europeu após a saída do Reino Unido, sendo que a atmosfera é propícia para abordar o processo britânico “com confiança”. A este respeito, Juncker concluiu:
“O que alcançámos nos dias anteriores a Roma e nas últimas horas aqui em Roma transmite um estado de otimismo incipiente, porque, ao contrário do que foi presumido, não existiu confronto, não existiu nenhuma grande discussão entre as várias trajetórias concebíveis”.
Porém, não podemos esquecer que a celebração do 60.º aniversário do Tratado de Roma decorre em contexto difícil para a UE, a preparar-se para, pela primeira vez, perder um Estado-membro, o Reino Unido (UK) – o que era impensável dantes –, tendo lugar 4 dias antes de Londres enviar a Bruxelas a notificação de ativação do art.º 50.º do Tratado de Lisboa, que desencadeará as negociações de concretização do “Brexit”, um dos maiores reveses da história da UE.
Os líderes de 27 Estados-membros (o UK não participou nas comemorações na capital italiana) adotaram a Declaração de Roma, em que manifestam, como se disse acima, “orgulho” pelos feitos alcançados ao longo de 60 anos de história e apontam o caminho a seguir, admitindo uma UE a diferentes velocidades, mas “na mesma direção”. A Declaração foi assinada pelos 27 líderes dos Estados-Membros e pelos presidentes das instituições europeias no Capitólio, o mesmo sítio onde, em 25 de março de 1957, os países fundadores – Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo – assinaram os Tratados da Comunidade Económica Europeia e da Comunidade da Energia Atómica, que dariam origem à atual União Europeia.
O Primeiro-Ministro português António Costa colocou a assinatura de Portugal, às 11,25 horas locais (10,25 de Lisboa), no texto em que ressalta o segmento discursivo emblemático:
“Construímos uma União única, com valores fortes e instituições comuns, uma comunidade de paz, liberdade, democracia, direitos humanos e Estado de Direito, uma grande potência económica com níveis sem paralelo de proteção social e prosperidade”.
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António Vitorino, antigo comissário europeu português da Justiça e Administração Interna, de 1999 a 2004, reconhece que, numa altura em que a UE celebra 60 anos, os cidadãos europeus sentem que Bruxelas “não os ouve nem protege”.
Presidente do Instituto Jacques Delors (entre 2011 e 2016),Vitorino diz que os cidadãos não têm conseguido olhar a UE como “a única plataforma que os europeus têm para ‘civilizar a globalização'”, ou seja “adotar regras-chave para evitar que o capitalismo selvagem atropele os valores”. Pelo contrário, “encaram as políticas da UE como um ‘Cavalo de Troia’ para desregular” os mercados globais. Isto requer uma clarificação do propósito e da razão de ser da UE e uma mudança de narrativa por parte dos líderes, que neste fim de semana se reuniram para assinalar os 60 anos do Tratado que instituiu a CEE. “Tem de se argumentar que a UE pode proteger os valores e os cidadãos europeus, sem se tornar protecionista”, realçou Vitorino.
O ex-comissário acredita que só unida a Europa defenderá a sua moldura de valores, pois, individualmente, os Estados europeus perderão o lugar no palco principal da política mundial.
Com efeito,
“Dentro de 15 anos, não haverá nenhum Estado europeu no G-7″ [o grupo das sete economias mais desenvolvidas do Mundo]. Nem mesmo a Alemanha, que dentro de 15 anos será, provavelmente, a nona economia do Mundo.”.
Explicando que “o problema é que os valores que os europeus defendem vão ficar afastados, nas laterais”, Vitorino considera que isto é “especialmente grave” num momento em que os EUA se desviam “de um sem número de valores essenciais, que dão forma à visão comum, ocidental, do mundo”, como o Estado de Direito, o respeito pelos Direitos Humanos, a igualdade entre homens e mulheres, a tolerância ou a separação entre Estado e Igreja. E salientou:
“Os europeus têm uma enorme responsabilidade. Só podemos defender a nossa posição se trabalharmos em conjunto, no quadro da UE, porque nenhum Estado-membro da UE será capaz de carregar sozinho a bandeira destes valores no mundo.”.
Considerando “evidente” que uma estrutura como a UE melhora a capacidade dos Estados europeus de combater ameaças terroristas, disse:
“O combate ao terrorismo só é eficaz se evitar que os atentados aconteçam: isso implica cooperação policial, entre os serviços secretos e de informações, cooperação judicial. Não é só controlar as fronteiras.”.
E ironiza:
“Alguém acredita que os terroristas param nas fronteiras e dizem ‘Olá, estou aqui e sou um terrorista. Por favor, impeçam-me de entrar’? (…) Por isso, a reação de fechar as fronteiras, reinstaurar as fronteiras internas e desmantelar o espaço Shenghen não só constitui a resposta errada como também representa a resposta que os terroristas esperam”.
O ex-comissário aduz que tais medidas não os param e representam “uma derrota dos valores”, “passando a mensagem errada” de que “sociedades abertas não sobrevivem”. E infere:
“Se restabelecermos controlo sobre as fronteiras internas – tenho a certeza – a consequência será uma menor cooperação entre as polícias. E isso, em última análise, resultará numa menor capacidade para combater o terrorismo.”.
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Porque devemos celebrar o 60.º aniversário do Tratado de Roma? A grande razão assenta na necessidade de combater o aumento do apoio a partidos autoritários e eurocéticos, de extrema-direita ou extrema-esquerda, em conjunto com a dramática queda de participação democrática – algo que devia preocupar a todos os cidadãos.
Nas décadas que se seguiram à assinatura do Tratado da CEE, os países Europeus agiram com sucesso na luta contra o regresso do nacionalismo desenfreado que levara a duas Guerras Mundiais e ao massacre de milhões de europeus e encontraram uma forma de trabalhar em conjunto para criar um continente, em grande parte, pacífico, livre e próspero.
Mas, em 2017, a UE encontra-se numa encruzilhada que torna tão importante a utilização destas celebrações para renovar os nossos votos e juntos lutarmos por uma sociedade aberta, tolerante e livre. A UE é constantemente atacada e denegrida por nacionalistas que atuam com regimes autoritários fora da UE (infiltrando nela grupos extremistas), que a fragilizam e querem destruir, tentando pôr as nossas comunidades e as nossas sociedades umas contra as outras.
E é a geração pós-guerra que beneficiou da integração europeia que está agora por detrás desta explosão do nacionalismo eurocético. Por outro lado, os jovens, a maioria dos quais valorizam profundamente a cidadania europeia, muitas das vezes enfrentam barreiras à sua participação política e veem os eurocratas a engordar a riqueza própria (Talvez nem Vitorino escape!).
Os nacionalistas dizem que o Estado-nação está em melhor posição para enfrentar os desafios comuns – argumento sem qualquer racionalidade e que ignora as caraterísticas fundamentais das ameaças com que se defrontam as sociedades, entre as quais se contam: as alterações climáticas, os ataques às liberdades cívicas, o terrorismo internacional e as consequências negativas da globalização – que não podem ser abordadas por países individuais a agirem cada um por conta própria. Ora, se a União Europeia de hoje não existisse, teríamos de a criar.
Todavia, embora seja importante apreciar o que alcançámos, devemos ter sobretudo uma visão para o futuro. E a UE ou é uma entidade em permanente evolução, que vive e respira, mas que agora necessita de uma reforma radical, ou estiola e morre.
O mercado único europeu, apesar de não estar completo, deveria ser motivo de orgulho para os europeístas. No entanto, a prosperidade derivada do livre comércio e mercados abertos devia ser mais amplamente partilhada. Ao invés, demasiadas pessoas se defrontam com desemprego, com salários baixos e com uma vida inteira de exclusão social, sobretudo os mais jovens; milhões de pessoas estão a ser deixadas para trás e os líderes políticos têm sido demasiado lentos a reconhecer e inverter esta realidade. Todos estes fenómenos fazem-nos suspeitar que, por detrás da generosidade expressa pelos Pais fundadores, talvez estivesse essa mesma intenção, por parte de alguém, do esmagamento das classes médias e do aumento das zonas de pobreza para enriquecimento mais fácil de uns tantos e para abrir caminho ao domínio da euroburocracia.
Em especial, a zona euro carece de profunda reforma para implementar um verdadeiro sistema de governação, impulsionar o investimento e criar emprego. A timidez, o desvio ou a falsidade com que as reformas têm sido implementadas, sobretudo desde a crise de 2008, vêm minando a estabilidade e o potencial da moeda comum. Numa economia digital global, em rápida evolução, a Europa tem de ter a capacidade de se adaptar. Para tanto, necessita de verdadeira liderança e de vontade política para gerar a mudança que muitas vezes tem faltado.
É importante assinalar que a Europa deve retomar o estatuto de uma comunidade de valores. A crise de migrantes e refugiados na Europa e a ameaça de terrorismo testaram até ao limite as suas tradições de tolerância e proteção das liberdades individuais. A tentação de restrição das liberdades e de enclaustração face ao mundo é real, mas não é construindo muros que se resolvem os desafios colocados pelos fluxos migratórios em massa, causados pela pobreza no Terceiro Mundo. A limitação da liberdade daria a vitória a quem pretende causar mal.
É hoje mais importante do que nunca defender as sociedades abertas e tolerantes. Mas esta defesa deve caminhar de mãos dadas com controlos mais eficazes nas fronteiras externas e com a implementação de medidas ao nível da comunidade que visem dissuadir indivíduos que se sintam tentados pelo caminho do extremismo e do fundamentalismo.
Para vencer os populismos que aproveitam o seu medo e a procuram dividir, a UE deve oferecer a visão alternativa de esperança para o futuro, com base em valores, no respeito pelas liberdades e na oportunidade para todos, sem cair na armadilha de desdenhar de quem discorda, mas antes entrando em diálogo e debate, de acordo com as tradições democráticas.
O povo holandês tornou-se, em certo modo, um exemplo, ao rejeitar recentemente a política de ódio defendida por Wilders. Espera-se que os franceses escolham também um futuro europeu. Se assim não for, torna-se difícil fazer brotar os rebentos duma primavera democrática e o renascimento da UE renovada.
Face ao nacionalismo que deve ser rejeitado por ser incapaz de resolver os desafios atuais, há que dar vez e voz a quem acredita numa Europa unida e verdadeiramente solidária. Prosit!
2017.03.26 – Louro de Carvalho

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