segunda-feira, 27 de março de 2017

O desenvolvimento integral (total e universal): benefício e dever

O semanário Ecclesia, de 24 de março, insere um dossiê sobre a Encíclica Populorum Progressio (PP), de Paulo VI, cujo cinquentenário de publicação ocorreu a 26.

Desse dossiê, além dum texto da responsabilidade do editor, subordinado ao título “Papa Francisco, herdeiro da Populorum Progressio”, constam testemunhos de António Bagão Félix, antigo Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) e ex-Ministro da Segurança Social (de Durão Barroso) e das Finanças (de Santana Lopes), de Pedro Vaz Patto, Presidente da CNJP, Manuela Silva, antiga Secretária de Estado do Plano e Professora Jubilada do ISEG, da UL, Acácio F. Catarino, antigo Presidente da Cáritas Portuguesa, João José Fernandes, Diretor Executivo da Oikos – Cooperação e Desenvolvimento, e g.m.v, no  L’Osservatore Romano’.

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Francisco, primeiro Papa das Américas, tem assumido a grande influência de Paulo VI na sua vida. Por isso, o editor cita passagens da PP referidas no atual pontificado, que mostram a importância que o Papa reconhece ao referido texto de 1967.
Assim, na mensagem para o Dia Mundial das Migrações 2013, Montini enunciava assim as aspirações dos homens de hoje:
“Ser libertado da pobreza, ter garantido de modo seguro o próprio sustento, a saúde, o emprego estável, ter uma maior participação nas responsabilidades, fora de qualquer opressão e ser protegido de condições que ofendem a dignidade humana; poder desfrutar de uma educação melhor; numa palavra, fazer conhecer e ter mais, para ser mais” (PP, n.º 6).
Por isso, o desenvolvimento não se reduz ao mero crescimento económico, obtido, muitas vezes, sem tem em conta os mais fracos e indefesos.
Na Evangelii Gaudium, frisa-se que o Reino, que se antecipa e cresce em nós, abrange tudo, à luz do princípio de discernimento de Paulo VI sobre o verdadeiro desenvolvimento: “Todos os homens e o homem todo”. E, para falarmos dos direitos, devemos alongar mais o olhar, abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos e de outras regiões do país e crescer numa solidariedade que leve todos os povos a “tornarem-se artífices do seu destino”. Ademais, a paz não se limita à ausência de guerra, fruto do equilíbrio precário das forças, mas constrói-se diariamente na busca da ordem querida por Deus, portadora duma justiça mais perfeita entre os homens. Paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos não tem futuro e será sempre semente de conflitos e formas variadas de violência.
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, o Papa sustenta quea fraternidade é fundamento e caminho para a paz” e refere que as encíclicas sociais dos Predecessores, neste sentido, oferecem ajuda valiosa, exemplificando com as definições de paz da PP, de Paulo VI (segundo a qual o desenvolvimento integral dos povos é o novo nome da paz), e da Sollicitudo Rei Socialis, de João Paulo II (a paz como opus solidaritatis, fruto da solidariedade). Porém, o Papa Montini afirma que “tanto as pessoas como as nações se devem encontrar num espírito de fraternidade”.
Em seu discurso aos membros do corpo diplomático a 13 de janeiro de 2014, o Papa argentino recorda o conceito de paz acima exposto e diz que enforma o espírito que anima a ação da Igreja em todo o mundo, através dos sacerdotes, missionários, fiéis leigos que, com grande espírito de dedicação, se prodigalizam, além do mais, em múltiplas obras de índole educativa, sanitária e assistencial, ao serviço dos pobres, doentes, órfãos e quem quer que precise de ajuda e conforto.
Também em mensagem por ocasião da conferência sobre o impacto humanitário das armas nucleares, 2014, o Papa declara:
A paz deve ser construída sobre a justiça, o desenvolvimento socioeconómico, a liberdade, o respeito pelos direitos humanos fundamentais, a participação de todos nos assuntos públicos e a construção da confiança entre os povos. 
E, insistindo no axioma de Paulo VI do desenvolvimento como “o novo nome da paz”, conclui:
“É nossa responsabilidade tomar medidas concretas que promovam a paz e a segurança, permanecendo, porém, sempre atentos ao limite constituído por abordagens a curto prazo de problemas de segurança nacional e internacional”.
O discurso ao Conselho da Europa, em Estrasburgo, a 25 de novembro de 2014, fez-lhe dizer:
“O Beato Paulo VI definiu a Igreja ‘perita em humanidade’. No mundo, à imitação de Cristo, ela – apesar dos pecados dos seus filhos – nada mais procura que servir e dar testemunho da verdade. Nada mais, à exceção deste espírito, nos guia no apoio dado ao caminho da humanidade.”.
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz 2015, citou Paulo VI para bradar ao mundo que “não há verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exata do que é a vida humana”. E censura o lodaçal da indiferença:
“A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem esteja bem informado, ouça o rádio, leia os jornais ou veja programas de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade, mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão. Este é o comportamento de quem sabe, mas mantém o olhar, o pensamento e a ação voltados para si mesmo.”.
E, na Laudato Si’, manifesta a confiança nas capacidades do homem:
“Convém recordar sempre que o ser humano é ‘capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual’. O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração.”.
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Bagão Félix afirma que a ‘Populorum Progressio’ teve para si um impacto “muito grande” e muito o interessou como “estudante de economia e católico”, porque, como tema da política internacional, o tema do desenvolvimento dos povos era atual no seio das Nações Unidas. E explica, manuseando a sua primeira edição da PP em português e toda sublinhada:
“Eu tinha 18 anos quando saiu, estava no 2.º ano da Faculdade em Lisboa. Não havia praticamente máquinas de fotocópias ou muito pouco, não havia internet, mas havia estas edições.”.
Depois, atesta que o Papa “teve a coragem de o colocar [o tema do desenvolvimento] de maneira absolutamente clara, aliás na esteira da Doutrina Social da Igreja, que não é terceira via entre capitalismo e coletivismo, mas faz parte da Teologia Moral”. E considera que a proposta papal, por exemplo, para o regime português de António Salazar “era bastante fraturante”. Por outro lado, refere o contexto em que surgiu a Encíclica: com mais ou menos dificuldades, “com injustiças também muito notórias”, os países europeus, como França, Itália, Alemanha, descolonizaram “a bom gosto ou a mau gosto, ou contrafeitos”; e Portugal, para lá do Estado Português da Índia que tinha sido incluído na União Indiana, estava em guerra em África com os movimentos autonomistas nas colónias ultramarinas.
Neste contexto, Paulo VI logo no início da Encíclica faz a “clara distinção” entre colonização, “necessária no devir histórico”, e colonialismo, “doença da colonização”. Segundo Bagão Félix, documento de 1967 assinalava um tempo de “grande transformação no mundo”, particularmente em África com a independência de antigas colónias de vários países europeus, e vai ao encontro duma palavra-chave, a globalização, “curiosamente”, desenvolvida cerca de 50 anos depois por uma segunda ‘Populorum Pogressio’, a ‘Caritas In Veritate’, de Bento XVI. Realçando que “através dos títulos, percebemos a profunda atualidade que está enraizada nesta encíclica”, explica:
“Etimologicamente, ‘desenvolvimento’ é o contrário de envolvimento, “é desenvolvimento”, é libertação porque se está envolvido “numa malha, agrilhoados; e desenvolver é retirar essas marcas”.
Para Bagão Félix, aquando a publicação deste documento “não havia sequer” a noção do que hoje “anda nas bocas do mundo”, a globalização que, “ao contrário do que muita gente pensa não é o aumento das trocas comerciais”, mas a “erosão” da noção de tempo e de espaço nas relações económicas, culturais, mediáticas. Em 1967 não havia esta noção, mas existia um ponto “muito caro” à Doutrina Social da Igreja: “a destinação universal dos bens e da opção preferencial pelos últimos, os pobres, os mais desfavorecidos, no sentido não só económico mas a tal ideia de desenvolvimento”. Neste sentido, “Paulo VI foi visionário até do ponto de vista mais económico, da ciência económica”.
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Pedro Vaz Patto sustenta que celebrar o 50.º aniversário da PP tem significado particular para as comissões Justiça e Paz, pois a Encíclica anuncia a criação da estrutura que deu origem ao Pontifício Conselho da Justiça e da Paz (ora componente do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral) e, subsequentemente, às comissões Justiça e Paz nacionais e diocesanas.
Sobre a relevância e atualidade da PP, destaca a noção de desenvolvimento humano integral (o nome do referido dicastério), que explicita como o desenvolvimento de todos os homens e do homem todo. É ir ao encontro da aspiração a realizarconhecer e possuir mais, para ser mais. O crescimento económico só é positivo quando é instrumento para ser mais. O desenvolvimento, pessoal e comunitário é um dever que corresponde aos desígnios de Deus e pressupõe abertura ao Absoluto, porque “o homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem” (n.º 42). Esta noção de desenvolvimento foi retomada e aprofundada posteriormente na Caritas in Veritate e na Laudato Sì.
Continua evidente que o crescimento económico não gera, por si, o desenvolvimento humano integral. E é mais clara a noção de que dele faz parte o equilíbrio ecológico, sendo de relevar o valor do desenvolvimento humano, contra o ecologismo radical, que parece pô-lo em causa.
A confiança acrítica nas regras do mercado (que tem virtualidades) não leva ao desenvolvimento de todos os homens e gera desigualdades e injustiças. Isto, que era evidente há 50 anos, continua a sê-lo hoje (com as desigualdades a acentuarem-se como nunca, apesar da diminuição da pobreza absoluta).
E a PP reafirmou o princípio do destino universal  dos bens, ao qual devem subordinar-se os direitos de propriedade e de comércio livre. Por isso, segundo a Encíclica,
O supérfluo dos países ricos deve pôr-se ao serviço dos países pobres e a regra que existia outrora em favor dos mais próximos deve aplicar-se hoje à totalidade dos necessitados do mundo inteiro” (n.º 49).
Paulo VI resistiu à influência das teses neomalthusianas da redução  demográfica sem limites éticos, o que se revela plenamente justificado nesta época de “inverno demográfico” e quando o próprio governo chinês se apercebe dos malefícios da política do filho único. E é inteiramente atual a referência ao diálogo de civilizações:  “entre as civilizações como entre as pessoas, o diálogo sincero torna-se criador de fraternidade” (n.º 73). E, num tempo de “guerra mundial aos pedaços”, é pertinente a ideia da PP: “o desenvolvimento é o novo nome da paz” (n.º 76).
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Manuela Silva sublinha as profundas mudanças, registadas desde a publicação da PP, na sociedade, na economia, na tecnologia, na cultura; os progressos na corrida espacial; as ameaças e riscos inesperados; os novos desafios no domínio da geoestratégia política; etc… Todavia, reconhece que, ao revisitar a PP, se descobre a sua manifesta relevância e atualidade. Assim, aconselha a que, individualmente e em pequenos círculos de reflexão, “se aproveite a celebração do 50.º aniversário da sua publicação para uma leitura atenta e responsabilizante”; e deixa umas três notas com “o propósito de suscitar um maior desejo de aprofundar esta encíclica de Paulo VI”, que surge “em grande sintonia com a doutrina consagrada no Concílio Vaticano II”.
- Antes de mais, realça o conceito de desenvolvimento integral
O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo. (…) O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira.”.
Subjacentes a este conceito estão, a seu ver, duas traves mestras: a centralidade da pessoa humana (o homem todo) e a humanidade inteira (todos os homens) como o sujeito destinatário do desenvolvimento. (…). Assim, o desenvolvimento integral do ser humano não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da Humanidade.
- Depois, faz ressaltar o contributo dos cristãos e das comunidades eclesiais. Na verdade, a vocação cristã de presença no mundo tem de concretizar-se em iniciativas coletivas inovadoras inspiradas no Evangelho e na busca de um desenvolvimento integral, “que hoje adjetivamos também de humano e sustentável”. Aqui, as comunidades eclesiais (religiosas, paroquiais e outras) devem cuidar deste desafio, “a começar pela séria revisão dos modos de gestão das obras sociais em que estão envolvidas”. Com efeito, “os espaços eclesiais devem ser um lugar em que se faz ouvir a voz dos pobres e se presta atenção ao seu clamor”.
- Também a tarefa de transpor a doutrina da PP para a atualidade conduz à identificação de novos desafios, entre os quais, se destacam:
O “modelo económico e financeiro que, privilegiando o lucro a qualquer preço, gera exclusão e potencia danos ecológicos irreparáveis” (esta economia mata, denuncia Francisco); o “rumo da ciência e da técnica cujos progressos não se dirigem prioritariamente, como seria devido, para a satisfação de necessidades reais, sobretudo dos mais carenciados e vulneráveis”, mas “subverte valores fundamentais”; as “desigualdades de riqueza e de rendimento que se acumulam a ritmo vertiginoso e atingem níveis tais que estão a pôr em risco a coesão social e a democracia”; os “múltiplos contornos da crise de sustentabilidade ecológica”; a “problemática do acolhimento de migrantes e refugiados”; as “intoleráveis situações de guerra aos pedaços, de terrorismos vários e de escalada de armamento”, etc..
E termina com palavras de Paulo VI, oportunas e responsabilizantes:
(…) Cada homem é membro da sociedade: pertence à humanidade inteira. Não é apenas tal ou tal homem; são todos os homens que são chamados a este pleno desenvolvimento. (…) Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever.
Na verdade, o desenvolvimento integral é um benefício e um dever.
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Segundo Acácio Catarino, a PP “acha-se bem marcada pela inovação conciliar”, em especial pela Gaudium et Spes. “Amplamente difundida, profundamente estudada”, teve continuidade e atualizações pontifícias em mais duas encíclicas, publicadas no 20.º aniversário e no 42.º: a Sollicitudo Rei Socialis (SRS), de João Paulo II; e a Caritas in Veritate (CV), de Bento XVI. Também Francisco deu sequência à PP, sobretudo na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG), em 2013, e na encíclica Laudato Si` (LS), em 2015.
Apesar da repercussão da PP, a sua mensagem fundamental não foi assumida pela generalidade dos cristãos: na verdade, “ela convidava à assunção e à prática do desenvolvimento integral” e “considerava indispensável o papel dos leigos  na renovação da ordem temporal” – o que exige que a ação socioeclesial não se limite à assistência e à prestação de serviços sociais,  mas integre “a vertente económica e todas as outras dimensões do desenvolvimento”. E o papel dos cristãos leigos, na renovação da ordem temporal, postula que a assumam como “tarefa própria”,  através de “livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes” (...) da “hierarquia” (n.º 81). Ora, se os leigos se comprometeram (individualmente e em grupo) com o desenvolvimento na atividade pessoal, familiar, profissional, cultural, social, política e outras, esqueceram-se de:
- Assumir e animar, no interior da Igreja, as responsabilidades pelo desenvolvimento integral, em pluralismo, diálogo e comunhão; participar ativamente no desenvolvimento local, atribuindo prioridade às situações de carência mais grave; articular o desenvolvimento local, o regional, o nacional e o mundial; contribuir para a transformação do sistema capitalista; e preservar a dimensão transcendente, eterna, do desenvolvimento integral.
A PP cita, no n.º 14, o dominicano L.-J. Lebret, que percebeu o papel da laicalidade inserida na ordem temporal e que, liderando (e participando em)  programas de desenvolvimento em vários países, legou a herança de teorização e de práticas, largamente participadas, e abriu caminhos que interpelam e estimulam a procurar atualizá-los e complementá-los em cada dia e situação.
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Para José João Fernandes, a PP propõe o Desenvolvimento Integral como Condição da Paz.

Surgindo duas décadas após a conclusão da II Guerra Mundial, da fundação das Nações Unidas (1945) e da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), encontra o mundo dividido – uma estrutura bipolar que separava “dois blocos ideológicos” e um “processo de descolonização” que revelava já “a desigualdade económica promovida por um comércio internacional que privilegiava os países industrializados em detrimento dos países produtores de matérias-primas”.
Face a tal cenário, Paulo VI assume que a Igreja pretende oferecer o que “possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade” (n.º 13). E, nesta linha, aborda a questão social na sua dimensão internacional, propondo o “desenvolvimento integral e solidário como concretização do princípio do Bem Comum”. Na tradição aristotélico-tomista, o “Bem Comum” é o fim da comunidade e é, antes de mais, “autêntico bem”, correlativo à natureza humana e a todos os membros da comunidade. “Bem”, porque enriquece todos os seres humanos ao facilitar o desenvolvimento integral; e “comum”, porque “pode e deve ser procurado por todos, constituindo-se numa espécie de “produto social” destinado a ser participado por todos. 50 anos depois, somos interpelados a orientar a nossa ação, não em função do crescimento do produto interno bruto (PIB), mas deste “produto social”, devido a todos os seres humanos.
A grande novidade de Paulo VI é “o alargamento da responsabilidade dos poderes públicos da esfera nacional para a esfera internacional”. A PP acentua a importância dos acordos e convenções internacionais (n.os 61, 77) e vai mais longe, insistindo na construção de “uma nova ordem política mundial”. Com efeito, a cooperação internacional
“Exige instituições que a preparem, a coordenem, a orientem até que constitua uma ordem jurídica universalmente reconhecida (…) Quem não vê a necessidade de alcançar progressivamente a instauração de uma autoridade mundial, que possa atuar eficazmente no terreno jurídico e no da política?” (n.º 78).
Agora, aos problemas da paz e do risco de conflitos nucleares (ex: a península coreana), da pobreza e desigualdade, somam-se os riscos ambientais e das alterações climáticas, os migrantes e refugiados, o terrorismo, as violações dos mais elementares direitos humanos. E nenhum tem solução satisfatória na ação individual dos cidadãos ou dos Estados. Daí, a necessidade de instituições internacionais capazes de facilitar a governabilidade e o bem comum à escala global; daí, a urgência de reforma das Nações Unidas e a sua democratização.
O conceito de desenvolvimento de Paulo VI foi retomado pelos sucessivos Papas, em especial Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate (CV), no n.º 8, refere a intenção de “homenagear, retomar e atualizar os ensinamentos da Populorum Progressio” sobre o desenvolvimento humano integral. E, falando da caridade, Bento XVI avisa que esta “não é só o princípio das microrrelações, como as amizades, a família, o pequeno grupo, mas também as macrorrelações, como as relações sociais, económicas e políticas” (n.º 2). A esta luz, poderemos dizer “que não trabalha na promoção da paz quem se remete a uma caridade particular, de microrrelações, ignorando a necessidade de atuar, com justiça, sobre as condições sociais, económicas e políticas”.
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Já o artigo do L’Osservatore Romano’, acima referido, nos refere a PP como a Encíclica esquecida, como o seu autor. Porém, a Encíclica, da Páscoa de 1967, “suscitou no mundo um enorme clamor”, igualável aos contrastes que fez surgir, um ano e meio depois, “a Humanae vitae para o controlo natural dos nascimentos”. E foi sobre estes dois documentos que incidiu o solene balanço do Pontificado feito pelo próprio Montini a 29 de junho de 1978, segundo ele, quando “o decurso natural da nossa vida chega ao ocaso” (faleceu 40 dias mais tarde).
Nesse balanço, o Pontífice – tão distante no tempo como a PP – declarou que estas duas encíclicas pretendiam defender a vida humana “ameaçada, perturbada ou até suprimida”: uma escolha definida pelo Papa como “imprescindível no quadro do seu ensinamento para servir a verdade”. Logo a seguir ao Concílio, nova tomada de consciência das exigências da mensagem evangélica impôs que a Igreja se colocasse de outro modo ao serviço dos homens.  
Como sucede recorrentemente na tradição cristã, “antigo e novo misturam-se na Populorum progressio”, texto evangélico na sua raiz, mas que “sabe unir com eficácia, num olhar clarividente, a experiência pessoal de Montini, contributos do pensamento contemporâneo, o ensinamento social dos Papas e a visão de antigos autores cristãos”. Com efeito, segundo Ambrósio, o santo bispo de Milão citado na Encíclica, “a terra é dada a todos, e não apenas aos ricos”. O mesmo prelado esclarece que o direito de propriedade nunca deve danificar a utilidade comum. Esta é a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos!
O texto, concebido e amadurecido no início dos anos 60, vê com lucidez, que a questão social não é mera questão moral, mas tem uma dimensão mundial. O Papa menciona explicitamente as viagens feitas à América Latina e à África como cardeal e à Terra Santa, à Índia e a Nova Iorque, à sede da ONU, como sucessor de Pedro, que escolheu o nome de Paulo para explicar uma das afirmações mais incisivas da Encíclica – “Os povos da fome interpelam hoje de maneira dramática os povos da opulência” – e se declarar “advogado dos povos pobres”.
Meio século depois, a visão de Montini, em suas linhas gerais e na sua diagnose dramática e radical, permanece válida:
“O mundo está doente. O seu mal reside menos na delapidação dos recursos ou no seu açambarcamento por parte de alguns do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos.”.
Francisco repete-o incansavelmente – mesmo incompreendido por muitos – reavivando a memória de Paulo VI, o que poucos notam.
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Que estes diversificados testemunhos, mas convergentes na temática do desenvolvimento integral, induzam uma profícua releitura da Encíclica com vista à reflexão/ação/reflexão.

2017.03.27 – Louro de Carvalho

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