O semanário Ecclesia,
de 24 de março, insere um dossiê sobre a Encíclica Populorum Progressio (PP), de Paulo VI, cujo cinquentenário de publicação ocorreu a
26.
Desse dossiê, além dum texto da responsabilidade do editor,
subordinado ao título “Papa Francisco,
herdeiro da Populorum Progressio”,
constam testemunhos de António Bagão Félix, antigo Presidente da Comissão
Nacional Justiça e Paz (CNJP) e ex-Ministro da Segurança Social (de Durão Barroso) e das Finanças (de Santana Lopes), de Pedro Vaz Patto,
Presidente da CNJP, Manuela Silva, antiga Secretária de Estado do Plano e
Professora Jubilada do ISEG, da UL, Acácio F. Catarino, antigo Presidente da
Cáritas Portuguesa, João José Fernandes, Diretor Executivo da Oikos – Cooperação e Desenvolvimento, e g.m.v, no L’Osservatore
Romano’.
***
Francisco,
primeiro Papa das Américas, tem assumido a grande influência de Paulo VI na sua
vida. Por isso, o editor cita passagens da PP referidas no atual pontificado,
que mostram a importância que o Papa reconhece ao referido texto de 1967.
Assim,
na mensagem para o Dia Mundial das Migrações 2013, Montini enunciava assim
as aspirações dos homens de hoje:
“Ser
libertado da pobreza, ter garantido de modo seguro o próprio sustento, a saúde,
o emprego estável, ter uma maior participação nas responsabilidades, fora de
qualquer opressão e ser protegido de condições que ofendem a dignidade humana;
poder desfrutar de uma educação melhor; numa palavra, fazer conhecer e ter
mais, para ser mais” (PP, n.º 6).
Por isso, o
desenvolvimento não se reduz ao mero crescimento económico, obtido, muitas
vezes, sem tem em conta os mais fracos e indefesos.
Na
Evangelii Gaudium, frisa-se que o Reino, que se antecipa e cresce em
nós, abrange tudo, à luz do princípio de discernimento de Paulo VI sobre o
verdadeiro desenvolvimento: “Todos os homens e o homem todo”. E, para falarmos dos direitos, devemos alongar mais
o olhar, abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos e de outras regiões do
país e crescer numa solidariedade que leve todos os povos a “tornarem-se
artífices do seu destino”. Ademais, a paz não se limita à ausência de guerra,
fruto do equilíbrio precário das forças, mas constrói-se diariamente na busca da
ordem querida por Deus, portadora duma justiça mais perfeita entre os homens. Paz
que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos não tem futuro e
será sempre semente de conflitos e formas variadas de violência.
Na
mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, o Papa sustenta que “a
fraternidade é fundamento e caminho para a paz” e refere que as encíclicas
sociais dos Predecessores, neste sentido, oferecem ajuda valiosa,
exemplificando com as definições de paz da PP, de Paulo VI (segundo a qual o desenvolvimento
integral dos povos é o novo nome da paz), e da Sollicitudo Rei Socialis, de João Paulo II (a paz como opus solidaritatis,
fruto da solidariedade).
Porém, o Papa Montini afirma que “tanto as pessoas como as nações se devem
encontrar num espírito de fraternidade”.
Em seu discurso
aos membros do corpo diplomático a 13 de janeiro de 2014, o Papa argentino recorda
o conceito de paz acima exposto e diz que enforma o espírito que anima a ação da Igreja
em todo o mundo, através dos sacerdotes, missionários, fiéis leigos que, com
grande espírito de dedicação, se prodigalizam, além do mais, em múltiplas obras
de índole educativa, sanitária e assistencial, ao serviço dos pobres, doentes,
órfãos e quem quer que precise de ajuda e conforto.
Também em mensagem por ocasião da conferência
sobre o impacto humanitário das armas nucleares, 2014, o Papa declara:
A paz deve ser construída sobre a
justiça, o desenvolvimento socioeconómico, a liberdade, o respeito pelos
direitos humanos fundamentais, a participação de todos nos assuntos públicos e
a construção da confiança entre os povos.
E, insistindo
no axioma de Paulo VI do desenvolvimento como “o novo nome da paz”, conclui:
“É nossa responsabilidade tomar
medidas concretas que promovam a paz e a segurança, permanecendo, porém, sempre
atentos ao limite constituído por abordagens a curto prazo de problemas de
segurança nacional e internacional”.
O
discurso ao Conselho da Europa, em Estrasburgo, a 25 de novembro de 2014,
fez-lhe dizer:
“O Beato Paulo VI definiu a Igreja
‘perita em humanidade’. No mundo, à imitação de Cristo, ela – apesar dos
pecados dos seus filhos – nada mais procura que servir e dar testemunho da
verdade. Nada mais, à exceção deste espírito, nos guia no apoio dado ao caminho
da humanidade.”.
Na mensagem
para o Dia Mundial da Paz 2015,
citou Paulo VI para bradar ao mundo que “não há verdadeiro humanismo
senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exata
do que é a vida humana”. E censura o lodaçal da indiferença:
“A indiferença
para com o próximo assume diferentes fisionomias.
Há quem esteja bem informado, ouça o rádio, leia os jornais ou veja programas
de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de
rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade,
mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão. Este é o comportamento de
quem sabe, mas mantém o olhar, o pensamento e a ação voltados para si mesmo.”.
E, na Laudato
Si’, manifesta a confiança nas capacidades do homem:
“Convém recordar sempre que o ser
humano é ‘capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar
material, progresso moral e desenvolvimento espiritual’. O trabalho deveria ser
o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas
dimensões da vida: a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento
das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma
atitude de adoração.”.
***
Bagão
Félix afirma que a ‘Populorum Progressio’ teve para si um impacto “muito
grande” e muito o interessou como “estudante de economia e católico”, porque,
como tema da política internacional, o tema do desenvolvimento dos povos era
atual no seio das Nações Unidas. E explica, manuseando a sua primeira edição da
PP em português e toda sublinhada:
“Eu tinha 18 anos quando
saiu, estava no 2.º ano da Faculdade em Lisboa. Não havia praticamente máquinas
de fotocópias ou muito pouco, não havia internet, mas havia estas edições.”.
Depois,
atesta que o Papa “teve a coragem de o colocar [o tema do desenvolvimento] de maneira
absolutamente clara, aliás na esteira da Doutrina Social da Igreja, que não é
terceira via entre capitalismo e coletivismo, mas faz parte da Teologia Moral”.
E considera que a proposta papal, por exemplo, para o regime português de
António Salazar “era bastante fraturante”. Por outro lado, refere o contexto em
que surgiu a Encíclica: com mais ou
menos dificuldades, “com injustiças também muito notórias”, os países europeus,
como França, Itália, Alemanha, descolonizaram “a bom gosto ou a mau gosto, ou
contrafeitos”; e Portugal, para lá do Estado Português da Índia que tinha sido
incluído na União Indiana, estava em guerra em África com os movimentos
autonomistas nas colónias ultramarinas.
Neste
contexto, Paulo VI logo no início da Encíclica
faz a “clara distinção” entre colonização, “necessária no devir histórico”, e
colonialismo, “doença da colonização”. Segundo Bagão Félix, documento de 1967
assinalava um tempo de “grande transformação no mundo”, particularmente em
África com a independência de antigas colónias de vários países europeus, e vai
ao encontro duma palavra-chave, a globalização, “curiosamente”, desenvolvida
cerca de 50 anos depois por uma segunda ‘Populorum
Pogressio’, a ‘Caritas In Veritate’,
de Bento XVI. Realçando que “através dos títulos, percebemos a profunda
atualidade que está enraizada nesta encíclica”, explica:
“Etimologicamente,
‘desenvolvimento’ é o contrário de envolvimento, “é desenvolvimento”, é
libertação porque se está envolvido “numa malha, agrilhoados; e desenvolver é
retirar essas marcas”.
Para
Bagão Félix, aquando a publicação deste documento “não havia sequer” a noção do
que hoje “anda nas bocas do mundo”, a globalização que, “ao contrário do que
muita gente pensa não é o aumento das trocas comerciais”, mas a “erosão” da
noção de tempo e de espaço nas relações económicas, culturais, mediáticas. Em
1967 não havia esta noção, mas existia um ponto “muito caro” à Doutrina Social
da Igreja: “a destinação universal dos bens e da opção preferencial pelos
últimos, os pobres, os mais desfavorecidos, no sentido não só económico mas a
tal ideia de desenvolvimento”. Neste sentido, “Paulo VI foi visionário até do
ponto de vista mais económico, da ciência económica”.
***
Pedro Vaz
Patto sustenta que celebrar o 50.º aniversário da PP tem significado particular para as
comissões Justiça e Paz, pois a Encíclica anuncia a criação da estrutura
que deu origem ao Pontifício Conselho da
Justiça e da Paz (ora
componente do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral) e, subsequentemente, às comissões
Justiça e Paz nacionais e diocesanas.
Sobre a
relevância e atualidade da PP,
destaca a noção de desenvolvimento humano integral (o nome do
referido dicastério), que
explicita como o desenvolvimento
de todos os homens e do homem todo. É ir ao encontro da aspiração a realizar, conhecer e possuir
mais, para ser mais. O crescimento económico só é positivo
quando é instrumento para ser mais. O desenvolvimento, pessoal
e comunitário é um dever que corresponde aos desígnios de Deus e pressupõe abertura
ao Absoluto, porque “o homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar
contra o homem” (n.º 42). Esta noção de desenvolvimento foi retomada e
aprofundada posteriormente na Caritas in Veritate e na Laudato
Sì.
Continua
evidente que o crescimento económico não gera, por si, o desenvolvimento humano
integral. E é mais clara a noção de que dele faz parte o equilíbrio ecológico,
sendo de relevar o valor do desenvolvimento humano, contra o ecologismo radical,
que parece pô-lo em causa.
A confiança
acrítica nas regras do mercado (que tem virtualidades) não leva ao desenvolvimento de todos os homens e gera
desigualdades e injustiças. Isto, que era evidente há 50 anos, continua a sê-lo
hoje (com as
desigualdades a acentuarem-se como nunca, apesar da diminuição da pobreza
absoluta).
E a PP reafirmou
o princípio do destino universal dos bens, ao qual devem subordinar-se os
direitos de propriedade e de comércio livre. Por isso, segundo a Encíclica,
“O supérfluo dos países ricos deve
pôr-se ao serviço dos países pobres e a regra que existia outrora em
favor dos mais próximos deve aplicar-se hoje à totalidade dos necessitados do
mundo inteiro” (n.º 49).
Paulo VI
resistiu à influência das teses neomalthusianas da redução demográfica
sem limites éticos, o que se revela plenamente justificado nesta época de “inverno
demográfico” e quando o próprio governo chinês se apercebe dos malefícios
da política do filho único. E é inteiramente atual a referência ao diálogo de
civilizações: “entre as civilizações como entre as pessoas, o diálogo
sincero torna-se criador de fraternidade” (n.º 73). E, num tempo de “guerra
mundial aos pedaços”, é pertinente a ideia da PP: “o desenvolvimento é
o novo nome da paz” (n.º
76).
***
Manuela
Silva sublinha as profundas mudanças, registadas desde a publicação da PP, na
sociedade, na economia, na tecnologia, na cultura; os progressos na corrida
espacial; as ameaças e riscos inesperados; os novos desafios no domínio da geoestratégia
política; etc… Todavia, reconhece que, ao revisitar a PP, se descobre a sua
manifesta relevância e atualidade. Assim, aconselha a que, individualmente e em
pequenos círculos de reflexão, “se aproveite a celebração do 50.º aniversário
da sua publicação para uma leitura atenta e responsabilizante”; e deixa umas três
notas com “o propósito de suscitar um maior desejo de aprofundar esta encíclica
de Paulo VI”, que surge “em grande sintonia com a doutrina consagrada no
Concílio Vaticano II”.
- Antes de
mais, realça o conceito de desenvolvimento
integral:
“O desenvolvimento não se reduz
a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer
dizer, promover todos os homens e o homem todo. (…) O que conta para nós é o
homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira.”.
Subjacentes a
este conceito estão, a seu ver, duas traves mestras: a centralidade da pessoa
humana (o homem todo) e a humanidade inteira (todos os homens)
como o sujeito destinatário do desenvolvimento. (…). Assim, o desenvolvimento integral do ser humano
não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da Humanidade.
- Depois, faz ressaltar o contributo dos cristãos e das
comunidades eclesiais. Na verdade, a vocação cristã de presença no mundo tem de concretizar-se em
iniciativas coletivas inovadoras inspiradas no Evangelho e na busca de um
desenvolvimento integral, “que hoje adjetivamos também de humano e sustentável”.
Aqui, as comunidades eclesiais (religiosas, paroquiais e outras) devem cuidar deste desafio, “a começar pela séria revisão
dos modos de gestão das obras sociais em que estão envolvidas”. Com efeito, “os
espaços eclesiais devem ser um lugar em que se faz ouvir a voz dos pobres e se
presta atenção ao seu clamor”.
- Também a tarefa de transpor a doutrina da PP para a atualidade conduz
à identificação de novos desafios, entre os quais, se
destacam:
O “modelo económico e financeiro que,
privilegiando o lucro a qualquer preço, gera exclusão e potencia danos
ecológicos irreparáveis” (esta economia mata, denuncia Francisco); o
“rumo da ciência e da técnica cujos progressos não se dirigem prioritariamente,
como seria devido, para a satisfação de necessidades reais, sobretudo dos mais
carenciados e vulneráveis”, mas “subverte valores fundamentais”; as “desigualdades
de riqueza e de rendimento que se acumulam a ritmo vertiginoso e atingem níveis
tais que estão a pôr em risco a coesão social e a democracia”; os “múltiplos
contornos da crise de sustentabilidade ecológica”; a “problemática do
acolhimento de migrantes e refugiados”; as “intoleráveis situações de guerra
aos pedaços, de terrorismos vários e de escalada de armamento”, etc..
E termina com
palavras de Paulo VI, oportunas e responsabilizantes:
(…) Cada homem é membro da
sociedade: pertence à humanidade inteira. Não é apenas tal ou tal homem; são
todos os homens que são chamados a este pleno desenvolvimento. (…)
Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos
contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos
desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família
humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício,
mas também um dever.
Na verdade, o desenvolvimento integral é um benefício e
um dever.
***
Segundo Acácio Catarino, a PP “acha-se bem marcada pela inovação conciliar”, em especial
pela Gaudium et Spes. “Amplamente
difundida, profundamente estudada”, teve continuidade e atualizações
pontifícias em mais duas encíclicas, publicadas no 20.º aniversário e no 42.º:
a Sollicitudo Rei Socialis (SRS), de João Paulo II; e a Caritas
in Veritate (CV), de Bento XVI. Também Francisco deu
sequência à PP, sobretudo na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG), em 2013, e na
encíclica Laudato Si` (LS), em 2015.
Apesar da
repercussão da PP, a sua mensagem fundamental não foi assumida pela
generalidade dos cristãos: na verdade, “ela convidava à assunção e à prática do
desenvolvimento integral” e “considerava indispensável o papel dos leigos
na renovação da ordem temporal” – o que exige que a ação socioeclesial não se
limite à assistência e à prestação de serviços sociais, mas integre
“a vertente económica e todas as outras dimensões do desenvolvimento”. E o
papel dos cristãos leigos, na renovação da ordem temporal, postula que a
assumam como “tarefa própria”, através de “livres iniciativas e sem
esperar passivamente ordens e diretrizes” (...) da “hierarquia” (n.º 81). Ora, se
os leigos se comprometeram (individualmente e em grupo) com o desenvolvimento na atividade
pessoal, familiar, profissional, cultural, social, política e outras,
esqueceram-se de:
- Assumir e animar, no interior da
Igreja, as responsabilidades pelo desenvolvimento integral, em pluralismo,
diálogo e comunhão; participar ativamente no desenvolvimento local, atribuindo
prioridade às situações de carência mais grave; articular o desenvolvimento
local, o regional, o nacional e o mundial; contribuir para a transformação do
sistema capitalista; e preservar a dimensão transcendente, eterna, do
desenvolvimento integral.
A PP cita, no
n.º 14, o dominicano L.-J. Lebret, que percebeu o papel da laicalidade inserida
na ordem temporal e que, liderando (e participando em) programas de desenvolvimento em vários países, legou a
herança de teorização e de práticas, largamente participadas, e abriu caminhos
que interpelam e estimulam a procurar atualizá-los e complementá-los em cada
dia e situação.
***
Para José João Fernandes, a PP propõe o Desenvolvimento Integral como Condição da
Paz.
Surgindo duas
décadas após a conclusão da II Guerra Mundial, da fundação das Nações Unidas (1945) e da aprovação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), encontra o mundo dividido – uma estrutura bipolar que separava “dois
blocos ideológicos” e um “processo de descolonização” que revelava já “a
desigualdade económica promovida por um comércio internacional que privilegiava os países industrializados em detrimento
dos países produtores de matérias-primas”.
Face a tal cenário,
Paulo VI assume que a Igreja pretende oferecer o que “possui como próprio: uma
visão global do homem e da humanidade” (n.º 13). E, nesta linha, aborda a questão social
na sua dimensão internacional, propondo o “desenvolvimento integral e solidário
como concretização do princípio do Bem Comum”. Na tradição aristotélico-tomista,
o “Bem Comum” é o fim da comunidade e é, antes de mais, “autêntico bem”,
correlativo à natureza humana e a todos os membros da comunidade. “Bem”, porque
enriquece todos os seres humanos ao facilitar o desenvolvimento integral; e
“comum”, porque “pode e deve ser procurado por todos, constituindo-se numa
espécie de “produto social” destinado a ser participado por todos. 50 anos
depois, somos interpelados a orientar a nossa ação, não em função do
crescimento do produto interno bruto (PIB), mas deste “produto social”, devido a
todos os seres humanos.
A grande
novidade de Paulo VI é “o alargamento da responsabilidade dos poderes públicos
da esfera nacional para a esfera internacional”. A PP acentua a importância dos
acordos e convenções internacionais (n.os 61, 77) e vai mais longe, insistindo na construção de “uma
nova ordem política mundial”. Com efeito, a cooperação internacional
“Exige
instituições que a preparem, a coordenem, a orientem até que constitua uma
ordem jurídica universalmente reconhecida (…) Quem não vê a necessidade de
alcançar progressivamente a instauração de uma autoridade mundial, que possa
atuar eficazmente no terreno jurídico e no da política?” (n.º 78).
Agora, aos
problemas da paz e do risco de conflitos nucleares (ex: a península coreana), da pobreza e desigualdade,
somam-se os riscos ambientais e das alterações climáticas, os migrantes e
refugiados, o terrorismo, as violações dos mais elementares direitos humanos. E
nenhum tem solução satisfatória na ação individual dos cidadãos ou dos Estados.
Daí, a necessidade de instituições internacionais capazes de facilitar a
governabilidade e o bem comum à escala global; daí, a urgência de reforma das
Nações Unidas e a sua democratização.
O conceito de
desenvolvimento de Paulo VI foi retomado pelos sucessivos Papas, em especial
Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate (CV), no n.º 8, refere a intenção de “homenagear, retomar e
atualizar os ensinamentos da Populorum Progressio” sobre o
desenvolvimento humano integral. E, falando da caridade, Bento XVI avisa que
esta “não é só o princípio das microrrelações, como as
amizades, a família, o pequeno grupo, mas também as macrorrelações,
como as relações sociais, económicas e políticas” (n.º 2). A esta luz, poderemos dizer “que não trabalha na
promoção da paz quem se remete a uma caridade particular, de microrrelações,
ignorando a necessidade de atuar, com justiça, sobre as condições sociais,
económicas e políticas”.
***
Já o artigo do L’Osservatore Romano’, acima referido, nos refere a PP
como a Encíclica esquecida,
como o seu autor. Porém, a
Encíclica, da Páscoa de 1967, “suscitou
no mundo um enorme clamor”, igualável aos contrastes que fez surgir, um ano e
meio depois, “a Humanae vitae para o
controlo natural dos nascimentos”. E foi sobre estes dois documentos que
incidiu o solene balanço do Pontificado feito pelo próprio Montini a 29 de
junho de 1978, segundo ele, quando “o decurso natural da nossa vida chega ao
ocaso” (faleceu 40 dias
mais tarde).
Nesse
balanço, o Pontífice – tão distante no tempo como a PP – declarou que estas duas
encíclicas pretendiam defender a vida humana “ameaçada, perturbada ou até
suprimida”: uma escolha definida pelo Papa como “imprescindível no quadro do
seu ensinamento para servir a verdade”. Logo a seguir ao Concílio, nova tomada
de consciência das exigências da mensagem evangélica impôs que a Igreja se
colocasse de outro modo ao serviço dos homens.
Como sucede
recorrentemente na tradição cristã, “antigo e novo misturam-se na Populorum progressio”, texto evangélico na
sua raiz, mas que “sabe unir com eficácia, num olhar clarividente, a
experiência pessoal de Montini, contributos do pensamento contemporâneo, o
ensinamento social dos Papas e a visão de antigos autores cristãos”. Com
efeito, segundo Ambrósio, o santo bispo de Milão citado na Encíclica, “a terra é dada a todos, e não apenas aos ricos”. O
mesmo prelado esclarece que o direito de propriedade nunca deve danificar a
utilidade comum. Esta é a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos
grandes teólogos!
O
texto, concebido e amadurecido no início dos anos 60, vê com lucidez, que a
questão social não é mera questão moral, mas tem uma dimensão mundial. O Papa menciona
explicitamente as viagens feitas à América Latina e à África como cardeal e à
Terra Santa, à Índia e a Nova Iorque, à sede da ONU, como sucessor de Pedro,
que escolheu o nome de Paulo para explicar uma das afirmações mais incisivas da
Encíclica – “Os povos da fome interpelam hoje de maneira dramática os povos da
opulência” – e se declarar “advogado dos povos pobres”.
Meio século
depois, a visão de Montini, em suas linhas gerais e na sua diagnose dramática e
radical, permanece válida:
“O mundo
está doente. O seu mal reside menos na delapidação dos recursos ou no seu
açambarcamento por parte de alguns do que na falta de fraternidade entre os
homens e entre os povos.”.
Francisco
repete-o incansavelmente – mesmo incompreendido por muitos – reavivando a
memória de Paulo VI, o que poucos notam.
***
Que
estes diversificados testemunhos, mas convergentes na temática do
desenvolvimento integral, induzam uma profícua releitura da Encíclica com vista
à reflexão/ação/reflexão.
2017.03.27 – Louro
de Carvalho
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