É
verdade que não se devia ter necessidade de celebrar o Dia Internacional da Mulher. Não devia topar-se motivo para celebrar
num dia a condição feminina, uma condição humana tão similar da do homem (varão) – igualdade na diferença – na complementaridade
solidária. Mas não podemos ser hipócritas: temos que ler a História, a Sociedade
e a Política.
Por motivos que o bom senso não percebe, muitos varões
deliberaram que a mulher era inferior. E esta ideia propagou-se por toda a
Terra e galgou séculos e milénios de tal modo que ainda há energúmenos – como
Donald Trump, Temer, um eurodeputado polaco ou o Jorge Máximo (é de recordar o caso da UBER) – que acham que as mulheres não
passam de objetos de uso e descarte, excelentes no supermercado ou, ao menos,
seres menos capazes de discernimento e de trabalho, merecedoras de menores salários
ou que são como as leis e servem para ser violadas.
***
A Ministra da Justiça de Portugal recordou ontem, Dia Internacional da Mulher, uma
listagem das exigências que se faziam durante o regime anterior à revolução
abrilina.
Na verdade, em
sessão presidida pelo Presidente da República, Francisca Van Dunem referiu que
a reforma do direito da família, preparada por um grupo de trabalho presidido
por Isabel Magalhães Colaço e concluída há 40 anos, “operou uma alteração
radical no enquadramento jurídico do matrimónio, da filiação e da adoção,
eliminando da ordem jurídica todos os condicionamentos à capacidade civil da
mulher”.
Com efeito,
em 1974, apenas 25% dos trabalhadores eram mulheres, só 19% trabalhavam fora de
casa (86% eram
solteiras e 50% tinham menos de 24 anos); ganhavam
menos cerca de 40% que os homens. A lei do contrato individual do trabalho
permitia que o marido proibisse a mulher de trabalhar fora de casa. A mulher
não podia exercer o comércio sem autorização do marido. E, se ela exercesse atividades
lucrativas sem a concordância do marido, ele podia rescindir o contrato.
A mulher não
tinha acesso às seguintes carreiras: magistratura, diplomacia, instituição militar
e polícia (mais tarde passou a poder ingressar na PSP); e tinha dificuldade em ingressar noutras como a medicina, a engenharia e
a arquitetura. Certas profissões (por ex., enfermeira, hospedeira do ar)
implicavam a limitação de direitos, como o direito de casar; e uma professora primária
só podia casar com autorização do Ministro da Educação Nacional, que era
concedida se o futuro cônjuge tivesse um perfil social e económico compatível e
garantisse meios de subsistência à família.
O único
modelo de família aceite era o resultante do contrato de casamento. A idade do
casamento era de 16 anos para o homem e 14 anos para a mulher. A mulher, face
ao Código Civil, podia ser repudiada pelo marido no caso de não ser virgem na
altura do casamento. O casamento católico era indissolúvel (os casais constituídos
sob esta modalidade depois de 1940 não se podiam divorciar civilmente). A família era dominada pela figura do chefe de
família, que detinha o poder marital e paternal. Salvo casos excecionais, o
chefe de família era o administrador dos bens comuns do casal, dos bens
próprios da mulher e bens dos filhos menores. O Código Civil determinava que
“pertence à mulher durante a vida em comum, o governo doméstico”.
Fazia-se a distinção
entre filhos legítimos e ilegítimos (nascidos dentro e fora do casamento): os direitos de uns e outros eram diferentes. As mães
solteiras não tinham qualquer proteção legal. A mulher tinha legalmente o
domicílio do marido e era obrigada a residir com ele. O marido tinha o direito
de abrir a correspondência da mulher. Se o marido matasse a mulher em flagrante
adultério (ou a filha em flagrante corrupção), era
apenas passível de um desterro de seis meses. Até 1969, a mulher não podia
viajar para o estrangeiro sem autorização do marido.
Era proibida
a publicidade dos contracetivos. Os médicos da Previdência Social não estavam autorizados
a receitar contracetivos orais, a não ser a título terapêutico. E a mulher não
tinha o direito de tomar contracetivos contra a vontade do marido, sob pena de
este poder invocar o facto para fundamentar o pedido de divórcio ou a separação
judicial de pessoa e bens.
O aborto era
punido em qualquer circunstância, com pena de prisão de 2 a 8 anos.
Estimavam-se os abortos clandestinos em 100 mil/ano, sendo esta a terceira
causa de morte materna.
Cerca de 43%
dos partos ocorriam em casa, 17% dos quais sem assistência médica; e alguns
distritos não tinham maternidade.
Assim, nas
palavras da Ministra, a reforma de 1977 foi
uma reforma que “selou a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges,
acolhendo uma regra de consenso conjugal e de direção conjunta dos assuntos da
família”, suprimindo a figura do “chefe de família” e pondo termo legal ao
instituto do poder marital. E acentuou:
“Isso repercutiu-se, nomeadamente, na
disciplina atinente à administração dos bens, que até então pertencia ao marido,
na sua qualidade chefe de família, incluindo, sublinhe-se, a administração dos
bens próprios da mulher”.
Foi também fixada a idade núbil aos
16 anos para os indivíduos dos dois sexos, elevando em dois anos a idade da mulher,
a fim de garantir a igualdade formal e, sobretudo, para assegurar a maturidade
psíquica e maior espaço para a formação e profissionalização. Paralelamente,
foi suprimido regime dotal e voltou a ser objeto de revisão em 1977 a
disciplina do divórcio e da separação judicial das pessoas e bens, que fora alterada
em 1976, facilitando-se o divórcio por mútuo consentimento, independentemente
da idade dos cônjuges.
A governante aludiu
ainda ao avanço obtido na revisão com o princípio da não discriminação entre
filhos nascidos no matrimónio e fora dele e a possibilidade de estabelecimento
da filiação da mãe, a partir do nascimento, independentemente de ser casada ou
não. E frisou:
“Estas grandes
inovações, ousadas em 1977, tornaram-se `ius commune´ (direito comum), provando
o sucesso desta Reforma, empreendida por visionários a quem as gerações
seguintes devem o merecido aplauso, e reconhecimento”.
Na cerimónia, o Chefe de Estado condecorou
quatro juristas que contribuíram para a revisão do Código Civil em 1977, que
estabeleceu a igualdade entre homem e mulher no direito da família. Foram eles
Francisco Pereira Coelho, que não pôde estar presente, e, a título póstumo,
António de Almeida Santos, Isabel de Magalhães Collaço e Maria da Nazareth
Lobato Guimarães.
***
Este é o
aspeto positivo da evolução da condição da mulher em parceria igualitária com o
homem. Mas há muito caminho a percorrer. Se há mais mulheres que homens na
educação e ensino, na justiça e advocacia e mesmo na medicina – elas têm ainda
mais dificuldade que os homens em ascender ao topo, nomeadamente na administração
e gestão. Há 4 empresas no PSI 20 sem mulheres na administração, situação que
tem de mudar a partir de 1 de janeiro de 2008. A lei exigirá que as empresas
cotadas (na bolsa) tenham 20% de mulheres nas administrações – o que
agora só a Corticeira Amorim e a Sonae GPS cumprem. Em 2020, a fasquia aumenta para
os 33,3%.
A nível da
governação, o panorama não é famoso no atinente à participação das mulheres. Assim,
Ana Vitorino, Ministra do Mar, diz que é a segunda vez que chega ao Governo (em 2005,
ficou com a pastas dos Transportes), sendo que
as áreas que lhe foi dado gerir eram um deserto em dirigentes do sexo feminino,
mas garante que por onde passa tenta obter, pelo menos um terço de mulheres nas
administrações.
Mas pior do
que isto, em termos médios, para conseguirem igualar o salário dos homens, as
mulheres teriam de trabalhar 61 dias por ano a mais. Muitas mulheres, para
acederem a cargos de administração, têm de mostrar competências excecionais e fazer
esforços titânicos. Por outro lado, muitas para fazerem valer o mérito do exercício
de cargos mimetizam os homens no que eles têm de menos recomendável e, muitas
vezes, a igualdade de direitos e oportunidades traz à mulher uma sobrecarga de trabalhos
na articulação entre a profissão e a vida familiar.
Se olharmos
para o panorama internacional, a situação também não é famosa. No G20, o clube
dos poderosos, só figuram a alemã Merkel e a britânica May, tendo a derrota de
Hillary nos EUA constituído um rude golpe para as mulheres na política mundial.
É de relevar que no G20 se encontra a Arábia Saudita onde as mulheres nem
sequer podem conduzir.
A nível mundial,
há atualmente apenas 6 primeiras-ministras, sendo que a Merkel (alemã), que está há mais anos no poder, se seguem
Sheikh Hasina (Bangladesh), Erna Solberg
(Noruega), Saara
Kuugongelwa-Amadhila (Namíbia), Beata Szydlo (Polónia) e Theresa May (Reino Unido); e são uma dúzia as mulheres Presidentes da República – Kolinda
Grabar-Kitarovic (Croácia), Ellen Johnson Sirleaf (Libéria), Marie Louise Coleiro Preca (Malta), Michelle Bachelet (Chile), Atifete Jahjaga (Kosovo), Dalia Grybauskaite (Lituânia), Laimdota Straujuma (Letónia), Ewa kopacz (Polónia), Ameenah Gurib (Maurícia),
Hilda Cathy Heine (Ilhas Marshall), Kersti Kaljulaid (Estónia) e Tsai Ing-wen (Taiwan).Por
outro lado, continuam os costumes mortais contra as mulheres em vários países, questões
da burka e burkini, excisão feminina, exploração sexual, tráfico de mulheres e trabalho
escravo feminino. A Rússia regrediu na legislação sobre a violência doméstica –
violência doméstica no feminino que se torna flagelo social em muitos países,
nos quais se inclui Portugal.***Enquanto se evoca
o sofrimento das mulheres pioneiras dos direitos das mulheres nos Estados
Unidos (28 de fevereiro 1909) ou na
Rússia (23 de fevereiro de 1917), talvez seja oportuno escutar, em ano de centenário fatimita, a postuladora da causa de canonização dos beatos
Francisco Marto e Jacinta Marto, que aponta Nossa Senhora e a Irmã Lúcia como
as “duas grandes figuras femininas da Mensagem de Fátima”, que traduz o
Evangelho de uma “forma materna”. A Irmã Ângela Coelho sustenta que a Mensagem
de Fátima revela “uma forma materna” de exprimir as “verdades do
Evangelho”, traduzida também nas expressões que a Virgem diz a Lúcia ‘não tenhas medo, eu nunca te deixarei’,
ou ‘o meu coração será o teu refúgio.
E assegura que Lúcia revela nos seus escritos que não é indiferente à
valorização que a Igreja fez da mulher no Concílio Vaticano II e também “ao
atribuir o título de doutora da Igreja à reformadora do Carmelo Teresa de
Ávila”. Com efeito, Ângela Coelho refere:
Talvez ao Dia Internacional da Mulher faça bem a reflexão sobre a dimensão espiritual, antropológica e cósmica da mulher e do seu papel no cuidado do Planeta como a Casa Comum.
Talvez ao Dia Internacional da Mulher faça bem a reflexão sobre a dimensão espiritual, antropológica e cósmica da mulher e do seu papel no cuidado do Planeta como a Casa Comum.
“A Irmã Lúcia vibra nos seus escritos quando Paulo VI atribuiu o
título de doutora da Igreja a Santa Teresa de Ávila por perceber que a mulher
tem a missão dentro da Igreja, pela participação do sacerdócio comum dos fiéis,
pelo batismo, de anunciar o Evangelho, a Boa Nova”.
2017.03.09 – Louro de Carvalho
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