quinta-feira, 2 de março de 2017

Uma iniciativa marcada por intoleráveis tribulações

Cidade Global – Lisboa do Renascimento é a exposição que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tinha planeado para o último trimestre de 2016 e que só foi inaugurada na tarde de 23 de fevereiro de 2017 pelo Ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, para ficar patente ao público apenas durante mês e meio (24 de fevereiro a 9 de abril), mercê dos compromissos já assumidos com os Museus do Vaticano.
Os compromissos com o Vaticano têm a ver com uma mostra que os seus Museus pretendem patentear em Lisboa por ocasião da visita do Papa Francisco a Fátima no próximo mês de maio, no âmbito do centenário fatimita, como declarou a nova Diretora dos Museus Vaticanos, Barbara Jatta, em conferência de imprensa no passado dia 12 de dezembro.
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A história desta exposição começou em 1866, num dia de abril, quando o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti saiu de sua casa em Chelsea (Londres) para avaliar um quadro que vira numa pequena loja de antiguidades. O mundo da arte britânico tinha despertado para a pintura espanhola e os colecionadores procuravam trabalhos de grandes mestres, como El Greco, Velázquez e Goya. Apesar de não reconhecer a cidade representada no predito quadro, Rossetti percebeu a sua origem ibérica.
Entretanto, 150 depois, as historiadoras Annemarie Jordan Gschwens e Kate identificaram a pintura que Rossetti comprou (dividida em duas ainda no século XIX) como representando uma vista da Rua Nova dos Mercadores, que não escapou ao flagelo destruidor do Terramoto de 1755. É, pois, uma notável representação da principal artéria comercial da Lisboa quinhentista, “repleta de mercadores, saltimbancos, músicos, vendedores ambulantes, cavaleiros, joias, sedas, especiarias, animais exóticos e outras maravilhas importadas de África, do Brasil, da Ásia” (cf site do MNAA).
Assim, é natural que o grande objetivo da exposição de 250 peças seja a reconstituição do coração da cidade mais global da Europa do Renascimento.
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Depois de o evento ter sofrido sucessivos atrasos, surgiram à última da hora, pelos vistos sem fundamento sólido, suspeitas sobre a autenticidade de duas obras que estão na exposição, “Cidade Global – Lisboa no Renascimento” ora inaugurada.
Segundo António Filipe Pimentel, Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga e Subdiretor-Geral do Património Cultural por inerência, isto “faz parte dos percalços administrativos” e “tem que ver com as circunstâncias em que trabalham os museus da DGPC [Direção Geral do Património Cultural]”.  Referindo, que a DGPC é uma “máquina pesada”, garantiu estar a trabalhar com o Ministério da Cultura “para mudar este mecanismo obsoleto”. Uma das razões que tornam pesada esta máquina é a logística do transporte de obras de arte, um dos fatores que impediram o cumprimento do calendário previsto. Depois, foram 80 as entidades – públicas e privadas – que emprestaram peças para Cidade Global. Por exemplo, a considerada peça-estrela, a vista da Rua Nova dos Mercadores, “gatilho da exposição”, veio de Londres e pertence à Society of Antiquaries de Londres, em Kelmscott Manor.
Além disso, esta é uma das obras sobre cuja autenticidade recaiu a suspeita em virtude de uma notícia veiculada pelo semanário Expresso. O historiador João Alves Dias, citado pelo predito semanário, avançava que o quadro identificado em 2009 “é um quadro forjado no século XX a imitar o passado”, pelo que, alegadamente, não poderia ter feito parte do espólio do pintor Dante Gabril Rossetti (1828-1882).
Porém, Filipe Pimentel contrapõe com as investigações das comissárias da exposição Kate Lowe e Annemarie Jordan, as primeiras a identificarem esta vista como pertencente a Lisboa, e com o artigo publicado pela historiadora Julia Dudkiewicz no The British Art Journal, intitulado “Dante Gabriel Rossetti’s collection of Old Masters at Kelmscott Manor”.
A historiadora analisou o testamento de May Morris, filha de William Morris e herdeira de Kelmscott Manor, que inclui uma lista de 220 objetos doados à Universidade de Oxford, com a casa, e refere:
“Nessa lista, com descrições dos vários itens, que englobam proveniências e localização na casa, surgem os dois quadros representando a Rua Nova dos Mercadores: Duas imagens de cenas de uma cidade, parte das coisas de Dante Gabriel Rossetti”.
Por outro lado, a já referida Annemarie Jordan Gschwend, do Centro de História de Além Mar, na Suíça, explicitou que, após a descoberta, a obra foi requisitada para uma exposição no Museu Rietberg, que patrocinou o seu restauro. A restauradora situou a obra no século XVI depois de analisar a sua pigmentação e remeteu para a leitura do livro “The Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon”, editado em 2015 com a Fundação Calouste Gulbenkian.
E, em relação à obra Chafariz d’El Rey (adquirida pelo empresário Joe Berardo), Pimentel admite que não foi produzido “um exaustivo estudo monográfico, material e iconográfico”, mas a obra “é inquestionavelmente pintura antiga”, é conhecida e, em finais do século XIX, pertencia à coleção do conde Adanero, de Madrid. Mais:
“Identificada como uma cena urbana, foi fotografada cerca de 1940 pela Casa Moreno/Archivo de Arte Español. [E] foi reconhecida como representando o Chafariz d’el-Rei no antiquário madrileno, Caylus Anticuarios, e divulgada em Portugal por Vítor Serrão em 1998”.
Também o historiador de arte Fernando Batista Pereira, que integrou a organização da exposição “Os Negros em Portugal, séculos XV a XIX, atesta a autenticidade da obra, referindo que “são cenas irónicas, pícaras da vida de Lisboa”, e acreditando tratar-se da visão dum artista de fora em Lisboa, mas provavelmente executada em Lisboa, pois os exames feitos revelam que “a superfície da tela e a preparação técnica têm afinidades com o que se fazia na Península Ibérica”.
Já Anísio Franco, historiador de arte e conservador do MNAA, tem dúvidas na datação, que põe “entre 1590 e 1630”, mas não põe em causa a autenticidade da obra, assegurando que “[o quadro] está a descrever uma coisa que só existia antes do terramoto”.
E Pimentel diz tratar-se pintura tem sido mostrada por várias vezes, “reproduzida e comentada nos respetivos catálogos”. Por outro lado, elenca as referências, sublinhado a participação do historiador Diogo Ramada Curto – o alegado crítico do Chafariz d’El Rey – em duas delas: “Os Negros em Portugal. Séculos XV a XIX”, Lisboa, Mosteiro dos Jerónimos, 1999, com comissariado de Didier Lahon e Maria Cristina Neto; “Encompassing the Globe. Portugal and the World in the 16th & 17th Centuries”, Washington: Smithsonian Institution, 2007, editado por Jay A Levenson, com a colaboração de Diogo Ramada Curto e Jack Turner; “Autour du Globe. Le Portugal dans le monde aux XVIe et XVIIe siècles”, Bruxelas, Palais des Beaux-Arts, 2007-8, com comissariado de Jay A. Lavenson, com a colaboração de Jean-Michel Massing, Nuno Vassallo e Silva, Regina Krahl, Diogo Ramada Curto e James Ulak; e “Portugal e o Mundo nos Séculos XVI e XVII”, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2009, com comissariado de Jay A. Levenson, Jean Michel Massing, Julian Raby, Nuno Vassallo e Silva, James Ulak e Regina Krahl.
Todavia, Pimentel diz estar aberta a possibilidade de se fazerem exames laboratoriais às obras, “desde que os proprietários queiram”, adiantando, porém, que “é preciso saber se se consegue avançar mais do que aquilo que já foi feito” – papel dos historiadores de arte.
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Sobre a exposição propriamente dita, Kate Lowe diz que “é a prova de como o mundo se passava em Lisboa”. A historiadora de arte, que trabalha na Universidade Queen Mary, estava no Museu Britânico a preparar uma exposição sobre Shakespeare quando uma colega lhe mostrou uma fotocópia com a vista da Rua Nova dos Mercadores. Embora se dedique aos estudos sobre África, achou poder tratar-se de Lisboa, o que confirmou com a outra comissária. E Annemarie Jordan também fala da cidade onde tudo acontecia junto ao rio, incluindo o comércio de animais exóticos.  
Catarina de Áustria, já casada com D. João III, enviou animais exóticos de presente para a família na Alemanha e em Viena. E o rinoceronte embalsamado do Museu de História Natural que aqui aparece tem a sua razão de ser: “existem descrições de como um rinoceronte nadava no Tejo”. E Filipe II, ao tomar Portugal, mandou para Madrid um elefante e a rinoceronte Abada que se mostrava, cobrando bilhete, em Madrid. Vivia naquela que é hoje a Calle Abada.
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Tudo isto é típico do português: o hipercriticismo fora de tempo, pois, por exemplo, qualquer um dos quadros da polémica não foi desenterrado para esta exposição; a desconfiança sobre quem não é da nossa escola ou academia; o excessivo peso da burocracia, alegadamente por questões técnicas e de segurança, quando, muitas vezes, aquilo de que se trata é da guerrilha de competências entre departamentos estatais e falta de competência orçamental; e a falta de gestão dos compromissos.
Sobre este ponto, não duvido da importância da exposição em Lisboa por ocasião da visita papal a Fátima, mas tinha de se encontrar forma de garantir a perdurabilidade da mostra da exposição “Cidade Global – Lisboa no Renascimento”, dada a pertinência, a raridade e o apreço pela mobilização das 80 entidades, acima referida. Lisboa – e talvez o próprio MNAA – não é tão minúscula que não possa albergar mais que uma relevante exposição temporária.
Entregar por hipótese “Cidade Global – Lisboa no Renascimento” ao Porto, por exemplo, pode ser simpático e revestir-se de utilidade prática, mas perde pela simbologia. O Porto pode dizer-nos tanto ou mais que Lisboa, mas as suas vivências são diferentes.
Mas Deus dá as nozes a quem não tem dentes. Só que nos esquecemos de que também escreve direito por linhas tortas. E um país só pode ser grande se tiver cidadãos grandes.

2017.03.02 – Louro de Carvalho

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