“Cidade
Global – Lisboa do Renascimento” é a exposição que o Museu Nacional de
Arte Antiga (MNAA) tinha planeado para o último
trimestre de 2016 e que só foi inaugurada na tarde de 23 de fevereiro de 2017
pelo Ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, para ficar patente ao público
apenas durante mês e meio (24 de fevereiro a 9 de abril), mercê dos compromissos já assumidos com os Museus do
Vaticano.
Os compromissos com o Vaticano têm a ver com uma
mostra que os seus Museus pretendem patentear em Lisboa por ocasião da visita
do Papa Francisco a Fátima no próximo mês de maio, no âmbito do centenário
fatimita, como declarou a nova Diretora dos
Museus Vaticanos, Barbara Jatta, em conferência de imprensa no passado dia 12
de dezembro.
***
A história desta exposição começou em 1866, num dia de
abril, quando o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti saiu de sua casa em
Chelsea (Londres) para avaliar um quadro que vira
numa pequena loja de antiguidades. O mundo da arte britânico tinha despertado
para a pintura espanhola e os colecionadores procuravam trabalhos de grandes mestres,
como El Greco, Velázquez e Goya. Apesar de não reconhecer a cidade representada
no predito quadro, Rossetti percebeu a sua origem ibérica.
Entretanto, 150 depois, as historiadoras Annemarie
Jordan Gschwens e Kate identificaram a pintura que Rossetti comprou (dividida em duas ainda no século XIX) como representando uma vista da Rua
Nova dos Mercadores, que não escapou ao flagelo destruidor do Terramoto de
1755. É, pois, uma notável representação da principal artéria comercial da
Lisboa quinhentista, “repleta de mercadores, saltimbancos, músicos, vendedores
ambulantes, cavaleiros, joias, sedas, especiarias, animais exóticos e outras
maravilhas importadas de África, do Brasil, da Ásia” (cf site do MNAA).
Assim, é natural que o grande objetivo da exposição de
250 peças seja a reconstituição do coração da cidade mais global da Europa do
Renascimento.
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Depois de o evento ter sofrido sucessivos atrasos,
surgiram à última da hora, pelos vistos sem fundamento sólido, suspeitas sobre
a autenticidade de duas obras que estão na exposição, “Cidade Global – Lisboa no Renascimento” ora inaugurada.
Segundo António Filipe Pimentel, Diretor do Museu Nacional de
Arte Antiga e Subdiretor-Geral do Património Cultural por inerência, isto “faz parte
dos percalços administrativos” e “tem que ver com as circunstâncias em que
trabalham os museus da DGPC [Direção Geral do Património Cultural]”. Referindo, que a
DGPC é uma “máquina pesada”, garantiu estar a trabalhar com o Ministério da
Cultura “para mudar este mecanismo obsoleto”. Uma das razões que tornam pesada
esta máquina é a logística do transporte de obras de arte, um dos fatores que
impediram o cumprimento do calendário previsto. Depois, foram 80 as entidades –
públicas e privadas – que emprestaram peças para Cidade Global. Por exemplo, a
considerada peça-estrela, a vista da Rua Nova dos Mercadores, “gatilho da
exposição”, veio de Londres e pertence à Society of Antiquaries de Londres, em
Kelmscott Manor.
Além disso, esta é uma das obras sobre cuja autenticidade recaiu
a suspeita em virtude de uma notícia veiculada pelo semanário Expresso. O historiador João
Alves Dias, citado pelo predito semanário, avançava que o quadro identificado
em 2009 “é um quadro forjado no século XX a imitar o passado”, pelo que,
alegadamente, não poderia ter feito parte do espólio do pintor Dante Gabril
Rossetti (1828-1882).
Porém, Filipe Pimentel contrapõe com as investigações das
comissárias da exposição Kate Lowe e Annemarie Jordan, as primeiras a identificarem
esta vista como pertencente a Lisboa, e com o artigo publicado pela
historiadora Julia Dudkiewicz no The
British Art Journal, intitulado “Dante Gabriel Rossetti’s collection of Old
Masters at Kelmscott Manor”.
A historiadora analisou o testamento de May Morris, filha de
William Morris e herdeira de Kelmscott Manor, que inclui uma lista de 220 objetos
doados à Universidade de Oxford, com a casa, e refere:
“Nessa
lista, com descrições dos vários itens, que englobam proveniências e
localização na casa, surgem os dois quadros representando a Rua Nova dos
Mercadores: Duas imagens de cenas de uma
cidade, parte das coisas de Dante Gabriel Rossetti”.
Por outro lado, a já referida Annemarie Jordan Gschwend, do
Centro de História de Além Mar, na Suíça, explicitou que, após a descoberta, a
obra foi requisitada para uma exposição no Museu Rietberg, que patrocinou o seu
restauro. A restauradora situou a obra no século XVI depois de analisar a sua
pigmentação e remeteu para a leitura do livro “The
Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon”, editado em 2015 com a Fundação
Calouste Gulbenkian.
E, em relação à obra Chafariz
d’El Rey (adquirida pelo empresário Joe Berardo), Pimentel
admite que não foi produzido “um exaustivo estudo monográfico, material e
iconográfico”, mas a obra “é inquestionavelmente pintura antiga”, é conhecida
e, em finais do século XIX, pertencia à coleção do conde Adanero, de Madrid. Mais:
“Identificada
como uma cena urbana, foi fotografada cerca de 1940 pela Casa Moreno/Archivo de
Arte Español. [E] foi reconhecida como representando o Chafariz d’el-Rei no
antiquário madrileno, Caylus Anticuarios, e divulgada em Portugal por Vítor
Serrão em 1998”.
Também o historiador de arte Fernando Batista Pereira, que
integrou a organização da exposição “Os
Negros em Portugal, séculos XV a XIX”, atesta a autenticidade da obra, referindo
que “são cenas irónicas, pícaras da vida de Lisboa”, e acreditando tratar-se da
visão dum artista de fora em Lisboa, mas provavelmente executada em Lisboa,
pois os exames feitos revelam que “a superfície da tela e a preparação técnica
têm afinidades com o que se fazia na Península Ibérica”.
Já Anísio
Franco, historiador de arte e conservador do MNAA, tem dúvidas na datação, que
põe “entre 1590 e 1630”, mas não põe em causa a autenticidade da obra, assegurando
que “[o quadro] está a descrever uma coisa que só existia antes do terramoto”.
E Pimentel diz
tratar-se pintura tem sido mostrada por várias vezes, “reproduzida e comentada
nos respetivos catálogos”. Por outro lado, elenca as referências, sublinhado a
participação do historiador Diogo Ramada Curto – o alegado crítico do Chafariz
d’El Rey – em duas delas: “Os Negros em Portugal. Séculos XV
a XIX”, Lisboa, Mosteiro
dos Jerónimos, 1999, com comissariado de Didier Lahon e Maria Cristina
Neto; “Encompassing the Globe. Portugal and the World in the 16th &
17th Centuries”,
Washington: Smithsonian Institution, 2007, editado por Jay A Levenson, com a
colaboração de Diogo Ramada Curto e Jack Turner; “Autour du Globe. Le
Portugal dans le monde aux XVIe et XVIIe siècles”, Bruxelas, Palais des Beaux-Arts, 2007-8, com comissariado de
Jay A. Lavenson, com a colaboração de Jean-Michel Massing, Nuno Vassallo e
Silva, Regina Krahl, Diogo Ramada Curto e James Ulak;
e “Portugal e o Mundo nos Séculos XVI e XVII”, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2009, com comissariado
de Jay A. Levenson, Jean Michel Massing, Julian Raby, Nuno Vassallo e Silva,
James Ulak e Regina Krahl.
Todavia, Pimentel diz estar aberta a possibilidade de se
fazerem exames laboratoriais às obras, “desde que os proprietários queiram”,
adiantando, porém, que “é preciso saber se se consegue avançar mais do que
aquilo que já foi feito” – papel dos historiadores de arte.
***
Sobre a exposição propriamente dita, Kate Lowe diz que “é a
prova de como o mundo se passava em Lisboa”. A historiadora de arte, que
trabalha na Universidade Queen Mary, estava no Museu Britânico a preparar uma
exposição sobre Shakespeare quando uma colega lhe mostrou uma fotocópia com a
vista da Rua Nova dos Mercadores. Embora se dedique aos estudos sobre África,
achou poder tratar-se de Lisboa, o que confirmou com a outra comissária. E Annemarie
Jordan também fala da cidade onde tudo acontecia junto ao rio, incluindo o
comércio de animais exóticos.
Catarina de Áustria, já casada com D. João III, enviou animais
exóticos de presente para a família na Alemanha e em Viena. E o rinoceronte
embalsamado do Museu de História Natural que aqui aparece tem a sua razão de
ser: “existem descrições de como um rinoceronte nadava no Tejo”. E Filipe II, ao
tomar Portugal, mandou para Madrid um elefante e a rinoceronte Abada que se mostrava, cobrando bilhete,
em Madrid. Vivia naquela que é hoje a Calle
Abada.
***
Tudo isto é típico do português: o hipercriticismo fora de tempo,
pois, por exemplo, qualquer um dos quadros da polémica não foi desenterrado
para esta exposição; a desconfiança sobre quem não é da nossa escola ou academia;
o excessivo peso da burocracia, alegadamente por questões técnicas e de
segurança, quando, muitas vezes, aquilo de que se trata é da guerrilha de competências
entre departamentos estatais e falta de competência orçamental; e a falta de
gestão dos compromissos.
Sobre este ponto, não duvido da importância da exposição em
Lisboa por ocasião da visita papal a Fátima, mas tinha de se encontrar forma de
garantir a perdurabilidade da mostra da exposição “Cidade Global – Lisboa no Renascimento”, dada a pertinência, a
raridade e o apreço pela mobilização das 80 entidades, acima referida. Lisboa –
e talvez o próprio MNAA – não é tão minúscula que não possa albergar mais que
uma relevante exposição temporária.
Entregar por hipótese “Cidade
Global – Lisboa no Renascimento” ao Porto, por exemplo, pode ser simpático
e revestir-se de utilidade prática, mas perde pela simbologia. O Porto pode dizer-nos
tanto ou mais que Lisboa, mas as suas vivências são diferentes.
Mas Deus dá as nozes a quem não tem dentes. Só que nos esquecemos
de que também escreve direito por linhas tortas. E um país só pode ser grande
se tiver cidadãos grandes.
2017.03.02 –
Louro de Carvalho
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