Marcelo Rebelo de Sousa cumpriu, a 9 de março, um
ano de mandato caraterizado por um estilo “muito interventivo”, segundo ele
próprio, de proximidade em relação aos cidadãos de desdramatização e procura de
convergências – com o que granjeou alargadas simpatias.
Porém, a ambição, enunciada desde a campanha para as
presidenciais, de estabelecer pontes e promover consensos de regime, unindo os
“dois países políticos” resultantes das últimas legislativas, ainda está longe
de se concretizar. Com efeito, Na campanha para as presidenciais de 2016, o
candidato apresentou-se como um moderador situado na “esquerda da direita” e
defendia acordos de regime em áreas como a educação, a saúde, a segurança
social, a justiça (sugerindo que os operadores na área da Justiça se
antecipassem aos partidos) e a
política europeia – linha discursiva que manteve neste primeiro ano em funções
como Presidente da República, com ênfase particular na importância da
concertação social.
Se a tensão social se esbateu significativamente com a
ação de Marcelo, o Governo do PS, com o apoio parlamentar dos partidos à
esquerda, e a desfeita coligação PSD/CDS-PP relacionam-se num clima de
crispação política, que atingiu proporções excessivas na polémica entre o Ministro
das Finanças, Mário Centeno, e a antiga administração da Caixa Geral de
Depósitos, liderada por António Domingues, bem como recentemente com o não
tratamento do êxodo dos 10 mil milhões de euros para paraísos fiscais entre
2011 e 2015.
E Marcelo viu-se seriamente envolvido no tema da CGD,
que levou PSD e CDS-PP a constituírem uma nova comissão parlamentar de
inquérito, tendo sido visado diretamente pelo porta-voz do PS, João Galamba,
que lhe apontou o estar “profundamente implicado” no caso, e pelo próprio PSD,
que o acusou de excessivamente colado ao Governo.
O Presidente recebeu o Ministro das Finanças em Belém
e emitiu uma nota aceitando a posição do Primeiro-Ministro de manter a
confiança em Mário Centeno, “atendendo ao estrito interesse nacional, em
termos de estabilidade financeira”.
Eleito à 1.ª volta no ato eleitoral de janeiro de 2016,
aos 67 anos, com 52% dos votos, o ex-comentador político e professor
universitário de direito indicou como princípios para o seu mandato
presidencial: “afetos, proximidade, simplicidade e estabilidade”. Após a
tomada de posse, face a um quadro de bipolarização resultante das eleições legislativas
de 4 de outubro de 2015, o antigo presidente do PSD considerou que o Governo
minoritário do PS devia cumprir o seu mandato, e tem sido, no essencial,
convergente com o executivo de António Costa. Por isso, a sua relação com o PSD
de Passos Coelho tem registado alguma tensão. Demarcou-se da ideia da badalada falta
de legitimidade do atual Governo e do discurso negativo da oposição sobre a
trajetória das contas públicas, embora com reparos sobre a necessidade de
captação de mais investimento e de promoção do crescimento económico,
insistindo que a economia portuguesa precisa de crescer acima de 2%.
E, apesar de vir da mesma área política, Marcelo distinguiu-se
do antecessor, Aníbal Cavaco Silva, no contacto próximo e informal com os
cidadãos e na agenda intensa e presença mediática constante. E também mostrou
diferenças na interpretação da função presidencial, com um acompanhamento
permanente e ativo da governação e da atividade da Assembleia da República,
ouvindo regularmente – pelo menos de 3 em 3 meses – os partidos, as
confederações patronais e sindicais e o Conselho de Estado, tendo promovido,
neste último a audição dum estrangeiro, o Presidente do BCE.
A sua atuação já motivou algumas críticas e, no início
de dezembro, Rebelo de Sousa, numa visita a uma escola, justificou o seu
entendimento do exercício do cargo e os contactos diretos com outros membros do
Governo que não o primeiro-ministro, explicitando:
“Depende
muito do Primeiro-Ministro o ver com bons olhos ou não contactos diretos entre
o Presidente e membros do Governo e, às vezes, até solicitar. Isto pode ser
útil. Por exemplo, há um problema financeiro, e o Ministro das Finanças está em
melhores condições para explicar do que o Primeiro-Ministro, de imediato. Eu
acho que tem vantagens, porque o Presidente, sabendo quais são os limites dos
seus poderes, está mais bem informado, e informado na hora.”.
O Presidente da República ainda não recorreu ao
Tribunal Constitucional (TC) e
utilizou por três vezes o poder de veto político em relação a dois diplomas da
Assembleia da República (sobre a gestação de substituição e a estatização dos
transportes do Porto), que
acabariam por ser promulgados após as alterações introduzidas pelos deputados,
e a um decreto do Governo sobre acesso a informação bancária.
Marcelo definiu-se como um Presidente que não recorre
ao TC como por “uma espécie de defesa”, mas que exerce “sem complexo nenhum” o
veto político, perante fortes divergências.
A nível externo, realizou 21 deslocações ao
estrangeiro, três das quais em visitas de Estado, a primeira em maio, a
Moçambique, e as outras em outubro, à Suíça e a Cuba, onde se encontrou
com Fidel Castro, um mês antes da morte do histórico líder cubano. Salientam-se
ainda as inéditas comemorações do 10 de
Junho em Paris com os portugueses residentes em França, juntamente com o
Primeiro-Ministro, e a deslocação ao Brasil, em agosto, para a abertura dos
Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. As suas saídas do país foram quase todas de
curta duração, para encontros institucionais ou cimeiras, e a maioria a
capitais de países europeus: Vaticano, Espanha, Itália, Alemanha e Reino Unido.
Mas esteve no Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França), e foi recebido em Casablanca pelo rei de Marrocos.
Além disso, viajou ainda três vezes para assistir a jogos do Euro 2016, em
França, incluindo a final, que Portugal venceu.
Em território nacional, realizou três edições duma
iniciativa de presidência aberta ou ambulante, a que chamou “Portugal Próximo”,
no Alentejo, em Trás-os-Montes e na Beira Interior, e visitou a Região Autónoma
da Madeira, incluindo os subarquipélagos das Desertas e Selvagens. Mas evitou
os Açores em ano de eleições regionais, tendo agendada para junho uma visita a
todas as ilhas desta região autónoma.
O Presidente da República tem sugerido em várias
ocasiões que não pensa fazer um segundo mandato, mas nunca assumiu claramente
esse compromisso, remetendo a ponderação das circunstâncias para setembro de
2020.
Depois de ter considerado que até às eleições
autárquicas se manteria a estabilidade política, referindo que estas poderiam
constituir a abertura de um novo ciclo político, a ponto de Marques Mendes e
outros terem inferido que o Presidente nacionalizara as autárquicas, já veio a
terreiro dizer que as eleições autárquicas não constituem um novo ciclo.
***
Sobre as críticas que alguns lhe apontam (em que
eu me incluo), há
uma coisa em que tem razão: uma pessoa não muda de um momento para o outro. Por
outro lado, a sua posse como Chefe de Estado, a cuja cerimónia chegou a pé (notória
quebra do protocolo),
ocorreu num momento em que a situação política era frágil, inédita e demasiado
escrutinada pelo exterior, bem como num tempo em que deparou com uma
Presidência da República distanciada do povo, a coberto duma pretensa
institucionalização, e banalizada por algumas afirmações triviais do ocupante
do Palácio de Belém. Era efetivamente necessário “reumanizar” a Presidência, torná-la
símbolo do povo genuíno.
Porém, continuo a pensar que Marcelo fala de tudo e de
todos e de si próprio, o que põe em risco a necessária audibilidade da sua
palavra em momento de crise. Também me parece que se intromete em demasia nas
questões de governação (ex: BCP, BPI, CGD, concertação social, teatro da
Cornucópia, relação Ministério da Educação-escolas privadas, acordo ortográfico) a ponto de, quando as coisas correm menos bem, ter
de dizer que já disse tudo o que tinha a dizer ou que o assunto já está
encerrado. Depois, Marcelo não perdeu o tique de comentador político: comenta
factos nacionais, do estrangeiro, atos do Governo, do Parlamento, de si
próprio; antecipa informação que incumbia ao Governo (ex: que
uma agência iria manter o rating
português). E não perdeu o dedo de jurista e
professor de direito: o teor da declaração que produziu, em 4 de novembro,
sobre a obrigação de os administradores da CGD terem de entregar ao Tribunal
Constitucional as declarações de rendimento e património foi indevida para um
Presidente, até porque arrastou consigo o TC, o Governo e os partidos. Ademais,
entrou em contradição consigo próprio: promulgou um decreto-lei (pelos vistos
pouco inócuo) cujo teor
veio a negar em nome de outra lei que tinha a mesma legitimidade constitucional.
O caso da declaração pública sobre Mário Centeno deixou
no ar a perceção de que o Presidente estava a interferir na área da
responsabilidade do Ministro perante o Primeiro-Ministro e não perante o Chefe
de Estado.
É por tudo isto que, enquanto alguns
constitucionalistas entendem somente que tudo cabe na interpretação que Marcelo
faz do exercício dos poderes constitucionais do Presidente e no estilo genuíno da
sua atuação, outros asseguram que ele, pelo menos, pisa o risco da linha
perimetral dos poderes, pois, não é o provedor do Governo nem o Pai dos
deputados nem a mão amiga do Presidente da Assembleia da República, não é o
senador do Estado nem o jurisconsulto da Nação. E a hiperatividade, o estilo de
proximidade e a gestão dos afetos não justificam tudo.
Veremos se os restantes quatro anos do mandato o levam
a alterar a rota de atuação, se o cansam ou se lhe aguçam o apetite para outro
mandato.
Só espero que Sua Excelência não venha dizer em 2020
que se candidata porque não há mais ninguém capaz de garantir o regular
funcionamento das instituições democráticas ou de assegurar a unidade do Estado
e guardar a Constituição.
2017.03.09 – Louro de Carvalho
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