sexta-feira, 10 de março de 2017

Um ano do mandato de Rebelo de Sousa – “Portugal Próximo”

Marcelo Rebelo de Sousa cumpriu, a 9 de março, um ano de mandato caraterizado por um estilo “muito interventivo”, segundo ele próprio, de proximidade em relação aos cidadãos de desdramatização e procura de convergências – com o que granjeou alargadas simpatias.
Porém, a ambição, enunciada desde a campanha para as presidenciais, de estabelecer pontes e promover consensos de regime, unindo os “dois países políticos” resultantes das últimas legislativas, ainda está longe de se concretizar. Com efeito, Na campanha para as presidenciais de 2016, o candidato apresentou-se como um moderador situado na “esquerda da direita” e defendia acordos de regime em áreas como a educação, a saúde, a segurança social, a justiça (sugerindo que os operadores na área da Justiça se antecipassem aos partidos) e a política europeia – linha discursiva que manteve neste primeiro ano em funções como Presidente da República, com ênfase particular na importância da concertação social.
Se a tensão social se esbateu significativamente com a ação de Marcelo, o Governo do PS, com o apoio parlamentar dos partidos à esquerda, e a desfeita coligação PSD/CDS-PP relacionam-se num clima de crispação política, que atingiu proporções excessivas na polémica entre o Ministro das Finanças, Mário Centeno, e a antiga administração da Caixa Geral de Depósitos, liderada por António Domingues, bem como recentemente com o não tratamento do êxodo dos 10 mil milhões de euros para paraísos fiscais entre 2011 e 2015.
E Marcelo viu-se seriamente envolvido no tema da CGD, que levou PSD e CDS-PP a constituírem uma nova comissão parlamentar de inquérito, tendo sido visado diretamente pelo porta-voz do PS, João Galamba, que lhe apontou o estar “profundamente implicado” no caso, e pelo próprio PSD, que o acusou de excessivamente colado ao Governo.
O Presidente recebeu o Ministro das Finanças em Belém e emitiu uma nota aceitando a posição do Primeiro-Ministro de manter a confiança em Mário Centeno, “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”.
Eleito à 1.ª volta no ato eleitoral de janeiro de 2016, aos 67 anos, com 52% dos votos, o ex-comentador político e professor universitário de direito indicou como princípios para o seu mandato presidencial: “afetos, proximidade, simplicidade e estabilidade”. Após a tomada de posse, face a um quadro de bipolarização resultante das eleições legislativas de 4 de outubro de 2015, o antigo presidente do PSD considerou que o Governo minoritário do PS devia cumprir o seu mandato, e tem sido, no essencial, convergente com o executivo de António Costa. Por isso, a sua relação com o PSD de Passos Coelho tem registado alguma tensão. Demarcou-se da ideia da badalada falta de legitimidade do atual Governo e do discurso negativo da oposição sobre a trajetória das contas públicas, embora com reparos sobre a necessidade de captação de mais investimento e de promoção do crescimento económico, insistindo que a economia portuguesa precisa de crescer acima de 2%.
E, apesar de vir da mesma área política, Marcelo distinguiu-se do antecessor, Aníbal Cavaco Silva, no contacto próximo e informal com os cidadãos e na agenda intensa e presença mediática constante. E também mostrou diferenças na interpretação da função presidencial, com um acompanhamento permanente e ativo da governação e da atividade da Assembleia da República, ouvindo regularmente – pelo menos de 3 em 3 meses – os partidos, as confederações patronais e sindicais e o Conselho de Estado, tendo promovido, neste último a audição dum estrangeiro, o Presidente do BCE.
A sua atuação já motivou algumas críticas e, no início de dezembro, Rebelo de Sousa, numa visita a uma escola, justificou o seu entendimento do exercício do cargo e os contactos diretos com outros membros do Governo que não o primeiro-ministro, explicitando:
Depende muito do Primeiro-Ministro o ver com bons olhos ou não contactos diretos entre o Presidente e membros do Governo e, às vezes, até solicitar. Isto pode ser útil. Por exemplo, há um problema financeiro, e o Ministro das Finanças está em melhores condições para explicar do que o Primeiro-Ministro, de imediato. Eu acho que tem vantagens, porque o Presidente, sabendo quais são os limites dos seus poderes, está mais bem informado, e informado na hora.”.
O Presidente da República ainda não recorreu ao Tribunal Constitucional (TC) e utilizou por três vezes o poder de veto político em relação a dois diplomas da Assembleia da República (sobre a gestação de substituição e a estatização dos transportes do Porto), que acabariam por ser promulgados após as alterações introduzidas pelos deputados, e a um decreto do Governo sobre acesso a informação bancária.
Marcelo definiu-se como um Presidente que não recorre ao TC como por “uma espécie de defesa”, mas que exerce “sem complexo nenhum” o veto político, perante fortes divergências.
A nível externo, realizou 21 deslocações ao estrangeiro, três das quais em visitas de Estado, a primeira em maio, a Moçambique, e as outras em outubro, à Suíça e a Cuba, onde se encontrou com Fidel Castro, um mês antes da morte do histórico líder cubano. Salientam-se ainda as inéditas comemorações do 10 de Junho em Paris com os portugueses residentes em França, juntamente com o Primeiro-Ministro, e a deslocação ao Brasil, em agosto, para a abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. As suas saídas do país foram quase todas de curta duração, para encontros institucionais ou cimeiras, e a maioria a capitais de países europeus: Vaticano, Espanha, Itália, Alemanha e Reino Unido. Mas esteve no Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França), e foi recebido em Casablanca pelo rei de Marrocos. Além disso, viajou ainda três vezes para assistir a jogos do Euro 2016, em França, incluindo a final, que Portugal venceu.
Em território nacional, realizou três edições duma iniciativa de presidência aberta ou ambulante, a que chamou “Portugal Próximo”, no Alentejo, em Trás-os-Montes e na Beira Interior, e visitou a Região Autónoma da Madeira, incluindo os subarquipélagos das Desertas e Selvagens. Mas evitou os Açores em ano de eleições regionais, tendo agendada para junho uma visita a todas as ilhas desta região autónoma.
O Presidente da República tem sugerido em várias ocasiões que não pensa fazer um segundo mandato, mas nunca assumiu claramente esse compromisso, remetendo a ponderação das circunstâncias para setembro de 2020.
Depois de ter considerado que até às eleições autárquicas se manteria a estabilidade política, referindo que estas poderiam constituir a abertura de um novo ciclo político, a ponto de Marques Mendes e outros terem inferido que o Presidente nacionalizara as autárquicas, já veio a terreiro dizer que as eleições autárquicas não constituem um novo ciclo.
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Sobre as críticas que alguns lhe apontam (em que eu me incluo), há uma coisa em que tem razão: uma pessoa não muda de um momento para o outro. Por outro lado, a sua posse como Chefe de Estado, a cuja cerimónia chegou a pé (notória quebra do protocolo), ocorreu num momento em que a situação política era frágil, inédita e demasiado escrutinada pelo exterior, bem como num tempo em que deparou com uma Presidência da República distanciada do povo, a coberto duma pretensa institucionalização, e banalizada por algumas afirmações triviais do ocupante do Palácio de Belém. Era efetivamente necessário “reumanizar” a Presidência, torná-la símbolo do povo genuíno.
Porém, continuo a pensar que Marcelo fala de tudo e de todos e de si próprio, o que põe em risco a necessária audibilidade da sua palavra em momento de crise. Também me parece que se intromete em demasia nas questões de governação (ex: BCP, BPI, CGD, concertação social, teatro da Cornucópia, relação Ministério da Educação-escolas privadas, acordo ortográfico) a ponto de, quando as coisas correm menos bem, ter de dizer que já disse tudo o que tinha a dizer ou que o assunto já está encerrado. Depois, Marcelo não perdeu o tique de comentador político: comenta factos nacionais, do estrangeiro, atos do Governo, do Parlamento, de si próprio; antecipa informação que incumbia ao Governo (ex: que uma agência iria manter o rating português). E não perdeu o dedo de jurista e professor de direito: o teor da declaração que produziu, em 4 de novembro, sobre a obrigação de os administradores da CGD terem de entregar ao Tribunal Constitucional as declarações de rendimento e património foi indevida para um Presidente, até porque arrastou consigo o TC, o Governo e os partidos. Ademais, entrou em contradição consigo próprio: promulgou um decreto-lei (pelos vistos pouco inócuo) cujo teor veio a negar em nome de outra lei que tinha a mesma legitimidade constitucional.
O caso da declaração pública sobre Mário Centeno deixou no ar a perceção de que o Presidente estava a interferir na área da responsabilidade do Ministro perante o Primeiro-Ministro e não perante o Chefe de Estado.
É por tudo isto que, enquanto alguns constitucionalistas entendem somente que tudo cabe na interpretação que Marcelo faz do exercício dos poderes constitucionais do Presidente e no estilo genuíno da sua atuação, outros asseguram que ele, pelo menos, pisa o risco da linha perimetral dos poderes, pois, não é o provedor do Governo nem o Pai dos deputados nem a mão amiga do Presidente da Assembleia da República, não é o senador do Estado nem o jurisconsulto da Nação. E a hiperatividade, o estilo de proximidade e a gestão dos afetos não justificam tudo.
Veremos se os restantes quatro anos do mandato o levam a alterar a rota de atuação, se o cansam ou se lhe aguçam o apetite para outro mandato.
Só espero que Sua Excelência não venha dizer em 2020 que se candidata porque não há mais ninguém capaz de garantir o regular funcionamento das instituições democráticas ou de assegurar a unidade do Estado e guardar a Constituição.

2017.03.09 – Louro de Carvalho  

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