domingo, 26 de março de 2017

Os 50 anos da encíclica Populorum Progressio

Foi no domingo de Páscoa de 1967, a 26 de março, que o Beato Paulo VI assinou e mandou publicar a pouco amada, ao tempo, encíclica “Populorum Progressio” [sobre o desenvolvimento dos povos].É um dos textos mais significativos e emblemáticos dos anos 60 do século XX, produzido numa linha de substancial continuidade com alguns dos mais importantes textos conciliares, nomeadamente a Constituição “Gaudium et spes” (GS), sobre as relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo e com algumas intervenções do próprio Paulo VI, como a encíclica “Ecclesiam suam” (ES), sobre o diálogo, e o discurso às Nações Unidas a 4 de outubro de 1965, mas também na linha das encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de Pio XI, Mater et Magistra e Pacem in Terris, ambas de João XXIII, bem como nas radiomensagens de Pio XII. Também ajudaram os contactos das viagens papais anteriores.
Com a Encíclica, que entende que a questão social abrange o mundo inteiro, foi criada a Comissão Pontifícia Justiça e Paz, que deu lugar ao Pontifício Conselho Justiça e Paz, hoje integrado no recém-criado Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.  
O mundo, então atravessado por mudanças extraordinárias e por um inédito desenvolvimento económico – provavelmente a mais sensacional, rápida e profunda revolução na condição humana de que haja traços na história (segundo E. J. Hobsbawm) – encontrou eco na aula conciliar, a ponto de, por exemplo, a GS referir, no seu n.º 4:
 “A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a Terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. Podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa.”.
O crescimento económico foi um fenómeno mundial, percetível também no bloco soviético e nos países classificados como Terceiro Mundo ou países em vias de desenvolvimento, que tiveram espetacular crescimento da população e aumento generalizado da expectativa de vida.
A generalizada e violenta inquietação que se apoderou das classes pobres, nos países em vias de industrialização, atingiu aqueles cuja economia era quase exclusivamente agrária, levando os camponeses a tomar consciência crítica da sua miséria criada por outrem e a reivindicar, pela dignidade, pão, teto e trabalho ou, como dizem os Sem Terra, terra, teto e trabalho.
Nota-o a "Populorum progressio" quando releva o choque entre as civilizações tradicionais e as novidades da civilização industrial, que brita as estruturas que não se adaptam às novas condições, pois o seu quadro, bastante rígido, era o apoio da vida pessoal e familiar, sendo que os mais velhos se fixavam nele, ao passo que os jovens fugiam dele como se de obstáculo inútil se tratasse, voltando-se pressurosamente para novas formas de vida social. 
A Encíclica reconhece os crimes e as consequências negativas do colonialismo, mas não deixa de atribuir, pelo menos em alguns casos, o processo de modernização, naqueles países, a políticas das potências coloniais, assegurando:
“Por muito incompletas que sejam, permanecem as estruturas que fizeram recuar a ignorância e a doença, estabeleceram comunicações benéficas, e melhoraram as condições de existência”.
Mas era a perda do caráter estático das sociedades que abria os olhos às massas dos países em vias de desenvolvimento e alargava a nível planetário os conflitos sociais, como diz o texto:
“A violenta inquietação que se apoderou das classes pobres nos países em vias de industrialização atinge agora aqueles cuja economia é quase exclusivamente agrária: também os camponeses tomam consciência da sua imerecida miséria”. 
Em suma: o combate à pobreza e à desigualdade (é a abordagem da Encíclica) postula a introdução num processo de transformação económica, sem que alguém fique à margem. Mas este processo deve ser pautado por determinados objetivos e não pode ficar entregue a si mesmo, pois o desenvolvimento não se pode reduzir ao mero crescimento económico. Para ser autêntico e sustentável, deve ser integral, ou seja, promover todos os homens e o homem todo.
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Se o autor da “Rerum Novarum” (eram passados quase 76 anos) reivindicava a legitimidade de um certo uso da propriedade, agora as agulhas tinham de acertar a direção. Era mesmo necessário abandonar a absolutização da propriedade privada típica do capitalismo liberal, reafirmando a doutrina dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos segundo os quais o direito de propriedade nunca deve exercitar-se em detrimento da utilidade comum e do destino universal dos bens – o que implica a ideia vincada da função social da propriedade, mesmo privada.
Por isso, sobretudo as sociedades que resultassem desta urgente modernização não deveriam repetir os defeitos e limites das sociedades do Primeiro Mundo, tais como: o lucro desenfreado, o consumismo, o atomismo individualista, a lógica puramente utilitária, o ativismo, o tecnicismo. E o documento papal adverte para a ambivalência de todo o crescimento:
“Embora necessário para permitir ao homem ser mais homem, torna-o prisioneiro no momento em que se transforma no bem supremo que impede de ver mais além. [...] Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez maior de técnicos, exige também cada vez mais sábios, capazes de reflexão profunda, em busca de humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da contemplação.”.
É, assim, necessário conservar alguma coisa do comunitarismo e de outras qualidades típicas das sociedades tradicionais e enxertá-las nas novas. E, já que é tentador passar dum extremo para outro de sinal contrário, mas de efeitos similares, é preciso evitar que as novas sociedades conheçam lacerantes desigualdades sociais, como as que ocorreram no mundo ocidental após a primeira revolução industrial. A Encíclica não atribui tais desigualdades diretamente à própria industrialização, cuja positividade até sublinha, mas ao quadro ideológico em que ela decorreu, o “capitalismo liberal”. Mas adverte que nas novas sociedades industriais terá de haver espaço para “a passagem da miséria à posse do necessário, à vitória sobre os flagelos sociais, ao alargamento dos conhecimentos, à aquisição da cultura”.
É certo que a primeira fase da industrialização contém a raiz do grande desenvolvimento, mas tantas vezes à custa de duras lutas e conflitos sociais que agora podiam ser evitados. Seriam mesmo de admitir, em certos casos, políticas de expropriação, de proibição da exportação dos capitais e até de recurso a experiências de programação económica, pois só a iniciativa individual e o jogo da concorrência não bastam para assegurar o êxito do desenvolvimento”.
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Mas outros perigos espreitavam o espectro do desenvolvimento: o da perspetiva duma coletivização integral ou duma planificação arbitrária que, privando os homens da liberdade, impedem o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana; e o da realização dum humanismo ateu, um “humanismo limitado, fechado aos valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro humanismo”. Este é um perigo bem ameaçador e impante nos tempos de hoje.
Indubitavelmente, o homem pode organizar a Terra sem Deus, mas “sem Deus só a pode organizar contra o homem”. E “humanismo exclusivo é humanismo desumano”. Seguindo o Vaticano II, a condenação do comunismo e da sua tentativa de se insinuar nos percursos de descolonização era feita com uma argumentação indireta. 
A Igreja, “conhecedora da humanidade”, sabe que certos equilíbrios sociais são indispensáveis, pelo que a transformação social não pode nem deve ser apressada:
“Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objetivo. Uma industrialização precipitada pode desmoronar estruturas ainda necessárias, criar misérias sociais que seriam um retrocesso humano”.”.
Mais: levantada a questão se era moralmente justificado em alguns momentos forçar as situações e produzir um movimento revolucionário para eliminar injustiças insuportáveis e desigualdades dolorosas, Paulo VI respondia que, apesar de ser grande em determinados casos a tentação da violência, ela era admissível apenas em certas situações, como em casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país. De outra forma, a revolução é fonte de novas injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas, pelo que nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior.
A condição essencial para que se realize o desígnio do desenvolvimento sustentável é que o processo de modernização não seja acompanhado de uma secularização selvagem, como estava a suceder nos países desenvolvidos, pois apenas se for observado o reconhecimento, pelo homem, dos valores supremos e de Deus, origem e termo deles, e se não for eclipsada “a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem”, é que tal processo pode conjugar o crescimento económico com um humanismo pleno, porque não há “verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exata do que é a vida humana”.
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Em linguagem da filosofia política, poderá dizer-se que a conformação global da Encíclica é “reformista” e corresponde a uma leitura, em fundo otimista, da situação daqueles anos, em que o génio feliz era o da justiça “em caminho para a fraternidade e a paz”, exigindo o desenvolvimento transformações audazes, profundamente inovadoras e, sem demora, a concretização reformas urgentes.
A análise do mundo que a “Populorum Progressio” faz condiz com os factos do início da década de 60, ou seja: o fim “psicológico” do pós-guerra; o abrandamento da guerra fria; as descolonizações; as experiências reformadoras de Khrushchev; a presidência Kennedy; a luta contra a segregação racial; o otimismo sorridente de João XXIII e a abertura do Vaticano II; o culminar da economia social de mercado. Porém, o fim, por vezes trágico, de muitas destas experiências, o falhanço das descolonizações e das ideologias desenvolvimentistas, o emergir de novos mitos (revolução chinesa, guerrilha cubana…) levaram a uma radicalização global em que reaparece a paixão revolucionária, marcará o fim da década.
A Encíclica foi publicada um pouco antes do maio de 68, uma revolução política e cultural, que lhe influenciou a receção e a circulação. Nalguns lugares, foi sujeita a adaptações e cortes de texto; noutros foi citada e explicada de forma distorcida; e programas políticos conotados com o catolicismo não a assumiram. Paulo VI multiplicou-se em diálogo com todos e manteve a rota. E, no discurso de Bogotá, a 24 de agosto de 1968, fez uma interpretação autêntica da Encíclica:
“Se nós temos de favorecer todo o esforço honesto para promover a renovação e a elevação dos pobres e de quantos vivem em condições de inferioridade humana e social, se nós não podemos ser solidários com sistemas e estruturas que encobrem e favorecem graves e opressoras desigualdades entre as classes e os cidadãos de um mesmo país, sem pôr em ação um plano efetivo para remediar as condições insuportáveis de inferioridade que frequentemente sofre a população menos privilegiada, nós mesmos repetimos uma vez mais a este propósito: nem o ódio nem a violência são a força da nossa caridade. Entre os diversos caminhos para uma justa regeneração social, nós não podemos escolher nem o do marxismo ateu nem o da rebelião sistemática, nem muito menos o do derramamento de sangue e o da anarquia. Distingamos as nossas responsabilidades das daqueles que, pelo contrário, fazem da violência um ideal nobre, um heroísmo glorioso, uma teologia complacente.”.
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Dá-se agora um conspecto geral da Populorum Progressio.
Depois da introdução, em que se expõe o tema e a motivação do seu tratamento, a Encíclica desenvolve-se em três partes:
I. PARA O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL DO HOMEM, com DADOS DO PROBLEMA – as aspirações dos homens, a colonização e o colonialismo, o desequilíbrio crescente, a tomada de consciência cada vez maior, o choque de civilizações; A IGREJA E O DESENVOLVIMENTO – a árdua obra dos missionários, a Igreja e o Mundo, a visão cristã do desenvolvimento, a vocação ao crescimento, um dever pessoal...e comunitário, a escala de valores, o crescimento ambivalente, a busca duma condição mais humana, o ideal a realizar; e AÇÃO A EMPREENDER, abordando O DESTINO UNIVERSAL DOS BENS, do lado da propriedade e do uso dos rendimentos, a INDUSTRIALIZAÇÃO, com o capitalismo liberal, o trabalho, a ambivalência, a urgência da obra a realizar, a tentação da violência, a revolução, a reforma, os programas e planificação, o serviço do homem, a alfabetização, a família, a demografia, as organizações profissionais, o pluralismo legítimo, a promoção cultural e a tentação materialista, e PARA UM HUMANISMO TOTAL, como conclusão da primeira parte. 
II. PARA UM DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO DA HUMANIDADE, com uma introdução a esta parte e o subtema da fraternidade dos povos e três capítulos;  
1. ASSISTÊNCIA AOS FRACOS, equacionando a questão da luta contra a fome, hoje e amanhã, o dever de solidariedade, a obrigação de dispor do supérfluo, a necessidade de programas ajustados de desenvolvimento sustentável, a criação dum fundo mundial para acorrer aos pobres, vantagens e urgência desta ação e caraterísticas e necessidade do diálogo a estabelecer.
2. EQUIDADE NAS RELAÇÕES COMERCIAIS, com a sua distorção crescente, a necessidade de ir para lá do liberalismo, a justiça dos contratos ao nível dos povos, o conjunto de medidas a tomar, a relevância das convenções internacionais, os obstáculos a vencer (nomeadamente o nacionalismo e o racismo), a necessidade de se construir um mundo solidário e de os povos se assumirem como artífices do seu destino.
 3. A CARIDADE UNIVERSAL, com o dever do acolhimento, os dramas dos jovens estudantes e dos trabalhadores emigrados, o sentido social da caridade, a missão do desenvolvimento, a relevância das qualidades dos peritos, a importância do diálogo das civilizações, um apelo aos jovens e a necessidade de articular oração e ação.
Assegura-se que o DESENVOLVIMENTO É O NOVO NOME DA PAZ, pelo que é preciso sair do isolamento, criar uma autoridade mundial eficaz e acalentar a fundada esperança num mundo melhor com base na solidariedade de todos.
Por último, vem o APELO FINAL aos católicos, aos cristãos e demais crentes, aos homens de boa vontade, aos homens de Estado, aos sábios – e também o estímulo a que se ponham “mãos à obra, todos à uma” e a bênção papal.
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Em suma, no cinquentenário da sua publicação, é de fazer a releitura aprofundada da Encíclica.
2017.03.26 – Louro de Carvalho

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