Foi
no domingo de Páscoa de 1967, a 26 de março, que o Beato Paulo VI assinou e
mandou publicar a pouco amada,
ao tempo, encíclica “Populorum Progressio”
[sobre o
desenvolvimento dos povos].É um dos
textos mais significativos e emblemáticos dos anos 60 do século XX, produzido
numa linha de substancial continuidade com alguns dos mais importantes textos
conciliares, nomeadamente a Constituição “Gaudium
et spes” (GS), sobre as relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo e
com algumas intervenções do próprio Paulo VI, como a encíclica “Ecclesiam suam” (ES), sobre o diálogo, e o discurso às Nações Unidas a 4
de outubro de 1965, mas também na linha das encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII, Quadragesimo
Anno, de Pio XI, Mater et Magistra
e Pacem in Terris, ambas de João
XXIII, bem como nas radiomensagens de Pio XII. Também ajudaram os contactos das
viagens papais anteriores.
Com a Encíclica, que entende que a questão
social abrange o mundo inteiro, foi criada a Comissão Pontifícia Justiça e Paz, que deu lugar ao Pontifício Conselho Justiça e Paz, hoje
integrado no recém-criado Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.
O mundo,
então atravessado por mudanças extraordinárias e por um inédito desenvolvimento
económico – provavelmente a mais sensacional, rápida e profunda revolução na
condição humana de que haja traços na história (segundo E. J. Hobsbawm) – encontrou eco na aula conciliar, a ponto de, por
exemplo, a GS referir, no seu n.º 4:
“A humanidade vive hoje uma fase
nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem
progressivamente a toda a Terra. Provocadas
pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo
homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus
modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. Podemos já
falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na
vida religiosa.”.
O
crescimento económico foi um fenómeno mundial, percetível também no bloco
soviético e nos países classificados como Terceiro
Mundo ou países em vias de
desenvolvimento, que tiveram espetacular crescimento da população e aumento
generalizado da expectativa de vida.
A generalizada e violenta inquietação que se apoderou das classes
pobres, nos países em vias de industrialização, atingiu aqueles cuja economia
era quase exclusivamente agrária, levando os camponeses a tomar consciência
crítica da sua miséria criada por outrem e a reivindicar, pela dignidade, pão,
teto e trabalho ou, como dizem os Sem Terra, terra, teto e trabalho.
Nota-o a
"Populorum progressio"
quando releva o choque entre as civilizações tradicionais e as novidades da
civilização industrial, que brita as estruturas que não se adaptam às novas
condições, pois o seu quadro, bastante rígido, era o apoio da vida pessoal e
familiar, sendo que os mais velhos se fixavam nele, ao passo que os jovens
fugiam dele como se de obstáculo inútil se tratasse, voltando-se
pressurosamente para novas formas de vida social.
A Encíclica reconhece os crimes e as
consequências negativas do colonialismo, mas não deixa de atribuir, pelo menos
em alguns casos, o processo de modernização, naqueles países, a políticas das
potências coloniais, assegurando:
“Por muito incompletas que sejam, permanecem as estruturas que fizeram
recuar a ignorância e a doença, estabeleceram comunicações benéficas, e melhoraram
as condições de existência”.
Mas era a
perda do caráter estático das sociedades que abria os olhos às massas dos
países em vias de desenvolvimento e alargava a nível planetário os conflitos
sociais, como diz o texto:
“A violenta inquietação que se apoderou das classes pobres nos países em
vias de industrialização atinge agora aqueles cuja economia é quase
exclusivamente agrária: também os camponeses tomam consciência da sua imerecida
miséria”.
Em suma: o
combate à pobreza e à desigualdade (é a abordagem da Encíclica) postula a introdução num processo de transformação económica, sem que
alguém fique à margem. Mas este processo deve ser pautado por determinados
objetivos e não pode ficar entregue a si mesmo, pois o desenvolvimento não se
pode reduzir ao mero crescimento económico. Para ser autêntico e sustentável,
deve ser integral, ou seja, promover todos os homens e o homem todo.
***
Se o autor
da “Rerum Novarum” (eram
passados quase 76 anos)
reivindicava a legitimidade de um certo uso da propriedade, agora as agulhas
tinham de acertar a direção. Era mesmo
necessário abandonar a absolutização da propriedade privada típica do
capitalismo liberal, reafirmando a doutrina dos Padres da Igreja e dos grandes
teólogos segundo os quais o direito de propriedade nunca deve exercitar-se em
detrimento da utilidade comum e do destino universal dos bens – o que implica a
ideia vincada da função social da propriedade, mesmo privada.
Por isso, sobretudo
as sociedades que resultassem desta urgente modernização não deveriam repetir
os defeitos e limites das sociedades do Primeiro
Mundo, tais como: o lucro desenfreado, o consumismo, o atomismo
individualista, a lógica puramente utilitária, o ativismo, o tecnicismo. E o
documento papal adverte para a ambivalência de todo o crescimento:
“Embora necessário para permitir ao homem ser mais homem, torna-o
prisioneiro no momento em que se transforma no bem supremo que impede de ver
mais além. [...] Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez maior
de técnicos, exige também cada vez mais sábios, capazes de reflexão profunda,
em busca de humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si
mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da
contemplação.”.
É, assim,
necessário conservar alguma coisa do comunitarismo e de outras qualidades
típicas das sociedades tradicionais e enxertá-las nas novas. E, já que é
tentador passar dum extremo para outro de sinal contrário, mas de efeitos
similares, é preciso evitar que as novas sociedades conheçam lacerantes
desigualdades sociais, como as que ocorreram no mundo ocidental após a primeira
revolução industrial. A Encíclica não
atribui tais desigualdades diretamente à própria industrialização, cuja positividade
até sublinha, mas ao quadro ideológico em que ela decorreu, o “capitalismo
liberal”. Mas adverte que nas novas sociedades industriais terá de haver espaço
para “a passagem da miséria à posse do necessário, à vitória sobre os flagelos
sociais, ao alargamento dos conhecimentos, à aquisição da cultura”.
É certo que a
primeira fase da industrialização contém a raiz do grande desenvolvimento, mas
tantas vezes à custa de duras lutas e conflitos sociais que agora podiam ser
evitados. Seriam mesmo de admitir, em certos casos, políticas de expropriação,
de proibição da exportação dos capitais e até de recurso a experiências de
programação económica, pois só a iniciativa individual e o jogo da concorrência
não bastam para assegurar o êxito do desenvolvimento”.
***
Mas outros perigos espreitavam o espectro do desenvolvimento: o da
perspetiva duma coletivização integral ou duma planificação arbitrária
que, privando os homens da liberdade, impedem o exercício dos direitos
fundamentais da pessoa humana; e o da realização dum humanismo ateu, um “humanismo
limitado, fechado aos valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro
humanismo”. Este é um perigo bem ameaçador e impante nos tempos de hoje.
Indubitavelmente,
o homem pode organizar a Terra sem Deus, mas “sem Deus só a pode organizar
contra o homem”. E “humanismo exclusivo é humanismo desumano”. Seguindo o
Vaticano II, a condenação do comunismo e da sua tentativa de se insinuar nos
percursos de descolonização era feita com uma argumentação indireta.
A Igreja,
“conhecedora da humanidade”, sabe que certos equilíbrios sociais são
indispensáveis, pelo que a transformação social não pode nem deve ser
apressada:
“Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objetivo. Uma
industrialização precipitada pode desmoronar estruturas ainda necessárias,
criar misérias sociais que seriam um retrocesso humano”.”.
Mais:
levantada a questão se era moralmente justificado em alguns momentos forçar as
situações e produzir um movimento revolucionário para eliminar injustiças
insuportáveis e desigualdades dolorosas, Paulo VI respondia que, apesar de ser
grande em determinados casos a tentação da violência, ela era admissível apenas
em certas situações, como em casos de tirania evidente e prolongada que
ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o
bem comum do país. De outra forma, a revolução é fonte de novas injustiças,
introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas, pelo que nunca se pode
combater um mal real à custa de uma desgraça maior.
A condição
essencial para que se realize o desígnio do desenvolvimento sustentável é que o
processo de modernização não seja acompanhado de uma secularização selvagem,
como estava a suceder nos países desenvolvidos, pois apenas se for observado o
reconhecimento, pelo homem, dos valores supremos e de Deus, origem e termo
deles, e se não for eclipsada “a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade
do homem”, é que tal processo pode conjugar o crescimento económico com um humanismo
pleno, porque não há “verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto,
reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exata do que é a vida humana”.
***
Em linguagem
da filosofia política, poderá dizer-se que a conformação global da Encíclica é “reformista” e corresponde a
uma leitura, em fundo otimista, da situação daqueles anos, em que o génio feliz
era o da justiça “em caminho para a fraternidade e a paz”, exigindo o
desenvolvimento transformações audazes, profundamente inovadoras e, sem demora,
a concretização reformas urgentes.
A análise do
mundo que a “Populorum Progressio” faz
condiz com os factos do início da década de 60, ou seja: o fim “psicológico” do
pós-guerra; o abrandamento da guerra fria; as descolonizações; as experiências
reformadoras de Khrushchev; a presidência Kennedy; a luta contra a segregação
racial; o otimismo sorridente de João XXIII e a abertura do Vaticano II; o
culminar da economia social de mercado. Porém, o fim, por vezes trágico, de
muitas destas experiências, o falhanço das descolonizações e das ideologias
desenvolvimentistas, o emergir de novos mitos (revolução chinesa, guerrilha cubana…) levaram a uma radicalização global em que reaparece
a paixão revolucionária, marcará o fim da década.
A Encíclica foi publicada um pouco antes
do maio de 68, uma revolução política
e cultural, que lhe influenciou a receção e a circulação. Nalguns lugares, foi
sujeita a adaptações e cortes de texto; noutros foi citada e explicada de forma
distorcida; e programas políticos conotados com o catolicismo não a assumiram.
Paulo VI multiplicou-se em diálogo com todos e manteve a rota. E, no discurso
de Bogotá, a 24 de agosto de 1968, fez uma interpretação autêntica da Encíclica:
“Se nós temos de favorecer todo o esforço honesto para promover a renovação
e a elevação dos pobres e de quantos vivem em condições de inferioridade humana
e social, se nós não podemos ser solidários com sistemas e estruturas que
encobrem e favorecem graves e opressoras desigualdades entre as classes e os
cidadãos de um mesmo país, sem pôr em ação um plano efetivo para remediar as
condições insuportáveis de inferioridade que frequentemente sofre a população
menos privilegiada, nós mesmos repetimos uma vez mais a este propósito: nem o
ódio nem a violência são a força da nossa caridade. Entre os diversos caminhos
para uma justa regeneração social, nós não podemos escolher nem o do marxismo
ateu nem o da rebelião sistemática, nem muito menos o do derramamento de sangue
e o da anarquia. Distingamos as nossas responsabilidades das daqueles que, pelo
contrário, fazem da violência um ideal nobre, um heroísmo glorioso, uma
teologia complacente.”.
***
Dá-se agora
um conspecto geral da Populorum
Progressio.
Depois da
introdução, em que se expõe o tema e a motivação do seu tratamento, a Encíclica desenvolve-se em três partes:
I. PARA O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL
DO HOMEM, com DADOS
DO PROBLEMA – as aspirações dos
homens, a colonização e o colonialismo, o desequilíbrio crescente, a tomada de
consciência cada vez maior, o choque de civilizações; A IGREJA E O DESENVOLVIMENTO – a árdua obra dos missionários, a Igreja e o
Mundo, a visão cristã do desenvolvimento, a vocação ao crescimento, um dever
pessoal...e comunitário, a escala de valores, o crescimento ambivalente, a
busca duma condição mais humana, o ideal a realizar; e AÇÃO A EMPREENDER, abordando O DESTINO UNIVERSAL DOS BENS, do lado da propriedade
e do uso dos rendimentos, a INDUSTRIALIZAÇÃO, com o capitalismo liberal, o trabalho, a ambivalência, a urgência da
obra a realizar, a tentação da violência, a revolução, a reforma, os programas e planificação, o serviço do
homem, a alfabetização, a família, a demografia, as organizações profissionais,
o pluralismo legítimo, a promoção cultural e a tentação materialista, e PARA
UM HUMANISMO TOTAL, como conclusão da primeira parte.
II. PARA UM DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO DA HUMANIDADE, com uma introdução
a esta parte e o subtema da fraternidade dos povos e três capítulos;
1. ASSISTÊNCIA AOS FRACOS,
equacionando a questão da luta contra a fome, hoje e amanhã, o dever de solidariedade, a obrigação de dispor
do supérfluo, a necessidade de programas ajustados de desenvolvimento
sustentável, a criação dum fundo mundial para acorrer aos pobres, vantagens e
urgência desta ação e caraterísticas e necessidade do diálogo a estabelecer.
2. EQUIDADE NAS RELAÇÕES COMERCIAIS, com a sua distorção crescente, a
necessidade de ir para lá do liberalismo, a justiça dos contratos ao nível dos povos, o conjunto
de medidas a tomar, a relevância das convenções internacionais, os obstáculos a
vencer (nomeadamente o
nacionalismo e o racismo),
a necessidade de se construir um mundo solidário e de os povos se assumirem
como artífices
do seu destino.
3. A
CARIDADE UNIVERSAL, com o dever do acolhimento, os dramas dos jovens
estudantes e dos trabalhadores emigrados, o sentido social da caridade, a missão
do desenvolvimento, a relevância das qualidades dos peritos, a importância do diálogo
das
civilizações, um apelo aos jovens e a necessidade de articular oração e ação.
Assegura-se
que o DESENVOLVIMENTO É O NOVO NOME DA
PAZ, pelo que é preciso sair do isolamento, criar uma autoridade mundial
eficaz e acalentar a fundada esperança num mundo melhor com base na solidariedade de todos.
Por último, vem
o APELO FINAL aos católicos, aos cristãos e demais crentes, aos homens de boa vontade, aos homens de Estado, aos sábios – e também o
estímulo a que se ponham “mãos à obra, todos à uma” e a bênção papal.
***
Em suma, no cinquentenário da sua publicação,
é de fazer a releitura aprofundada da Encíclica.
2017.03.26 – Louro de Carvalho
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