Cavaco Silva
foi visto como político inconveniente por se referir deselegantemente a um
ex-Primeiro-Ministro num prefácio a um livro que dava conta de um ano de
presidências abertas, a que o rico chamava “roteiros”, e no seu recente livro
de memórias políticas presidenciais.
Pelos
vistos, Jorge Sampaio não quis ficar atrás. Porém, enquanto Cavaco faz e não
manda fazer, o ex-Presidente lisboeta autoriza que se diga. É um pouco do que
se poderá ler no segundo volume, de 1063 páginas, da sua biografia
político-presidencial, da autoria do jornalista do Expresso José Pedro Castanheira – com a chancela da Porto Editora e
da Edições Nelson de Matos – que será lançado em 20 de março e apresentado em 7
de abril.
Sampaio admite
que, apesar de ter “estima” por Santana Lopes, se fartou dele depois de, em
julho de 2004, ter optado por não decidir pela dissolução do Parlamento e
convocação de eleições antecipadas e nomeado aquele socialdemocrata como
Primeiro-Ministro do XVI Governo Constitucional. Diz o antigo Presidente da
República:
“Fartei-me
do Santana como Primeiro-Ministro, estava a deixar o país à deriva, mas não foi
uma decisão 'ad hominem'. Ninguém gosta de dissolver o parlamento e eu tomei
essa decisão em pouco mais de 48 horas. Hoje faria o mesmo, porque era
preciso.”.
No livro, o
ex-Presidente fala abertamente da crise política por si gerida no verão de
2004, quando Barroso abandonou a chefia do Governo e Santana Lopes se
posicionou na linha de sucessão, contrariando a posição do PS e dos partidos da
esquerda, que pretendiam eleições antecipadas. E reconhece que voltaria dar
posse a Santana, apesar de não ter o poder legitimado por uma vitória nas
urnas, mas o seu então chefe da Casa Civil, João Serra, nota que foi exigida
cautelarmente a “continuidade nas políticas”, designadamente nas Finanças e nos
Negócios Estrangeiros, e vetado o nome de Paulo Portas para esta última pasta.
João Serra
justifica dizendo que se conhecia a ambição Portas “em ser ministro daquela
pasta, mas devido ao seu passado eurocético, o Presidente alertou para as
dificuldades em o nomear”. Portas terá ficado “magoado” por não ter ascendido
aos Negócios Estrangeiros, o que viria a acontecer mais tarde, no executivo
chefiado por Passos Coelho. Não obstante, Paulo Portas terá concordado, de
imediato, com a sugestão de Sampaio sobre o nome do embaixador António Monteiro
para a chefia da diplomacia.
O livro
narra vários casos daqueles que são conhecidos em Belém como “episódios rocambolescos”
do consulado de Santana, a começar logo no ato de posse, com Portas a ignorar
que ficara com os Assuntos do Mar e a dificuldade do chefe do Governo em ler o
discurso.
E ninguém
ignora ou esquece o ruído causado por Henrique Chaves, até aí um indefetível de
Santana, que bateu com a porta de forma tão despudorada, amplamente aproveitado
pelo então comentador da TVI Rebelo de Sousa na sequência das críticas do
ministro Adjunto Rui Gomes da Silva (dizia, por exemplo, que “nem o PS, o PCP e o Bloco juntos conseguem
destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo”) e o veto à “central de comunicação” que o Governo
pretendia criar.
Sampaio justifica
a “bomba atómica” (a dissolução do Parlamento) com a alteração da situação política, no que é corroborado
pelo seu então conselheiro Alberto Laplaine Guimarães, no dizer do qual os
empresários, que dantes defenderam a nomeação de Santana, já só queriam
eleições.
O antigo
Chefe de Estado recorda que empossou Santana Lopes contra a vontade da sua família
política, o que até lhe custou amizades pessoais. E justifica-se:
“Eu não fiz
em julho de 2004 aquilo que a minha gente queria que fizesse e houve mesmo quem
me acusasse de traição ao meu eleitorado. Mas não há, de todo, nenhuma ligação
entre a nomeação de julho e a dissolução de dezembro, que foi a hecatombe.”.
Dizendo ser
“completamente mentira” a versão de que tudo fora arquitetado em Belém e
alegando ter sido “uma situação concreta em cada momento” e, por fim, uma
“situação de rutura”, Sampaio explicita:
“Ainda hoje
há quem pense que foi tudo uma artimanha, uma dissolução clínica e
conspirativa. Mas quem é que hoje em dia, em política, faz previsões a seis
meses? E custou-me todas as críticas que se conhecem e uma amizade que durou
anos a compor...”.
Mesmo
permitindo a Santana um consulado de apenas poucos meses, o ex-Presidente
garante que a dissolução “não foi vingança” e que “tinha boas relações pessoais”
com o ex-Chefe do Governo. E escuda-se no comentário do ex-dirigente do PSD
Pacheco Pereira, segundo o qual, nas legislativas subsequentes, “dois terços
dos portugueses votaram contra o Santana”. E porfia:
“A minha
relação com Santana era muito franca e cordial. Não tinha (nem tenho) nada de
pessoal contra ele – tenho até estima. O Presidente tem de ter um diálogo com o
Primeiro-Ministro na base da confiança e tive conversas muito positivas com
ele. Pediu-me opinião várias vezes, dei-lhe conselhos francos, mas estive
sempre preocupado com o desenrolar dos acontecimentos, que se precipitaram
muito rapidamente até descambarem na confusão.”.
Sampaio
reitera a defesa da bondade da decisão de devolver a 'palavra' ao povo, apesar
de compreender a amargura de Santana, mas observou o pressuposto de que “de vez
em quando é preciso dar voz ao povo” e na convicção de que percebera “qual era
o sentimento do povo”:
“Entendo
perfeitamente a decisão de Santana porque ninguém gosta de ver dissolvida uma
Assembleia onde está em maioria, mas a verdade é que a maioria absoluta estava
a desconjuntar-se” – confessa.
***
Sem ter
autoridade para desdizer as declarações de Jorge Sampaio, interrogo-me como é
que aferiu que a maioria parlamentar estava a desfazer-se. Não se terá o então
Presidente deixado arrastar pelo ruído – adveniente das declarações de ministros,
de apartes de dirigentes socialdemocratas, dos comentários de Marcelo (não esqueço
que disse que este governo representa o pior do pior de Guterres, que os
ministros eram competentes, mas não para as funções que lhes foram confiadas ou
que o grupo de secretários de Estado era mais competente que o dos ministros) e a supressão do programa de Marcelo na TVI. E criou
um precedente ao dissolver um Parlamento onde havia uma maioria absoluta. Depois,
o detentor do mais alto cargo público devia antever e entrever que, em
política, muitas vezes, o que parece é. Ora, se até o discurso de empossamento
do XVI Governo Constitucional previa a vigilância sobre a atuação do executivo
em determinadas áreas que explicitava, como é que Sampaio pode garantir que
isto não fora urdido em Belém? Eu, se fosse o Primeiro-Ministro empossado, o
único enunciado que proferiria como resposta era o anúncio da apresentação do
meu pedido de demissão!
***
Santana Lopes,
que acabou por digerir tudo o que aconteceu e até acabou por dizer que Sampaio
veio a ter razão não gostou das atuais declarações: “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à
deriva”. E desafiou-o ontem na SIC Notícia:
“Se o Dr.
Jorge Sampaio porventura quiser falar disto civilizadamente perante as câmaras
de televisão, eu tenho todo o gosto”.
E
contra-atacou:
“Compreendo
que Jorge Sampaio tenha peso na consciência porque a decisão dele é que pôs o
país à deriva”.
Veladamente,
acusou Sampaio de ter oferecido a governação a alguém – José Sócrates. E disse:
“Eu acho que
ele [Sampaio] deve viver nesse tormento. Essa dissolução deu origem àquilo de
que andamos a falar todos os dias.”.
E disse serem
“coisas de criança” as alegações de que ele e Durão já tinham arquitetado que o
primeiro sucederia ao segundo no cargo, no momento de Durão rumar a Bruxelas.
Nas eleições
legislativas de 2005, realizadas por efeito da dissolução do Parlamento, o PS,
de Sócrates, obteve, com 45%, a sua primeira – e até agora única – maioria
absoluta, enquanto o PSD, de Santana, se ficou por um dos seus piores
resultados de sempre, 28,77%.
Agora, que
José Sócrates enfrenta, com mais de duas dezenas de arguidos, a justiça no âmbito
da “Operação Marquês”, processo que se arrasta e está na iminência de desfecho,
Santana insinua que Sampaio está de consciência pesada, pelo que se justifica e
torna a justificar.
***
Mas o antigo
Presidente não se fica pelas referências a Santana. Também se refere a António Guterres,
revelando que este ficara “absolutamente à rasca” por Sampaio ter anunciado a
candidatura a Belém à margem do PS e defendendo que foi a forma de “manter a
independência até ao fim”. E afirma que foi Nuno Brederode Santos que o
desafiou a avançar, em fevereiro de 1995, mais cedo do que pretendia, alegando
que o PS se preparava para apoiar outro candidato.
Sampaio confessa
que teve então um dos seus “impulsos” e acedeu a telefonar “de imediato” ao
então líder do PS a dizer-lhe que iria anunciar a sua candidatura presidencial dentro
de dias. Mas considera que Guterres acabaria por apoiá-la, mesmo se o tivesse
feito mais tarde, até porque a isso se propusera antes de ser eleito
secretário-geral do PS.
No livro,
Sampaio releva ainda a preferência do seu antecessor em Belém por outro
candidato. Com efeito, apesar de o considerar “um tipo sério”, Mário Soares
achava que Sampaio era “muito hesitante, uma tortura”, além de não ter “alegria
nem savoir-faire” – no que tinha
razão. No entanto, rendeu-se à candidatura do socialista quando, uns meses
depois, o convidou e à Maria José para jantar em sua casa no Campo Grande.
Era escusado
vir agora, depois de Soares ter falecido, vir deselegantemente com esta ou
porfiar a independência da candidatura presidencial. Formalmente foram e são
todas independentes. E da área do PS vieram, além da sua: a de Soares e a de
Zenha, em 1985; a de Mário Sottomayor Cardia, em 1996 (que não
vingou); a de Manuel Alegre e Soares, em
2006; as de Manuel Alegre e de Fernando Nobre, em 2011; e as de Maria de Belém
e Henrique Neto, em 2016.
***
Também agora
é redito que a demissão do ex-ministro Vara, em dezembro de 2000, resultara de
proposta do ex-Chefe do Governo e não de exigência de Sampaio, segundo o que revela
o constitucionalista Jorge Reis Novais no dito livro.
Armando
Vara, Ministro da Juventude, estava debaixo de fogo das oposições na sequência
das alegadas irregularidades na Fundação para a Prevenção e Segurança, criada
quando era secretário de Estado da Administração Interna para promover a
segurança rodoviária. Apesar de Guterres garantir que não soubera da sua criação,
com financiamento público, a oposição acusou o governo de clientelismo político
e pediu a demissão de Vara e do seu sucessor no cargo de secretário de Estado,
Luís Patrão. Vara e Patrão demitiram-se na sequência desta polémica, tendo sido
amplamente noticiado na Comunicação Social que aquela demissão fora exigida
pelo Presidente da República, versão que, agora, Jorge Reis Novais vem
clarificar. Todavia, o caso pouco muda de figura, já que, apesar de ter sido
uma iniciativa de Guterres, comunicada numa audiência no Palácio de Belém,
Sampaio se preparava para pressionar o Primeiro-Ministro com vista à saída dos
dois governantes.
Com efeito,
antes de receber Guterres, Jorge Sampaio chamou Reis Novais e pediu-lhe para
preparar um texto. Diz o constitucionalista e então assessor de Sampaio:
“Pediu-me que fizesse o esboço de uma declaração, a pressionar a demissão
do Vara, para ser divulgada a seguir à audiência. Mas para surpresa do Sampaio,
o Guterres já vinha com uma proposta nesse sentido”.
Novais
revela também que, durante a audiência, Guterres alinhara umas frases justificativas,
que entregou a Sampaio; e que este, quando a reunião terminou, chamou de novo o
assessor e deu-lhe o papel escrito por Guterres, a partir do qual preparou um
comunicado da Presidência.
Contudo, o
Presidente aconselhou a extinção da Fundação e apontou a “crise de autoridade”
em que o então Chefe do Governo se deixou envolver, prometendo:
“Se não houver demissões, não estou em condições de ficar calado” […] “há
comportamentos que são politicamente inaceitáveis num Estado de Direito”.
***
É caso para
perguntar para quê tanta explicação para tudo vir a bater no mesmo. Sampaio
agiu como entendeu dever, querer e poder. Por mais voltas que se deem, ninguém
se convence da genuinidade dos fumos que surgiram durante os seus dois mandatos
presidenciais. Obviamente que a nomeação e a exoneração de membros do Governo
partem sempre de propostas formais do Primeiro-Ministro. Não vale a pena dizer que
o Presidente nada tem a ver com o caso, limitando-se apenas a assinar. Todos sabem
que ele tenta influir em tudo o que puder e quiser.
Diferente de
Aníbal: manda dizer e escrever enquanto este diz e escreve.
Se a moda
pega, teremos de esperar que eles deixem o Palácio de Belém para sabermos de
fonte segura o que por lá se passou. Assim não, senhores Jorge e Aníbal! Porque
não falaram antes?
2017.03.15 – Louro de Carvalho
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