quarta-feira, 15 de março de 2017

Afinal, Cavaco Silva não é o único ex-Presidente inconveniente

Cavaco Silva foi visto como político inconveniente por se referir deselegantemente a um ex-Primeiro-Ministro num prefácio a um livro que dava conta de um ano de presidências abertas, a que o rico chamava “roteiros”, e no seu recente livro de memórias políticas presidenciais.
Pelos vistos, Jorge Sampaio não quis ficar atrás. Porém, enquanto Cavaco faz e não manda fazer, o ex-Presidente lisboeta autoriza que se diga. É um pouco do que se poderá ler no segundo volume, de 1063 páginas, da sua biografia político-presidencial, da autoria do jornalista do Expresso José Pedro Castanheira – com a chancela da Porto Editora e da Edições Nelson de Matos – que será lançado em 20 de março e apresentado em 7 de abril.
Sampaio admite que, apesar de ter “estima” por Santana Lopes, se fartou dele depois de, em julho de 2004, ter optado por não decidir pela dissolução do Parlamento e convocação de eleições antecipadas e nomeado aquele socialdemocrata como Primeiro-Ministro do XVI Governo Constitucional. Diz o antigo Presidente da República:
“Fartei-me do Santana como Primeiro-Ministro, estava a deixar o país à deriva, mas não foi uma decisão 'ad hominem'. Ninguém gosta de dissolver o parlamento e eu tomei essa decisão em pouco mais de 48 horas. Hoje faria o mesmo, porque era preciso.”.
No livro, o ex-Presidente fala abertamente da crise política por si gerida no verão de 2004, quando Barroso abandonou a chefia do Governo e Santana Lopes se posicionou na linha de sucessão, contrariando a posição do PS e dos partidos da esquerda, que pretendiam eleições antecipadas. E reconhece que voltaria dar posse a Santana, apesar de não ter o poder legitimado por uma vitória nas urnas, mas o seu então chefe da Casa Civil, João Serra, nota que foi exigida cautelarmente a “continuidade nas políticas”, designadamente nas Finanças e nos Negócios Estrangeiros, e vetado o nome de Paulo Portas para esta última pasta.
João Serra justifica dizendo que se conhecia a ambição Portas “em ser ministro daquela pasta, mas devido ao seu passado eurocético, o Presidente alertou para as dificuldades em o nomear”. Portas terá ficado “magoado” por não ter ascendido aos Negócios Estrangeiros, o que viria a acontecer mais tarde, no executivo chefiado por Passos Coelho. Não obstante, Paulo Portas terá concordado, de imediato, com a sugestão de Sampaio sobre o nome do embaixador António Monteiro para a chefia da diplomacia.
O livro narra vários casos daqueles que são conhecidos em Belém como “episódios rocambolescos” do consulado de Santana, a começar logo no ato de posse, com Portas a ignorar que ficara com os Assuntos do Mar e a dificuldade do chefe do Governo em ler o discurso.
E ninguém ignora ou esquece o ruído causado por Henrique Chaves, até aí um indefetível de Santana, que bateu com a porta de forma tão despudorada, amplamente aproveitado pelo então comentador da TVI Rebelo de Sousa na sequência das críticas do ministro Adjunto Rui Gomes da Silva (dizia, por exemplo, que “nem o PS, o PCP e o Bloco juntos conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo) e o veto à “central de comunicação” que o Governo pretendia criar.
Sampaio justifica a “bomba atómica” (a dissolução do Parlamento) com a alteração da situação política, no que é corroborado pelo seu então conselheiro Alberto Laplaine Guimarães, no dizer do qual os empresários, que dantes defenderam a nomeação de Santana, já só queriam eleições.
O antigo Chefe de Estado recorda que empossou Santana Lopes contra a vontade da sua família política, o que até lhe custou amizades pessoais. E justifica-se:
“Eu não fiz em julho de 2004 aquilo que a minha gente queria que fizesse e houve mesmo quem me acusasse de traição ao meu eleitorado. Mas não há, de todo, nenhuma ligação entre a nomeação de julho e a dissolução de dezembro, que foi a hecatombe.”.
Dizendo ser “completamente mentira” a versão de que tudo fora arquitetado em Belém e alegando ter sido “uma situação concreta em cada momento” e, por fim, uma “situação de rutura”, Sampaio explicita:
“Ainda hoje há quem pense que foi tudo uma artimanha, uma dissolução clínica e conspirativa. Mas quem é que hoje em dia, em política, faz previsões a seis meses? E custou-me todas as críticas que se conhecem e uma amizade que durou anos a compor...”.
Mesmo permitindo a Santana um consulado de apenas poucos meses, o ex-Presidente garante que a dissolução “não foi vingança” e que “tinha boas relações pessoais” com o ex-Chefe do Governo. E escuda-se no comentário do ex-dirigente do PSD Pacheco Pereira, segundo o qual, nas legislativas subsequentes, “dois terços dos portugueses votaram contra o Santana”. E porfia:
“A minha relação com Santana era muito franca e cordial. Não tinha (nem tenho) nada de pessoal contra ele – tenho até estima. O Presidente tem de ter um diálogo com o Primeiro-Ministro na base da confiança e tive conversas muito positivas com ele. Pediu-me opinião várias vezes, dei-lhe conselhos francos, mas estive sempre preocupado com o desenrolar dos acontecimentos, que se precipitaram muito rapidamente até descambarem na confusão.”.
Sampaio reitera a defesa da bondade da decisão de devolver a 'palavra' ao povo, apesar de compreender a amargura de Santana, mas observou o pressuposto de que “de vez em quando é preciso dar voz ao povo” e na convicção de que percebera “qual era o sentimento do povo”:
“Entendo perfeitamente a decisão de Santana porque ninguém gosta de ver dissolvida uma Assembleia onde está em maioria, mas a verdade é que a maioria absoluta estava a desconjuntar-se” – confessa.
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Sem ter autoridade para desdizer as declarações de Jorge Sampaio, interrogo-me como é que aferiu que a maioria parlamentar estava a desfazer-se. Não se terá o então Presidente deixado arrastar pelo ruído – adveniente das declarações de ministros, de apartes de dirigentes socialdemocratas, dos comentários de Marcelo (não esqueço que disse que este governo representa o pior do pior de Guterres, que os ministros eram competentes, mas não para as funções que lhes foram confiadas ou que o grupo de secretários de Estado era mais competente que o dos ministros) e a supressão do programa de Marcelo na TVI. E criou um precedente ao dissolver um Parlamento onde havia uma maioria absoluta. Depois, o detentor do mais alto cargo público devia antever e entrever que, em política, muitas vezes, o que parece é. Ora, se até o discurso de empossamento do XVI Governo Constitucional previa a vigilância sobre a atuação do executivo em determinadas áreas que explicitava, como é que Sampaio pode garantir que isto não fora urdido em Belém? Eu, se fosse o Primeiro-Ministro empossado, o único enunciado que proferiria como resposta era o anúncio da apresentação do meu pedido de demissão!
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Santana Lopes, que acabou por digerir tudo o que aconteceu e até acabou por dizer que Sampaio veio a ter razão não gostou das atuais declarações: “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva”. E desafiou-o ontem na SIC Notícia:
“Se o Dr. Jorge Sampaio porventura quiser falar disto civilizadamente perante as câmaras de televisão, eu tenho todo o gosto”.
E contra-atacou:
“Compreendo que Jorge Sampaio tenha peso na consciência porque a decisão dele é que pôs o país à deriva”.
Veladamente, acusou Sampaio de ter oferecido a governação a alguém – José Sócrates. E disse:
“Eu acho que ele [Sampaio] deve viver nesse tormento. Essa dissolução deu origem àquilo de que andamos a falar todos os dias.”.
E disse serem “coisas de criança” as alegações de que ele e Durão já tinham arquitetado que o primeiro sucederia ao segundo no cargo, no momento de Durão rumar a Bruxelas.
Nas eleições legislativas de 2005, realizadas por efeito da dissolução do Parlamento, o PS, de Sócrates, obteve, com 45%, a sua primeira – e até agora única – maioria absoluta, enquanto o PSD, de Santana, se ficou por um dos seus piores resultados de sempre, 28,77%.
Agora, que José Sócrates enfrenta, com mais de duas dezenas de arguidos, a justiça no âmbito da “Operação Marquês”, processo que se arrasta e está na iminência de desfecho, Santana insinua que Sampaio está de consciência pesada, pelo que se justifica e torna a justificar.
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Mas o antigo Presidente não se fica pelas referências a Santana. Também se refere a António Guterres, revelando que este ficara “absolutamente à rasca” por Sampaio ter anunciado a candidatura a Belém à margem do PS e defendendo que foi a forma de “manter a independência até ao fim”. E afirma que foi Nuno Brederode Santos que o desafiou a avançar, em fevereiro de 1995, mais cedo do que pretendia, alegando que o PS se preparava para apoiar outro candidato.
Sampaio confessa que teve então um dos seus “impulsos” e acedeu a telefonar “de imediato” ao então líder do PS a dizer-lhe que iria anunciar a sua candidatura presidencial dentro de dias. Mas considera que Guterres acabaria por apoiá-la, mesmo se o tivesse feito mais tarde, até porque a isso se propusera antes de ser eleito secretário-geral do PS.
No livro, Sampaio releva ainda a preferência do seu antecessor em Belém por outro candidato. Com efeito, apesar de o considerar “um tipo sério”, Mário Soares achava que Sampaio era “muito hesitante, uma tortura”, além de não ter “alegria nem savoir-faire” – no que tinha razão. No entanto, rendeu-se à candidatura do socialista quando, uns meses depois, o convidou e à Maria José para jantar em sua casa no Campo Grande.
Era escusado vir agora, depois de Soares ter falecido, vir deselegantemente com esta ou porfiar a independência da candidatura presidencial. Formalmente foram e são todas independentes. E da área do PS vieram, além da sua: a de Soares e a de Zenha, em 1985; a de Mário Sottomayor Cardia, em 1996 (que não vingou); a de Manuel Alegre e Soares, em 2006; as de Manuel Alegre e de Fernando Nobre, em 2011; e as de Maria de Belém e Henrique Neto, em 2016.
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Também agora é redito que a demissão do ex-ministro Vara, em dezembro de 2000, resultara de proposta do ex-Chefe do Governo e não de exigência de Sampaio, segundo o que revela o constitucionalista Jorge Reis Novais no dito livro.
Armando Vara, Ministro da Juventude, estava debaixo de fogo das oposições na sequência das alegadas irregularidades na Fundação para a Prevenção e Segurança, criada quando era secretário de Estado da Administração Interna para promover a segurança rodoviária. Apesar de Guterres garantir que não soubera da sua criação, com financiamento público, a oposição acusou o governo de clientelismo político e pediu a demissão de Vara e do seu sucessor no cargo de secretário de Estado, Luís Patrão. Vara e Patrão demitiram-se na sequência desta polémica, tendo sido amplamente noticiado na Comunicação Social que aquela demissão fora exigida pelo Presidente da República, versão que, agora, Jorge Reis Novais vem clarificar. Todavia, o caso pouco muda de figura, já que, apesar de ter sido uma iniciativa de Guterres, comunicada numa audiência no Palácio de Belém, Sampaio se preparava para pressionar o Primeiro-Ministro com vista à saída dos dois governantes.
Com efeito, antes de receber Guterres, Jorge Sampaio chamou Reis Novais e pediu-lhe para preparar um texto. Diz o constitucionalista e então assessor de Sampaio:
“Pediu-me que fizesse o esboço de uma declaração, a pressionar a demissão do Vara, para ser divulgada a seguir à audiência. Mas para surpresa do Sampaio, o Guterres já vinha com uma proposta nesse sentido”.
Novais revela também que, durante a audiência, Guterres alinhara umas frases justificativas, que entregou a Sampaio; e que este, quando a reunião terminou, chamou de novo o assessor e deu-lhe o papel escrito por Guterres, a partir do qual preparou um comunicado da Presidência.
Contudo, o Presidente aconselhou a extinção da Fundação e apontou a “crise de autoridade” em que o então Chefe do Governo se deixou envolver, prometendo:
“Se não houver demissões, não estou em condições de ficar calado” […] “há comportamentos que são politicamente inaceitáveis num Estado de Direito”.
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É caso para perguntar para quê tanta explicação para tudo vir a bater no mesmo. Sampaio agiu como entendeu dever, querer e poder. Por mais voltas que se deem, ninguém se convence da genuinidade dos fumos que surgiram durante os seus dois mandatos presidenciais. Obviamente que a nomeação e a exoneração de membros do Governo partem sempre de propostas formais do Primeiro-Ministro. Não vale a pena dizer que o Presidente nada tem a ver com o caso, limitando-se apenas a assinar. Todos sabem que ele tenta influir em tudo o que puder e quiser.
Diferente de Aníbal: manda dizer e escrever enquanto este diz e escreve.
Se a moda pega, teremos de esperar que eles deixem o Palácio de Belém para sabermos de fonte segura o que por lá se passou. Assim não, senhores Jorge e Aníbal! Porque não falaram antes?
2017.03.15 – Louro de Carvalho

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