Com a devida vénia, discordo da
linha condutora da peça que o semanário Ecclesia,
de hoje (17 de março) inseriu sob o
título “4 anos de pontificado do Papa anti-herói”.
Não discuto
os factos, que falam por si. Discordo da conclusão vertida para a epígrafe do
referido texto.
Na verdade,
o referido semanário sublinha que Francisco completou, no passado dia 13,
quatro anos de pontificado, em que sobressaem as mensagens de abertura e
diálogo, a atenção aos mais desfavorecidos e as medidas de reforma interna. E releva
que “a mensagem passa por gestos concretos, como a visita a Amatrice, uma das
zonas afetadas pelos sismos no centro de Itália, a viagem a Lesbos, de onde
voltou com um grupo de refugiados, ou o encontro com líderes de várias
religiões, na cidade italiana de Assis, assinando uma declaração conjunta pela
paz que rejeita o terrorismo e o fundamentalismo”.
Mas poderia
ter referido que foi o rasgo do gesto do Papa em ir a Lampedusa que alertou a
Europa e o Mundo para a gravidade da crise dos refugiados, que a fugir das
terras da guerra e/ ou da fome com destino a países europeus, morriam nas águas
mediterrânicas, vítimas das consequências da travessia em condições de
precariedade ditadas pela exploração e especulação por parte daqueles que
pretendem lucrar à custa da miséria dos outros.
Fustigando a onda de populismo no Ocidente, o Papa não se cansa de sublinhar a
urgência da construção de “pontes”, em vez de muros que outros insistem em
construir, para impedir e anular a cultura do “medo” do outro que leva alguns a
escudarem-se nos muros que levantam – como não desiste de criticar a exploração
dos países mais pobres, os negócios da guerra, o comércio de pessoas, o tráfico
de órgãos humanos e o descarte dos que não se revelam úteis aos interesses
instalados. E vem o Papa argentino a condenar reiteradamente a economia que, inexorável,
mata sob a alçada do deus-dinheiro, a violência em nome da religião, a “loucura
homicida” do fundamentalismo (político e/ou religioso) tantas vezes a servir de pano de fundo à perseguição de minorias no
Médio Oriente e ao “martírio” dos cristãos em vários países.
Também
tem lançado alertas veementes contra a “globalização da indiferença” e os
perigos da concentração da riqueza, propondo a necessária alteração do
paradigma económico e financeiro internacional – proposta recebida teoricamente
com simpatia, mas a que se oferece a tradicional resistência à mudança,
sobretudo quando se trata de lucro, que se quer aumentar e que, por essa via,
corre o risco de diminuir. Ainda no passado dia 15, disse na Praça de São Pedro:
“O
trabalho dá dignidade, e os responsáveis dos povos e os governantes têm a
obrigação de fazer tudo a fim de que cada homem e cada mulher possam trabalhar
e assim erguer a cabeça e olhar os outros na cara com dignidade. Quem, com manobras financeiras e para fazer
negociações não totalmente claras, fecha fábricas e empresas, privando os
homens do seu trabalho, comete um pecado gravíssimo.”.
O referido semanário Ecclesia
destaca, no campo do ecumenismo, rasgos notáveis deste Santo Padre, como: o encontro histórico com Cirilo,
o patriarca ortodoxo de Moscovo, em Cuba; a viagem à Suécia, para assinalar com
os luteranos os 500 anos da reforma protestante; e a visita à igreja anglicana
de Roma (a primeira
visita de um Papa).
A nível
interno, têm-se gerado algumas críticas a várias atuações do Pontífice, severamente
multiplicadas no atinente a posições apresentadas na exortação apostólica
pós-sinodal ‘Amoris Laetitia’, que
retém a súmula dos resultados de dois Sínodos sobre a família (2014 e 2015), sobretudo no respeitante ao
caminho de “discernimento” a dispor a católicos divorciados que voltaram a
casar civilmente, podendo eventualmente conduzir ao acesso
à comunhão.
E
Francisco sabe que uma das pedras de toque para o dinamismo de uma Ecclesia semper reformanda é a reforma da
Cúria Romana, que o Bispo de Roma vem a empreender com a ajuda do Conselho de
Cardeais dos cinco continentes e que já deu como resultado a criação de dois
dicastérios e várias alterações na administração económico-financeira da Santa
Sé e do Estado do Vaticano, além de medidas no acompanhamento e prevenção de
casos de abusos sexuais, nomeadamente de menores e até crianças, sobretudo por
parte de elementos do clero.
Depois
da esfuziante Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Rio de Janeiro, em 2013, o Papa presidiu, em
2016, à JMJ em Cracóvia e passou em silêncio reflexivo e orante pelos campos de
concentração nazi de Auschwitz-Birkenau.
No
seu pontificado, o Papa, que, desde o início, alojava no coração e no discurso,
o sentido da misericórdia e o cuidado josefino da guarda de Deus, do próximo e
do Planeta como a Casa Comum, publicou a encíclica Laudato SI’, articulando a defesa ecológica da Terra com a defesa
económica dos pobres – para quem reclama “terra, teto e trabalho –, reforçando
a força da ecoeconomia bem orientada; e conduziu a Igreja Católica na vivência do
seu terceiro Ano Santo extraordinário de uma história mais que bimilenar, o
Jubileu da Misericórdia, para, nas palavras do próprio Papa, acentuar que “a
misericórdia é o nome de Deus” e recordar a importância do “perdão”.
Simbolicamente, foi neste ano que se celebrou a canonização da Missionária da
Caridade Madre Teresa de Calcutá sob a designação de Santa Teresa de Calcutá.
E não podemos
olvidar as palavras e os esforços em prol da paz recorrentemente evidenciados
pelo Peregrino da Paz, quer pela visita a lugares verberados pela guerra, pela viagem
à Terra Santa e convite à oração conjunta dos líderes do Médio Oriente (palestino e israelita) no Vaticano, quer pelo desejo de ir
ao Sudão do Sul com o anglicano arcebispo de Cantuária.
***
Depois
deste arrazoado, em parte coincidente com o de Ecclesia, convém esclarecer em que aspeto não devo concordar com a
epígrafe referenciada. É certo que “Francisco disse,
em entrevista a um periódico alemão [o ‘Die Zeit’], que
não gosta da ‘idealização’ da sua figura, ele que já foi representado como um
super-herói”. E confessou que é um pecador, limitado, como referiu, em janeiro
passado ao ‘El País’, que apenas quer
uma Igreja mais “próxima” e que rejeita a ideia de “revolução” ou de ser
“incompreendido”. Não cabe ao próprio, mesmo que seja
o Papa, classificar interpretativamente o peso da sua obra. Se lhe é dado fazer
o seu juízo de valor, a apreciação rotulante cabe aos analistas. Então, uma
personalidade que protagoniza toda aquela ação – e poderia ter sido acrescentado
muito mais – não é herói? É legítimo rotulá-la de anti-herói? Será lícito
dar-lhe um estatuto de herói pícaro? Francisco também diz que não é um teólogo,
o que já tentei demonstrar em contrário. E, entenda-se, nestas matérias o Papa
não é infalível, nem que fale ou escreva em latim.
Em
termos parentéticos, devo recordar o que vem referido na revista Sábado, de Bento XVI, justificando porque
escreveu e pronunciou em latim a declaração de renúncia ao Pontificado:
“Porque algo assim tão
importante se faz em latim. E o latim é aquela língua cujo domínio me permite
escrever decentemente. Também poderia ter escrito em italiano, mas correria o
risco de cometer alguns erros.”.
Entre
os gregos da Antiguidade, o herói era um semideus. Obviamente que Francisco não
é um semideus, mas está colocado por Cristo à frente da Igreja.
Porém,
no conceito atual, herói é aquele que pratica ações de grande risco para a própria
vida. Ora, o Papa está fortemente cercado por críticas provindas de vários
quadrantes, mesmo de setores que lhe devem e expressamente lhe prometeram
obediência (sobretudo
os eminentíssimos cardeais). E ele avança com as ideias e as reformas. Até muitos dos
elogios que recebe de alguns configuram presente envenenado, pois, se o Papa
reitera doutrina da Igreja em matéria de fé e costumes ou recusa a ordenação
sacerdotal de mulheres e a entrega de funções presbiterais a sacerdotes casados
– e o casamento de pessoas do mesmo sexo, o aborto ou a eutanásia – lá virão as
vozes costumeiras a clamar que a Igreja (e, a meia voz, o Papa) não acompanha os tempos.
Até
para acolher o sumo positivo da tradição eclesial, e mesmo da eclesiástica, o
Papa tem de ser herói. E, no sentido do heroísmo, corre o risco de agradar a
todos, o que poria em causa a credibilidade evangélica da sua ação, o de desagradar
a muitos e o de não agradar a ninguém.
Espanta-me
que aqueles que admiram Francisco pela aragem nova que trouxe à Igreja e ao
Mundo agora alinhem pelo seu alegado anti-heroísmo.
***
Como há três anos, anotei a justa
apreciação do pontificado de Bento XVI por parte de Ondina Matos, da diocese de
Aveiro, hoje apraz-me relevar o testemunho justo de Guilherme d’Oliveira Martins relativamente
aos quatro anos de pontificado do Papa Francisco.
O
presidente do Centro Nacional da Cultura e Presidente da Comissão Executiva da
Fundação Calouste Gulbenkian diz que estes anos vieram retomar por parte de
Francisco, “com elementos de mudança”, a linhas fundamentais de antecessores
como João XXIII, João Paulo II e Bento XVI. Por outras palavras, este Papa
segue as linhas fundamentais dos antecessores e insufla-lhes elementos de
mudança. Não esqueço que o próprio Francisco chegou a referir ter-se inspirado
em Paulo VI e denominou o documento da Aparecida (redigido por Bergoglio) como a Evangelii Nuntiandi (exortação apostólica, de
8-12-1975, de Paulo VI sobre a evangelização) para a América latina.
E
D’Oliveira Martins destaca o modo como o Pontífice tem procurado prestar
atenção aos “sinais dos tempos” e à “causa da paz”, na via de João XXIII e de
João Paulo II, bem como a forma como se tem colocado no centro do debate sobre
a justiça social e a economia. E, neste campo o comentador evoca a doutrina social
defendida já por Bento XVI, quando diz:
“É preciso não esquecermos
uma encíclica extraordinariamente importante e que está bem presente neste
pontificado, que é a ‘Caritas in veritate’,
do Papa Bento XVI, muito clara, muito dura, contra a economia de casino, contra
o curtíssimo prazo, contra as ilusões, contra o mercado e uma economia que
mata”.
Julga
que os “elementos de mudança” na ação de Francisco podem ser separados “em dois
domínios”: a “organização” da Santa Sé; e a parte mais “pastoral”. E sublinha o
trabalho desenvolvido na reestruturação da Igreja Católica e do Vaticano, de
modo a “não haver qualquer névoa relativamente ao cumprimento estrito dos
princípios”, em matérias como o combate ao crime financeiro e à pedofilia – o que
remete para alguns incómodos naturalmente, mas são exatamente os mesmos
incómodos que Jesus Cristo teve ao chegar ao Templo e ver os vendilhões. E diz
que o Papa não esquece a atitude clara e inequívoca que Jesus tomou então.
***
Ser
o Papa sempre foi e será um ónus, mas configura uma missão de liderança na
sinodalidade que mobiliza a interajuda e confirma a fé dos irmãos in Ecclesia, mesmo quando usa da palavra
em areópagos internacionais, como a ONU, o Parlamento Europeu e o Conselho da
Europa ou em lugares nevrálgicos duma nação, como o Congresso norte-americano.
2017.03.17 – Louro de
Carvalho
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