sexta-feira, 17 de março de 2017

Não, não é assim. Ele é mesmo herói!

Com a devida vénia, discordo da linha condutora da peça que o semanário Ecclesia, de hoje (17 de março) inseriu sob o título “4 anos de pontificado do Papa anti-herói”.

Não discuto os factos, que falam por si. Discordo da conclusão vertida para a epígrafe do referido texto.

Na verdade, o referido semanário sublinha que Francisco completou, no passado dia 13, quatro anos de pontificado, em que sobressaem as mensagens de abertura e diálogo, a atenção aos mais desfavorecidos e as medidas de reforma interna. E releva que “a mensagem passa por gestos concretos, como a visita a Amatrice, uma das zonas afetadas pelos sismos no centro de Itália, a viagem a Lesbos, de onde voltou com um grupo de refugiados, ou o encontro com líderes de várias religiões, na cidade italiana de Assis, assinando uma declaração conjunta pela paz que rejeita o terrorismo e o fundamentalismo”.

Mas poderia ter referido que foi o rasgo do gesto do Papa em ir a Lampedusa que alertou a Europa e o Mundo para a gravidade da crise dos refugiados, que a fugir das terras da guerra e/ ou da fome com destino a países europeus, morriam nas águas mediterrânicas, vítimas das consequências da travessia em condições de precariedade ditadas pela exploração e especulação por parte daqueles que pretendem lucrar à custa da miséria dos outros.

Fustigando a onda de populismo no Ocidente, o Papa não se cansa de sublinhar a urgência da construção de “pontes”, em vez de muros que outros insistem em construir, para impedir e anular a cultura do “medo” do outro que leva alguns a escudarem-se nos muros que levantam – como não desiste de criticar a exploração dos países mais pobres, os negócios da guerra, o comércio de pessoas, o tráfico de órgãos humanos e o descarte dos que não se revelam úteis aos interesses instalados. E vem o Papa argentino a condenar reiteradamente a economia que, inexorável, mata sob a alçada do deus-dinheiro, a violência em nome da religião, a “loucura homicida” do fundamentalismo (político e/ou religioso) tantas vezes a servir de pano de fundo à perseguição de minorias no Médio Oriente e ao “martírio” dos cristãos em vários países.
Também tem lançado alertas veementes contra a “globalização da indiferença” e os perigos da concentração da riqueza, propondo a necessária alteração do paradigma económico e financeiro internacional – proposta recebida teoricamente com simpatia, mas a que se oferece a tradicional resistência à mudança, sobretudo quando se trata de lucro, que se quer aumentar e que, por essa via, corre o risco de diminuir. Ainda no passado dia 15, disse na Praça de São Pedro:
“O trabalho dá dignidade, e os responsáveis dos povos e os governantes têm a obrigação de fazer tudo a fim de que cada homem e cada mulher possam trabalhar e assim erguer a cabeça e olhar os outros na cara com dignidade. Quem, com manobras financeiras e para fazer negociações não totalmente claras, fecha fábricas e empresas, privando os homens do seu trabalho, comete um pecado gravíssimo.”.
O referido semanário Ecclesia destaca, no campo do ecumenismo, rasgos notáveis deste Santo Padre, como: o encontro histórico com Cirilo, o patriarca ortodoxo de Moscovo, em Cuba; a viagem à Suécia, para assinalar com os luteranos os 500 anos da reforma protestante; e a visita à igreja anglicana de Roma (a primeira visita de um Papa).
A nível interno, têm-se gerado algumas críticas a várias atuações do Pontífice, severamente multiplicadas no atinente a posições apresentadas na exortação apostólica pós-sinodal ‘Amoris Laetitia’, que retém a súmula dos resultados de dois Sínodos sobre a família (2014 e 2015), sobretudo no respeitante ao caminho de “discernimento” a dispor a católicos divorciados que voltaram a casar civilmente, podendo eventualmente conduzir ao acesso à comunhão.
E Francisco sabe que uma das pedras de toque para o dinamismo de uma Ecclesia semper reformanda é a reforma da Cúria Romana, que o Bispo de Roma vem a empreender com a ajuda do Conselho de Cardeais dos cinco continentes e que já deu como resultado a criação de dois dicastérios e várias alterações na administração económico-financeira da Santa Sé e do Estado do Vaticano, além de medidas no acompanhamento e prevenção de casos de abusos sexuais, nomeadamente de menores e até crianças, sobretudo por parte de elementos do clero. 
Depois da esfuziante Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Rio de Janeiro, em 2013, o Papa presidiu, em 2016, à JMJ em Cracóvia e passou em silêncio reflexivo e orante pelos campos de concentração nazi de Auschwitz-Birkenau.
No seu pontificado, o Papa, que, desde o início, alojava no coração e no discurso, o sentido da misericórdia e o cuidado josefino da guarda de Deus, do próximo e do Planeta como a Casa Comum, publicou a encíclica Laudato SI’, articulando a defesa ecológica da Terra com a defesa económica dos pobres – para quem reclama “terra, teto e trabalho –, reforçando a força da ecoeconomia bem orientada; e conduziu a Igreja Católica na vivência do seu terceiro Ano Santo extraordinário de uma história mais que bimilenar, o Jubileu da Misericórdia, para, nas palavras do próprio Papa, acentuar que “a misericórdia é o nome de Deus” e recordar a importância do “perdão”. Simbolicamente, foi neste ano que se celebrou a canonização da Missionária da Caridade Madre Teresa de Calcutá sob a designação de Santa Teresa de Calcutá.
E não podemos olvidar as palavras e os esforços em prol da paz recorrentemente evidenciados pelo Peregrino da Paz, quer pela visita a lugares verberados pela guerra, pela viagem à Terra Santa e convite à oração conjunta dos líderes do Médio Oriente (palestino e israelita) no Vaticano, quer pelo desejo de ir ao Sudão do Sul com o anglicano arcebispo de Cantuária.

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Depois deste arrazoado, em parte coincidente com o de Ecclesia, convém esclarecer em que aspeto não devo concordar com a epígrafe referenciada. É certo que “Francisco disse, em entrevista a um periódico alemão [o ‘Die Zeit’], que não gosta da ‘idealização’ da sua figura, ele que já foi representado como um super-herói”. E confessou que é um pecador, limitado, como referiu, em janeiro passado ao ‘El País’, que apenas quer uma Igreja mais “próxima” e que rejeita a ideia de “revolução” ou de ser “incompreendido”. Não cabe ao próprio, mesmo que seja o Papa, classificar interpretativamente o peso da sua obra. Se lhe é dado fazer o seu juízo de valor, a apreciação rotulante cabe aos analistas. Então, uma personalidade que protagoniza toda aquela ação – e poderia ter sido acrescentado muito mais – não é herói? É legítimo rotulá-la de anti-herói? Será lícito dar-lhe um estatuto de herói pícaro? Francisco também diz que não é um teólogo, o que já tentei demonstrar em contrário. E, entenda-se, nestas matérias o Papa não é infalível, nem que fale ou escreva em latim.

Em termos parentéticos, devo recordar o que vem referido na revista Sábado, de Bento XVI, justificando porque escreveu e pronunciou em latim a declaração de renúncia ao Pontificado:
“Porque algo assim tão importante se faz em latim. E o latim é aquela língua cujo domínio me permite escrever decentemente. Também poderia ter escrito em italiano, mas correria o risco de cometer alguns erros.”.
Entre os gregos da Antiguidade, o herói era um semideus. Obviamente que Francisco não é um semideus, mas está colocado por Cristo à frente da Igreja.
Porém, no conceito atual, herói é aquele que pratica ações de grande risco para a própria vida. Ora, o Papa está fortemente cercado por críticas provindas de vários quadrantes, mesmo de setores que lhe devem e expressamente lhe prometeram obediência (sobretudo os eminentíssimos cardeais). E ele avança com as ideias e as reformas. Até muitos dos elogios que recebe de alguns configuram presente envenenado, pois, se o Papa reitera doutrina da Igreja em matéria de fé e costumes ou recusa a ordenação sacerdotal de mulheres e a entrega de funções presbiterais a sacerdotes casados – e o casamento de pessoas do mesmo sexo, o aborto ou a eutanásia – lá virão as vozes costumeiras a clamar que a Igreja (e, a meia voz, o Papa) não acompanha os tempos.
Até para acolher o sumo positivo da tradição eclesial, e mesmo da eclesiástica, o Papa tem de ser herói. E, no sentido do heroísmo, corre o risco de agradar a todos, o que poria em causa a credibilidade evangélica da sua ação, o de desagradar a muitos e o de não agradar a ninguém.
Espanta-me que aqueles que admiram Francisco pela aragem nova que trouxe à Igreja e ao Mundo agora alinhem pelo seu alegado anti-heroísmo.
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Como há três anos, anotei a justa apreciação do pontificado de Bento XVI por parte de Ondina Matos, da diocese de Aveiro, hoje apraz-me relevar o testemunho justo de Guilherme d’Oliveira Martins relativamente aos quatro anos de pontificado do Papa Francisco.
O presidente do Centro Nacional da Cultura e Presidente da Comissão Executiva da Fundação Calouste Gulbenkian diz que estes anos vieram retomar por parte de Francisco, “com elementos de mudança”, a linhas fundamentais de antecessores como João XXIII, João Paulo II e Bento XVI. Por outras palavras, este Papa segue as linhas fundamentais dos antecessores e insufla-lhes elementos de mudança. Não esqueço que o próprio Francisco chegou a referir ter-se inspirado em Paulo VI e denominou o documento da Aparecida (redigido por Bergoglio) como a Evangelii Nuntiandi (exortação apostólica, de 8-12-1975, de Paulo VI sobre a evangelização) para a América latina.   
E D’Oliveira Martins destaca o modo como o Pontífice tem procurado prestar atenção aos “sinais dos tempos” e à “causa da paz”, na via de João XXIII e de João Paulo II, bem como a forma como se tem colocado no centro do debate sobre a justiça social e a economia. E, neste campo o comentador evoca a doutrina social defendida já por Bento XVI, quando diz:
“É preciso não esquecermos uma encíclica extraordinariamente importante e que está bem presente neste pontificado, que é a ‘Caritas in veritate’, do Papa Bento XVI, muito clara, muito dura, contra a economia de casino, contra o curtíssimo prazo, contra as ilusões, contra o mercado e uma economia que mata”.
Julga que os “elementos de mudança” na ação de Francisco podem ser separados “em dois domínios”: a “organização” da Santa Sé; e a parte mais “pastoral”. E sublinha o trabalho desenvolvido na reestruturação da Igreja Católica e do Vaticano, de modo a “não haver qualquer névoa relativamente ao cumprimento estrito dos princípios”, em matérias como o combate ao crime financeiro e à pedofilia – o que remete para alguns incómodos naturalmente, mas são exatamente os mesmos incómodos que Jesus Cristo teve ao chegar ao Templo e ver os vendilhões. E diz que o Papa não esquece a atitude clara e inequívoca que Jesus tomou então.
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Ser o Papa sempre foi e será um ónus, mas configura uma missão de liderança na sinodalidade que mobiliza a interajuda e confirma a fé dos irmãos in Ecclesia, mesmo quando usa da palavra em areópagos internacionais, como a ONU, o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa ou em lugares nevrálgicos duma nação, como o Congresso norte-americano.

2017.03.17 – Louro de Carvalho

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