quarta-feira, 29 de março de 2017

A Doutrina Social da Igreja implica um discernimento cristão

A propósito do cinquentenário da publicação da Populorum Progressio (PP), muitos foram aduzindo que a análise que ela faz da realidade era adequada ao tempo da publicação e que as suas linhas gerais mantêm forte atualidade e pertinência. E veem que a Doutrina Social da Igreja (DSI) é aprofundada e ampliada, com base em análises atualizadas, por documentos de João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Parece, no entanto, estar a esquecer-se um outro documento de Montini, não menos importante e produzido 4 anos depois da publicação da PP.
Octogesima Adveniens é o incipit que dá o nome à Carta Apostólica datada de 14 de maio de 1971, de Paulo VI, comemorativa dos 80 anos da Encíclica Rerum Novarum (de Leão XIII), que, ampliando e aprofundando a DSI, trata sobretudo do compromisso sociopolítico dos cristãos. Analisando as várias ideologias – as correntes socialistas (n.º 31), o marxismo (n.os 32-34) e o liberalismo (n.º 35), que exigem um discernimento cristão (n.º 36) – aborda o renascimento das utopias com as suas virtualidades e os seus riscos (n.º 37).
Sendo uma carta dirigida ao Cardeal Maurício Roy, Presidente do Conselho dos Leigos e da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, parece revestir-se duma índole menos solene que a encíclica. No entanto, torna-se um dos documentos básicos da DSI. Não é uma encíclica, com o que significa de documento solene do magistério pontifício, a meu ver por três ordens de razões: Paulo VI abandonara já o recurso às encíclicas e optara por instrumentos menos solenes e majestáticos como a carta apostólica e sobretudo a exortação apostólica (provavelmente mais ao jeito de Jesus de Nazaré); o destinatário da carta é o Cardeal Presidente da Pontifícia Comissão Justiça e Paz (organismo a que dizem respeito estas matérias); e, além de fazer a análise da realidade, levar à produção de um juízo ditado pelo discernimento à luz do Evangelho e da leitura dos sinais dos tempos e incitar ação – é o método do VER, JULGAR e AGIR, da Ação Católica – o texto pretendia ser um incentivo à discussão do tema da Justiça no Mundo na II Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de 30 de setembro a 6 de novembro de 1971, juntamente com o tema do sacerdócio ministerial, de que resultou um documento sobre a Justiça no Mundo, datado de 30 de novembro daquele ano e assinado pelo Cardeal Jean Villot, Secretário de Estado.
Com efeito, Paulo VI, que se formatou antes do Vaticano II (ainda teve cerimónia de coroação no início do Pontificado, usou a tiara e foi transportado na sede gestatória), rapidamente aprendeu com o Concílio em que participou e a que presidiu nas II, III e IV sessões, abandonando tais símbolos de poder e solenidade e assumindo os valores da colegialidade, delegação de competências e sinodalidade.
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O contexto
No atinente ao contexto em que surgiu a Carta Pastoral, é de referir que a questão social tinha adquirido uma dimensão global. Eram já alarmantes as condições laborais da produção, a iniquidade das relações internacionais, o consumismo em grandes setores da população e o atraso agropecuário persistente. Além disso, agudizavam-se outros problemas conexos com os anteriores, tais como: a explosão demográfica, o desemprego, a injustiça social, os egoísmos instalados, o feminismo exacerbado, as discriminações raciais, as emigrações desordenadas, o impacto incontrolado dos meios de comunicação, entre outros.
Neste marco histórico, alguns dirigentes cristãos – leigos e religiosos – inclinavam-se a enveredar impacientes por caminhos revolucionários violentos e armados. Pensavam que podiam lançar mão do revolucionário método de análise e práxis para ver as grandes diferenças sociais e, em consequência, penetrar nesse dinamismo sem admitir os postulados filosóficos e ideológicos do marxismo e sem cair nas consequências ditatoriais do mesmo. Também era o tempo em que alguns países iam adotando diversas versões das chamadas economias mistas com que se experimentavam diversos graus de intervenção governamental na socioeconomia.
Neste momento de confusão era urgente que o Magistério da Igreja desse alguma orientação seguir, ou não, em busca dos remédios para os males sociais no quadro de uma ética que permeasse uma sociedade, justa, responsável, livre e pacífica. Aos cristãos Paulo VI fornece linhas de orientação para assinalar escolhos e navegar com afoiteza nestes tempos tempestuosos.
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Estrutura e conteúdo
A Carta Apostólica, com 52 números, está subdividida em quatro capítulos, preenchidos com o desenvolvimento de tópicos, dispostos da seguinte forma:
Parte duma relativamente extensa introdução (1-7), que se inicia com um vocativo epistolar dirigido ao Cardeal Roy e que, chamando a atenção para a importância do 80.º aniversário da Rerum Novarum, “cuja mensagem continua a inspirar a ação em ordem à justiça social”, refere que a efeméride nos animaa retomar e a prosseguir” o ensino dos seus predecessores, “em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação” e assegura que “a Igreja caminha, de facto, juntamente com a humanidade e compartilha a sua sorte no seio da história”. E o Papa sustenta que a Igreja, ao anunciar aos homens a Boa Nova do amor de Deus e da salvação em Cristo, “ilumina também a sua atividade com a luz do Evangelho e ajuda-os, deste modo, a corresponderem aos desígnios divinos do amor e a realizarem a plenitude das suas aspirações” (n.º 1). Reconhece a sensibilidade cada vez maior na busca de uma maior justiça (n.º 2), não só no meio das comunidades cristãs, mas também no mundo inteiro; aponta a diversidade das situações dos cristãos no mundo (nos 3-4); enuncia a mensagem específica da Igreja (n.os 5-6); e releva a amplidão das mudanças atuais (n.º 7).
Depois, vem o capítulo I, dedicado aos NOVOS PROBLEMAS SOCIAIS (n.os 8-21), com os itens seguintes: a urbanização (n.os 8-9); os cristãos na cidade (n.os 10-12); os jovens e o lugar da mulher (n.º 13); os trabalhadores (n.º 14); as vítimas das mudanças (n.º 15); as discriminações (n.º 16); o direito à emigração (n.º 17); a criação de postos de trabalho (n.os 18-19); os meios de comunicação social (n.º 20); o meio ambiente (n.º 21). É de notar a referência ao meio ambiente de que tanto se fala hoje como sendo um problema. Sobre isto o texto explana:
“À medida que o horizonte do homem assim se modifica, a partir das imagens que se selecionam para ele, uma outra transformação começa a fazer-se sentir, consequência tão dramática quanto inesperada da atividade humana. De um momento para outro, o homem toma consciência dela: por motivo da exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação. Não só já o ambiente material se torna uma ameaça permanente, com poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto; é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim, para o dia de amanhã, um ambiente global, que poderá tornar-se-lhe insuportável. Problema social de envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana. O cristão deve voltar-se para estas perspetivas novas, para assumir a responsabilidade, juntamente com os outros homens, por um destino, na realidade, já comum.”.
Como se vê, não se tem inventado muito nos últimos anos!
O capítulo II aborda a temática das ASPIRAÇÕES FUNDAMENTAIS E CORRENTES DE IDEIAS (n.os 22-41), desenvolvendo itens como: as vantagens e limitações dos reconhecimentos jurídicos (n.º 23); a sociedade política (n.os 24-25); as ideologias e liberdade humana (n.os 26-29); os movimentos históricos (n.º 30); a atração das correntes socialistas (n.º 31); a evolução histórica do marxismo (n.os 32-34); a ideologia liberal (n.º 35); o discernimento cristão (n.º 36); o renascer das utopias (n.º 37); a interrogação das ciências sobre o homem (n.os 38-40); e a ambiguidade do progresso (n.º 41).
O n.º 22 é uma espécie de justificação do capítulo e introdução aos itens que são abordados, exprimindo-se nos termos seguintes:
Ao mesmo tempo que o progresso científico e técnico continua alterando profundamente a paisagem do homem, bem como os seus próprios modos de conhecer, de trabalhar, de consumir e de ter relações, exprime-se, cada vez mais nítida, nestes novos contextos, uma dupla aspiração, mais viva à medida que se desenvolvem a sua informação e a sua educação: a aspiração à igualdade e a aspiração à participação; trata-se de dois aspectos da dignidade do homem e da sua liberdade”.
O capítulo III, numa ótica de discernimento aborda a temática OS CRISTÃOS PERANTE ESTES NOVOS PROBLEMAS (n.os 42-47), com o desenvolvimento dos tópicos seguintes: o dinamismo da doutrina social da Igreja (n.º 42); para uma maior justiça (n.os 43-44); a mudança de estruturas (n.º 45), pois, embora necessária, não basta a mudança individual; o significado cristão da ação política (n.º 46); e a compartilha das responsabilidades (n.º 47).
E, finalmente, o capítulo IV lança o APELO À AÇÃO (n.os 48-52), com dois itens: a necessidade de se comprometer na ação (n.os 48-49); e pluralismo das opções (n.os 50-52).
Este último item levou alguns a subtitular a Octgogesima Adveniens como sendo sobre o pluralismo das opções políticas dos cristãos – o que seria redutor.
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Considera o Papa que, sendo tão diversas as situações das diversas comunidades católicas, não se podem dar linhas concretas de ação, mas se deve discernir em cada lugar o que é melhor para agir e pôr em prática as exigências evangélicas em cada contexto e face a cada problemática. Propõe-se iluminar os diversos problemas sociais que, por sua complexidade e amplitude, são verdadeiramente preocupantes. Escreveu a Carta Pastoral precisamente para ir ao encontro dos problemas novos que menciona – a urbanização, a situação dos jovens, da mulher, dos trabalhadores, as discriminações, os meios de comunicação e o meio ambiente – e, iluminando, à luz do Evangelho, a análise dos novos problemas sociais, dá diretrizes para a sua solução e orientações sobre o pluralismo na vida política.
O Pontífice reconhece que o crescimento e o progresso em diversos campos causam a crescente aspiração à igualdade e à participação mais ativa, o que fica patente na elaboração de novos códigos de direitos humanos e nos acordos internacionais que se têm firmado. Não obstante, sustenta que muito falta ainda para que as leis estejam adequadas às necessidades da época e que a desigualdade é a principal causa dos problemas sociais.
Paulo VI afirma que a sociedade política tende cada vez mais para modelos democráticos, mas há de estar baseada num projeto conexo com a vocação humana e suas expressões na sociedade sem impor nenhuma ideologia. Verificando a diversidade de situações dos cristãos no mundo, convoca-os para um pluralismo ético na ação. Porém, reitera que os católicos não podem aderir a ideologias opostas aos princípios evangélicos, como o marxismo eivado do materialismo histórico e o liberalismo ateu. Detém-se em examinar a evolução das ideologias, em especial do socialismo, do marxismo e da chamada “ideologia liberal”. E apresenta criticamente as ciências humanas no mesmo nível das ideologias, por submeterem a exame os conhecimentos que se têm sobre o homem, mas tanto os seus métodos como os seus pressupostos não lhes permitirem dar as respostas globais que pretendem oferecer. Assim, pode prevalecer a ambiguidade do progresso material.
Reconhece o Papa um chamamento, a nível universal, à prática duma maior justiça. Faz um juízo sobre as ideias sociais que fundamentam as tendências contemporâneas, que implicam a atividade económica e a dignidade das pessoas. Refere-se com toda a clareza ao liberalismo, ao marxismo e certas correntes teológicas da libertação. Defende o direito e o dever a participar na vida social. Fala de ação política sã.
Contém, pois, a Carta Pastoral a confirmação e a ampliação da DSI: maior justiça e uma presença dos cristãos na ação política, com uma participação ativa na responsabilidade das diversas formas do Estado. Em suma, as suas ideias basilares são: a ampliação da doutrina social da Igreja; pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições; o modelo democrático e o modelo socialista poderiam favorecer os povos se se aplicassem com verdadeiros propósitos.
*Atualidade da Octogesima Adveniens
A participação política é um dever de todos os homens. Mas devemos hoje continuar a interrogar-nos: se todos os sistemas socioeconómicos podem ser aceites por um cristão; se todas as políticas e estratégias são válidas, prescindindo da sua base ideológica; que critérios devemos assumir na busca de soluções para os problemas atuais no seu conjunto e cada um em particular. Na verdade, todos os cidadãos têm uma obrigação social de participação política no país, com vista a aliviar as necessidades dos pobres, mas os homens de empresa têm-na por maioria de razão, pela situação privilegiada que possuem e o seu impacto mais eficaz.
Hoje são válidos os ensinamentos pontifícios, mesmo depois da queda dos socialismos reais, para não se cair no neoliberalismo ou em extremismos similares. É bom recordar que todos somos responsáveis por todos e por cada um e que não podemos nem devemos permanecer indiferentes, quais espectadores passivos da situação económica e social dos demais.
Em suma, na atualidade, a democracia, que todos dizem professar, é só uma palavra e não vivemos numa democracia sólida e abrangente; as injustiças sociais evidenciam-se no tratamento que se dá à pessoa humana no trabalho, na migração, na saída da pátria, na pobreza, na fome, na guerra, na educação, na saúde, na habitação, no comércio, na cultura e na segurança social; campeia a economia de casino, a atitude da exploração e do descarte; destrói-se o Planeta; e as tendências religiosas perdem-se cada vez mais – perde-se a fé.
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Em contraponto, surgem sinais evidentes de preocupação pelos outros; evidenciam-se mostras de abnegação e solidariedade; superabundam os focos de busca do absoluto, de abertura ao transcendente e de entrega à espiritualidade; e cresce a busca de justiça, equidade e cooperação. É, porém, necessário ler os sinais de esperança e ser coerente com aquilo em que se acredita!

2017.03.29 – Louro de Carvalho   

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