A propósito do cinquentenário da publicação da Populorum Progressio (PP), muitos foram aduzindo que
a análise que ela faz da realidade era adequada ao tempo da publicação e que as
suas linhas gerais mantêm forte atualidade e pertinência. E veem que a Doutrina Social da Igreja (DSI) é aprofundada e ampliada, com base em análises atualizadas,
por documentos de João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Parece, no entanto,
estar a esquecer-se um outro documento de Montini, não menos importante e
produzido 4 anos depois da publicação da PP.
Octogesima Adveniens é o incipit que dá o nome à Carta Apostólica datada de 14 de maio de 1971, de Paulo VI, comemorativa dos 80 anos da
Encíclica Rerum Novarum (de Leão XIII), que,
ampliando e aprofundando a DSI, trata sobretudo do compromisso sociopolítico
dos cristãos. Analisando as várias ideologias – as correntes socialistas (n.º 31), o marxismo (n.os 32-34) e o liberalismo (n.º 35),
que exigem um discernimento cristão (n.º 36)
– aborda o renascimento das utopias com as suas virtualidades e os seus riscos
(n.º 37).
Sendo uma
carta dirigida ao Cardeal Maurício Roy, Presidente do Conselho dos Leigos e da
Pontifícia Comissão Justiça e Paz,
parece revestir-se duma índole menos solene que a encíclica. No entanto,
torna-se um dos documentos básicos da DSI. Não é uma encíclica, com o que
significa de documento solene do magistério pontifício, a meu ver por três
ordens de razões: Paulo VI abandonara já o recurso às encíclicas e optara por
instrumentos menos solenes e majestáticos como a carta apostólica e sobretudo a
exortação apostólica (provavelmente
mais ao jeito de Jesus de Nazaré); o destinatário da carta é o Cardeal Presidente da
Pontifícia Comissão Justiça e Paz (organismo a que dizem respeito estas
matérias); e, além de
fazer a análise da realidade, levar à produção de um juízo ditado pelo
discernimento à luz do Evangelho e da leitura dos sinais dos tempos e incitar
ação – é o método do VER, JULGAR e AGIR, da Ação Católica – o texto pretendia
ser um incentivo à discussão do tema da Justiça
no Mundo na II Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, de 30 de setembro
a 6 de novembro de 1971, juntamente com o tema do sacerdócio ministerial, de
que resultou um documento sobre a Justiça
no Mundo, datado de 30 de novembro daquele ano e assinado pelo Cardeal Jean
Villot, Secretário de Estado.
Com efeito,
Paulo VI, que se formatou antes do Vaticano II (ainda teve cerimónia de coroação no início do
Pontificado, usou a tiara e foi transportado na sede gestatória), rapidamente aprendeu com o
Concílio em que participou e a que presidiu nas II, III e IV sessões,
abandonando tais símbolos de poder e solenidade e assumindo os valores da
colegialidade, delegação de competências e sinodalidade.
***
O
contexto
No
atinente ao contexto em que surgiu a Carta Pastoral, é de referir que a
questão social tinha adquirido uma dimensão
global. Eram já alarmantes as condições laborais da produção, a iniquidade das relações
internacionais, o consumismo em grandes setores da população e o atraso
agropecuário persistente. Além disso, agudizavam-se outros problemas conexos
com os anteriores, tais como: a explosão demográfica, o desemprego, a injustiça
social, os egoísmos instalados, o feminismo exacerbado, as discriminações
raciais, as emigrações desordenadas, o impacto incontrolado dos meios de
comunicação, entre outros.
Neste marco histórico, alguns dirigentes cristãos – leigos e
religiosos – inclinavam-se a enveredar impacientes por caminhos revolucionários
violentos e armados. Pensavam que podiam lançar mão do revolucionário método de
análise e práxis para ver as grandes diferenças sociais e, em consequência, penetrar
nesse dinamismo sem admitir os postulados filosóficos e ideológicos do marxismo
e sem cair nas consequências ditatoriais do mesmo. Também era o tempo em que alguns
países iam adotando diversas versões das chamadas economias mistas com que se
experimentavam diversos graus de intervenção governamental na socioeconomia.
Neste momento de confusão era urgente que o Magistério da
Igreja desse alguma orientação seguir, ou não, em busca dos remédios para os
males sociais no quadro de uma ética que permeasse uma sociedade, justa, responsável,
livre e pacífica. Aos cristãos Paulo VI fornece linhas de orientação para assinalar
escolhos e navegar com afoiteza nestes tempos tempestuosos.
***
Estrutura e conteúdo
A Carta
Apostólica, com 52 números, está subdividida em quatro capítulos, preenchidos
com o desenvolvimento de tópicos, dispostos da seguinte forma:
Parte duma
relativamente extensa introdução (1-7),
que se inicia com um vocativo epistolar dirigido ao Cardeal Roy e que, chamando
a atenção para a importância do 80.º aniversário da Rerum Novarum, “cuja mensagem
continua a inspirar a ação em ordem à justiça social”, refere que a efeméride
nos anima “a retomar e a prosseguir” o
ensino dos seus predecessores, “em resposta às necessidades novas de um mundo
em transformação” e assegura que “a Igreja caminha, de facto, juntamente com a
humanidade e compartilha a sua sorte no seio da história”. E o Papa sustenta
que a Igreja, ao anunciar aos homens a Boa Nova do amor de Deus e da salvação
em Cristo, “ilumina também a sua atividade com a luz do Evangelho e ajuda-os,
deste modo, a corresponderem aos desígnios divinos do amor e a realizarem a
plenitude das suas aspirações” (n.º 1). Reconhece a sensibilidade cada vez maior na busca de uma maior justiça (n.º 2), não só no meio das comunidades cristãs, mas também
no mundo inteiro; aponta a diversidade das situações dos cristãos no
mundo (nos
3-4); enuncia a mensagem específica da Igreja (n.os
5-6); e releva a amplidão das mudanças atuais (n.º 7).
Depois, vem o
capítulo
I, dedicado aos NOVOS PROBLEMAS
SOCIAIS (n.os 8-21), com os itens seguintes: a urbanização (n.os 8-9); os cristãos na cidade (n.os
10-12); os jovens e o lugar da mulher
(n.º 13); os trabalhadores (n.º 14); as vítimas das mudanças (n.º 15); as discriminações (n.º 16); o direito à emigração (n.º 17); a criação
de postos de trabalho (n.os
18-19); os meios de comunicação social (n.º 20); o meio ambiente (n.º 21). É de notar a referência ao meio ambiente de que tanto se fala hoje
como sendo um problema. Sobre isto o texto explana:
“À medida que o horizonte do homem assim se modifica, a partir das imagens
que se selecionam para ele, uma outra transformação começa a fazer-se sentir,
consequência tão dramática quanto inesperada da atividade humana. De um momento
para outro, o homem toma consciência dela: por motivo da exploração
inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruí-la e de vir a
ser, também ele, vítima dessa degradação. Não só já o ambiente material se
torna uma ameaça permanente, com poluições e lixo, novas doenças, poder
destruidor absoluto; é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar,
criando assim, para o dia de amanhã, um ambiente global, que poderá
tornar-se-lhe insuportável. Problema social de envergadura, este, que diz
respeito à inteira família humana. O cristão deve voltar-se para estas
perspetivas novas, para assumir a responsabilidade, juntamente com os outros
homens, por um destino, na realidade, já comum.”.
Como se vê,
não se tem inventado muito nos últimos anos!
O capítulo
II aborda a temática das ASPIRAÇÕES
FUNDAMENTAIS E CORRENTES DE IDEIAS (n.os 22-41), desenvolvendo itens como: as
vantagens e limitações dos reconhecimentos jurídicos (n.º 23); a sociedade política (n.os 24-25); as ideologias e liberdade humana (n.os 26-29); os movimentos históricos (n.º 30); a atração das correntes socialistas (n.º 31); a evolução histórica do marxismo (n.os 32-34); a ideologia liberal (n.º 35); o
discernimento cristão (n.º
36); o renascer das
utopias (n.º 37); a interrogação das ciências sobre
o homem (n.os 38-40); e a ambiguidade do progresso (n.º 41).
O n.º 22 é
uma espécie de justificação do capítulo e introdução aos itens que são
abordados, exprimindo-se nos termos seguintes:
“Ao mesmo tempo que o progresso científico e técnico continua
alterando profundamente a paisagem do homem, bem como os seus próprios modos de
conhecer, de trabalhar, de consumir e de ter relações, exprime-se, cada vez mais nítida,
nestes novos contextos, uma dupla aspiração, mais viva à medida que se
desenvolvem a sua informação e a sua educação: a aspiração à igualdade e a
aspiração à participação; trata-se de dois aspectos da dignidade do homem e da
sua liberdade”.
O capítulo
III, numa ótica de discernimento aborda a temática OS CRISTÃOS PERANTE ESTES NOVOS PROBLEMAS (n.os 42-47), com o desenvolvimento dos tópicos seguintes: o dinamismo da doutrina
social da Igreja (n.º 42); para uma maior justiça (n.os 43-44); a mudança de estruturas (n.º 45),
pois, embora necessária, não basta a mudança individual; o significado cristão
da ação política (n.º 46); e a compartilha das
responsabilidades (n.º 47).
E,
finalmente, o capítulo IV lança o APELO
À AÇÃO (n.os 48-52), com dois itens: a necessidade de se comprometer na
ação (n.os 48-49); e pluralismo das opções (n.os 50-52).
Este último
item levou alguns a subtitular a Octgogesima
Adveniens como sendo sobre o pluralismo das opções políticas dos cristãos –
o que seria redutor.
***
Considera
o Papa que, sendo tão diversas as situações das diversas comunidades católicas,
não se podem dar linhas concretas de ação, mas se deve discernir em cada lugar
o que é melhor para agir e pôr em prática as exigências evangélicas em cada contexto
e face a cada problemática. Propõe-se iluminar os diversos problemas sociais
que, por sua complexidade e amplitude, são verdadeiramente preocupantes. Escreveu
a Carta Pastoral precisamente para ir ao encontro
dos problemas novos que menciona – a urbanização,
a situação dos jovens, da mulher, dos trabalhadores, as discriminações, os meios
de comunicação e o meio ambiente – e, iluminando, à luz do Evangelho, a
análise dos novos problemas sociais, dá diretrizes para a sua solução e
orientações sobre o pluralismo na vida política.
O Pontífice reconhece
que o crescimento e o progresso em diversos campos causam a crescente aspiração
à igualdade e à participação mais ativa, o que fica patente na elaboração de
novos códigos de direitos humanos e nos acordos internacionais que se têm
firmado. Não obstante, sustenta que muito falta ainda para que as leis estejam
adequadas às necessidades da época e que a desigualdade é a principal causa dos
problemas sociais.
Paulo
VI afirma que a sociedade política tende cada vez mais para modelos democráticos,
mas há de estar baseada num projeto conexo com a vocação humana e suas
expressões na sociedade sem impor nenhuma ideologia. Verificando a diversidade de situações dos cristãos no mundo, convoca-os
para um pluralismo ético na ação. Porém, reitera que os católicos não
podem aderir a ideologias opostas aos princípios evangélicos, como o marxismo
eivado do materialismo histórico e
o liberalismo ateu. Detém-se em examinar a evolução das ideologias, em especial
do socialismo, do marxismo e da chamada “ideologia liberal”. E apresenta criticamente
as ciências humanas no mesmo nível das ideologias, por submeterem a exame os
conhecimentos que se têm sobre o homem, mas tanto os seus métodos como os seus
pressupostos não lhes permitirem dar as respostas globais que pretendem
oferecer. Assim, pode prevalecer a ambiguidade do progresso material.
Reconhece o Papa um chamamento, a nível universal, à prática
duma maior justiça. Faz um juízo sobre as ideias sociais que fundamentam as tendências
contemporâneas, que implicam a atividade económica e a dignidade das pessoas. Refere-se
com toda a clareza ao liberalismo, ao marxismo e certas correntes teológicas da
libertação. Defende o direito e o dever a participar na vida social. Fala de ação
política sã.
Contém, pois, a Carta Pastoral a confirmação
e a ampliação da DSI: maior justiça e uma presença dos cristãos na ação
política, com uma participação ativa na responsabilidade das diversas formas do
Estado. Em suma, as suas ideias basilares são: a ampliação da doutrina social da Igreja; pessoa humana é e deve ser
o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições; o modelo democrático e
o modelo socialista poderiam favorecer os povos se se aplicassem com verdadeiros
propósitos.
*Atualidade da Octogesima Adveniens
A participação política é um dever de todos os homens. Mas
devemos hoje continuar a interrogar-nos: se todos os sistemas socioeconómicos
podem ser aceites por um cristão; se todas as políticas e estratégias são
válidas, prescindindo da sua base ideológica; que critérios devemos assumir na
busca de soluções para os problemas atuais no seu conjunto e cada um em particular.
Na verdade, todos os cidadãos têm uma obrigação social de participação política
no país, com vista a aliviar as necessidades dos pobres, mas os homens de
empresa têm-na por maioria de razão, pela situação privilegiada que possuem e o
seu impacto mais eficaz.
Hoje são válidos os ensinamentos pontifícios, mesmo depois da
queda dos socialismos reais, para não se cair no neoliberalismo ou em
extremismos similares. É bom recordar que todos somos responsáveis por todos e por
cada um e que não podemos nem devemos permanecer indiferentes, quais
espectadores passivos da situação económica e social dos demais.
Em suma, na atualidade, a democracia, que todos dizem
professar, é só uma palavra e não vivemos numa democracia sólida e abrangente; as
injustiças sociais evidenciam-se no tratamento que se dá à pessoa humana no
trabalho, na migração, na saída da pátria, na pobreza, na fome, na guerra, na
educação, na saúde, na habitação, no comércio, na cultura e na segurança social;
campeia a economia de casino, a atitude da exploração e do descarte; destrói-se
o Planeta; e as tendências religiosas perdem-se cada vez mais – perde-se a fé.
***
Em contraponto, surgem sinais evidentes de preocupação pelos outros;
evidenciam-se mostras de abnegação e solidariedade; superabundam os focos de busca
do absoluto, de abertura ao transcendente e de entrega à espiritualidade; e
cresce a busca de justiça, equidade e cooperação. É, porém, necessário ler os sinais
de esperança e ser coerente com aquilo em que se acredita!
2017.03.29 – Louro
de Carvalho
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