segunda-feira, 6 de março de 2017

Concretizações do modo simples de rezar

A entrada na Quaresma, marcada ritualmente pela imposição as cinzas, remete-nos para a nossa condição de pecadores. Esquecemo-nos muito facilmente de que, embora pelo nosso estatuto de pessoas humanas, somos imagem de Deus e nos devemos considerar vocacionados a ser “semelhança de Deus” (cf Gn 1,26.27), nem por isso deixamos de ser “pó”, a ele havendo de “tornar” (cf Gn 3,19), sobretudo se não alimentarmos a relação com Deus e seguirmos caminhos desviantes e iníquos. Assim, o gesto da imposição das cinzas – que remonta a tempos antigos em que patriarcas, reis e profetas se cobriam de cinza a si, a familiares e animais (uso que Jesus considerou), em sinal de consternação perante a desgraça física ou espiritual, pessoal ou coletiva – é acompanhado de uma de duas fórmulas: a tradicional cominadora, “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar” (cf Gn 3,19); e a compromissiva, “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). Gosto mais da segunda, mas não posso desvalorizar a primeira.
Seja como for, a palavra de ordem neste início de caminhada para a Páscoa é a da conversão, segundo a Palavra do Senhor, “Voltai-vos para mim de todo o coração” (Jl 2,12), ou segundo o apelo de São Paulo, em nome de Cristo, Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20).
E, apelando à simplicidade pessoal e à sinceridade do coração contra o hábito espaventoso das pessoas fingidas, Cristo solicita o exercício da esmola, do jejum e da oração em modos de discrição: em esmola, que não saiba a mão esquerda o que faz a direita; no jejum, que o rosto não o denuncie, mas resplandeça de serenidade e alegria; e na oração, que não haja a preocupação de mostrar aos demais que se reza (de pé nas sinagogas e praças), mas no recolhimento do quarto. E, como a esmola (que pode ser de mera beneficência ou devida por justiça) e o jejum (com outras mortificações e sacrifícios) de pouco valem na perspetiva da caridade – por Deus, com Deus e como Deus – se não forem orantes, com inspiração na Palavra divina tornada dom para o homem, será oportuno falar da oração.
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Das centenas de vezes que a Sagrada Escritura fala da oração, ater-me-ei a umas poucas, como se verá a seguir.
Jesus ensina como é necessário orar sem desfalecer. Sobre esta necessidade de orar sempre e sem desfalecer, Jesus contou a parábola do juiz iníquo e da viúva pobre (vd Lc 18,1-8). Ele não lhe queria fazer justiça por ser iníquo e desprezar os pobres; ela, precisando de justiça, não o deixou até que ele a atendesse em conformidade. E, para mostrar a necessidade de rezar sem jactância, mas com humildade, contou a parábola do fariseu e o cobrador de impostos (Lc 18,9-14). O primeiro rezou dando graças e cobrando ao Senhor tudo quanto fazia, bem como acusando os outros, ao dizer que não era como eles, “que são ladrões, injustos, adúlteros”, nem como aquele “cobrador de impostos”. Porém, o segundo, “mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador”.
Ora, o Senhor, que rezou várias vezes – ex: aquando do Batismo (Lc 3,21) e da transfiguração (Lc 9,28-29), pela revelação dos mistérios aos humildes (Lc 10,21-22), na ressurreição de Lázaro (Jo 11,41-42), na Última Ceia (Lc 22,17.19), na Oração sacerdotal pelos discípulos (Jo cap. 17), na agonia do Horto (Lc 22,41-42) e no alto da Cruz (Lc 23,34.46) – mandou-nos rezar e ensinou-nos a rezar. E Paulo também recomenda: “Orai sem cessar. Em tudo dai graças.” (1Ts 5,17-18).
Sobre a obrigação de rezar, além do que já foi dito, registe-se a indicação aos discípulos no Horto das Oliveiras, “Orai, para que não entreis em tentação” e “Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação” (Lc 22,40.46). Também Jesus é claro quanto ao modo de rezar:
“Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes.” (Mt 6,7-8).
E ensinou aos discípulos a oração comummente conhecida como “Pai Nosso” ou Oração do Senhor (Mt 6,9-13), um autêntico esquema de boa oração e um bom programa de vida na relação para com Deus e para com o próximo. Neste último aspeto, veja-se a exigência do perdão:
“Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai vos não perdoará as vossas.” (Mt 6,14-15).
Por outro lado, o universo daqueles por quem rezamos alarga-se, por ordem de Jesus em concomitância com o mandamento do amor, aos inimigos:
“Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos?” (Mt 5,44-46).
Observadas estas disposições de simplicidade, parcimónia no uso das palavras e no alargamento do universo das intenções da oração, somos capazes de receber o apelo a rezar com confiança:
Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão de abrir. Qual de vós, se o seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem.” (Mt 7,6-11; cf Mc 11,22.24; Lc 11,9-13; Jo 14,13-14; 16,23-24).
E rezar acarreta uma enorme responsabilidade de vida para com Deus e para com os outros. Vejam-se estes dois passos:
O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12); e “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu’.” (Mt 7,21).
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Sendo assim, como se explica a produção e recomendação dos formulários com orações elaboradas e algumas bem extensas? Do meu ponto de vista, há que assegurar a eficácia de três situações significativas:
- A oração litúrgica, enquanto culto público da Igreja, designadamente a liturgia das horas, a celebração eucarística e a ministração dos sacramentos e sacramentais não pode depender do improviso, por mais competentes e piedosos que sejam os seus intervenientes. Por isso, se elaboram, reveem e reformulam missais, lecionários, livros de salmos responsoriais e cânticos de meditação, livros da liturgia das horas, sacramentários, graduais, antifonários, etc. Porém, ficam espaços disponíveis para o silêncio, o improviso e a oração espontânea. No entanto, a formulação contribui para a realização da equivalência entre a lex credendi e a lex orandi, ou seja, reza-se como se crê e crê-se como se reza. A oração é expressão da fé e a fé constitui-se em norma de oração. Por outro lado, a formulação litúrgica ensina que a iniciativa para a oração parte de Deus, que Se revela aos homens pela sua Palavra, que nos ensina a rezar através dos mestres do Antigo Testamento e sobretudo por seu Filho Jesus. É, assim, necessário estar bem disponível para a escuta da Palavra e responder-lhe com empenho pessoal e em contexto da interação comunitária. Faz-se silêncio para ouvir Deus e responde-se-lhe rezando e cantando, ou mesmo calando para assentir. A liturgia é a alma da vida da Igreja, mas tem de partir da ministração da Palavra e desembocar na prática constante da caridade e da justiça. Cristo e o seu corpo místico, a Igreja, são, como diz Teresa de Calcutá, “oração perpétua”.
- Também a oração comunitária, mesmo que não litúrgica (puramente devocional), necessita de apoio formulário para que não se entre em estilo de desgarrada ou de anarquia. Deus aprecia o coro de vozes de, pelo menos, dois ou três reunidos em seu nome (vd Mt 18,19-20), mas não a confusão. Mas é óbvio que também aqui deve haver momentos de silêncio orante para escuta de Deus e palavras nascidas da espontaneidade e do improviso. E rezar em conjunto ou a solo diante doutrem realiza o objetivo de Jesus:  Vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu” (Mt 5,16).
- E a oração pessoal desenvolve-se em exercício da mente na relação íntima com Deus (a oração mental) – e aqui não há palavras para alicerçar a oração –, mas também se exercita através da chamada oração vocal (com palavras). E esta – porque não se vê Deus, porque temos limitações, por nos cansamos facilmente – alimenta-se também de fórmulas, tiradas da Bíblia, da Liturgia, dos devocionários, etc., que visam levar-nos a rezar mesmo quando nada sentimos. Por outro lado, faz-nos sentir ligados à comunidade que reza e crê: mesmo no íntimo do nosso quarto ou no cantinho do templo, da praça e do bosque, não estamos sozinhos. Mas é esta oração pessoal aquela em que se deve aprofundar a atitude de escuta de Deus, pelo silêncio orante, pela leitura da Bíblia e por outros textos de edificação espiritual. É aqui que haverá mais espaço para a oração espontânea e o improviso, mas sem rejeitar o património oracional da comunidade e os “símbolos” da fé (por exemplo, os formulários do credo).
Esta oração pessoal aprende-se com os grandes místicos, por exemplo, Bernardo de Claraval, Teresa de Lisieux, Teresa de Ávila, João da Cruz, João Paulo II, Teresa de Calcutá, Jacinta Marto e Francisco Marto. Porém, há pessoas simples que nos dão lições eloquentes na matéria.
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No âmbito das pessoas simples, não resisto ao registo de alguns casos impressionantes.
- O cura d’ Ars reconhecia a validade da forma de oração do crente simples que ele encontrava assiduamente na igreja tão absorto e durante tanto tempo diante do sacrário. Com efeito, ao perguntar-lhe que dizia ele ao Senhor, obteve a seguinte resposta: “Eu não sei rezar, mas como sei que Ele é meu amigo, eu olho para Ele e Ele olha para mim. E rezo assim.”.
- Um lavrador vinha da feira cansado e, não encontrando palavras para dizer o Senhor, resolveu dizer: “Meu Deus, não sei que Te dizer. Ora, como Tu conheces o que eu preciso de Te dizer, eu digo o alfabeto todo, certinho e muito devagar e Tu sabes com as letras compor as palavras e fazer as frases necessárias.”.
- Um sacerdote foi chamado para visitar um enfermo. Ao entrar no quarto, topou uma cadeira bem perto da cabeceira do enfermo. Foi-lhe então mais fácil sentar-se na cama do enfermo, que lhe confidenciou que não sabia rezar. Porém, tendo ouvido dizer que Jesus era amigo e irmão, resolveu, quando se sentia só, ter junto de si uma cadeira sem que ninguém nela se sentasse. Cumprimentava-O (sentindo-O ali sentado), falava-Lhe e ouvia-O.
Entretanto, passados uns dias, uma das filhas foi dar a notícia ao sacerdote de que o pai falecera e confessou um facto estranho: foi dar com o pai falecido abraçado a uma cadeira vazia. O sacerdote exclamou: “Quem dera que todos morressem com essa boa disposição espiritual de seu pai!”.  
- Também se conta um episódio curioso dum encontro de Teresa de Calcutá com Fidel Castro. Na conversa, El Comandante perguntava à Irmã Missionária da Caridade o que fazia ela nos seus dias, ao que a religiosa respondeu que trabalhava com os pobres e rezava. E Fidel esclarecera que passava o tempo a pensar no seu povo, ao que a religiosa missionária terá retorquido: “Uma bela fora de oração!”.
Na verdade, a resposta de Teresa vem alinhada com a Sagrada Escritura. Segundo o que se conta dos jesuítas, estes terão consultado um dos Papas se poderiam rezar enquanto fumavam. E o Pontífice respondera: “Certamente, que sim, pois lá diz o Apóstolo, “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus” (1Cor 10,31).
Ora, é necessário e possível aprender a rezar com a liturgia, com a comunidade, com os místicos e com as almas simples e tidas por ingénuas. Com efeito, a oração é a respiração da alma, o conforto da comunidade, o gemido da criação.
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E Santa Teresa de Calcutá, que alguma imprensa inferia que ela duvidara da fé – quando o que ela sentia tantas vezes era o vazio de Deus, o silêncio de Deus como Cristo o sentiu no alto da Cruz – fala-nos do valor da oração, apelando:
“Sente muitas vezes, ao longo do dia, a necessidade de rezar. A oração dilata o coração a ponto de ele se tornar capaz de receber o dom de Deus, que é Ele próprio. Pede, procura, e o teu coração alargar-se-á a ponto de O receber, de O guardar como teu bem.”. 
Porém, reconhece a dicotomia entre o desejo de rezar e a dificuldade em o conseguir, dando pistas de solução:
“Desejamos tanto rezar bem, e depois não conseguimos; então perdemos a coragem e desistimos. Se queres rezar melhor, tens de rezar mais. Deus aceita o fracasso, mas não quer que percas a coragem. Ele quer que sejamos cada vez mais crianças, cada vez mais humildes, cada vez mais cheios de gratidão na oração. Quer que nos recordemos de que pertencemos ao corpo místico de Cristo, que é oração perpétua.”.
E sobre a interação pessoa comunidade e a necessidade de empenho pessoal no rezar e no amar, diz:
“Devemos ajudar-nos uns aos outros com as nossas orações. Libertemos o espírito. Não rezemos longamente: que as nossas orações não sejam intermináveis, mas breves e cheias de amor. Rezemos por aqueles que não rezam. Recordemos que aquele que quer ser capaz de amar tem de ser capaz de rezar.”.
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Enfim, rezar, querer rezar e ter dificuldade em rezar – eis o cenário com que o crente se depara no quotidiano. Haja quem ajude, haja quem aprenda, haja quem ensine! Talvez a solução esteja mesmo no coração de Deus…
 2017.03.06 – Louro de Carvalho

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