A
entrada na Quaresma, marcada ritualmente pela imposição as cinzas, remete-nos
para a nossa condição de pecadores. Esquecemo-nos muito facilmente de que,
embora pelo nosso estatuto de pessoas humanas, somos imagem de Deus e nos devemos
considerar vocacionados a ser “semelhança de Deus” (cf
Gn 1,26.27), nem por
isso deixamos de ser “pó”, a ele havendo de “tornar” (cf
Gn 3,19), sobretudo
se não alimentarmos a relação com Deus e seguirmos caminhos desviantes e
iníquos. Assim, o gesto da imposição das cinzas – que remonta a tempos antigos
em que patriarcas, reis e profetas se cobriam de cinza a si, a familiares e
animais (uso
que Jesus considerou),
em sinal de consternação perante a desgraça física ou espiritual, pessoal ou
coletiva – é acompanhado de uma de duas fórmulas: a tradicional cominadora, “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás
de voltar” (cf Gn 3,19); e a compromissiva, “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc
1,15). Gosto mais da
segunda, mas não posso desvalorizar a primeira.
Seja
como for, a palavra de ordem neste início de caminhada para a Páscoa é a da
conversão, segundo a Palavra do Senhor, “Voltai-vos
para mim de todo o coração” (Jl 2,12), ou segundo o apelo de São
Paulo, em nome de Cristo, “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor
5,20).
E,
apelando à simplicidade pessoal e à sinceridade do coração contra o hábito
espaventoso das pessoas fingidas, Cristo solicita o exercício da esmola, do
jejum e da oração em modos de discrição: em esmola, que não saiba a mão
esquerda o que faz a direita; no jejum, que o rosto não o denuncie, mas
resplandeça de serenidade e alegria; e na oração, que não haja a preocupação de
mostrar aos demais que se reza (de pé nas sinagogas e praças), mas no recolhimento do quarto.
E, como a esmola (que pode ser de mera beneficência ou
devida por justiça)
e o jejum (com outras mortificações e sacrifícios) de pouco valem na perspetiva da
caridade – por Deus, com Deus e como Deus – se não forem orantes, com
inspiração na Palavra divina tornada dom para o homem, será oportuno falar da
oração.
***
Das
centenas de vezes que a Sagrada Escritura fala da oração, ater-me-ei a umas
poucas, como se verá a seguir.
Jesus
ensina como é necessário orar sem desfalecer. Sobre esta necessidade de orar sempre e sem desfalecer, Jesus
contou a parábola do juiz
iníquo e da viúva pobre (vd Lc
18,1-8). Ele não lhe queria fazer justiça por ser iníquo e
desprezar os pobres; ela, precisando de justiça, não o deixou até que ele a
atendesse em conformidade. E,
para mostrar a necessidade de rezar sem jactância, mas com humildade, contou a
parábola do
fariseu e o cobrador de impostos (Lc 18,9-14). O primeiro rezou dando graças e cobrando ao Senhor tudo quanto fazia,
bem como acusando os outros, ao dizer que não era como eles, “que são ladrões,
injustos, adúlteros”, nem como aquele “cobrador de impostos”. Porém, o segundo,
“mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu, mas batia
no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de
mim, que sou pecador”.
Ora, o Senhor, que rezou várias vezes – ex:
aquando do Batismo (Lc 3,21) e
da transfiguração (Lc 9,28-29),
pela revelação dos mistérios aos humildes (Lc 10,21-22), na ressurreição de Lázaro (Jo 11,41-42), na Última Ceia (Lc 22,17.19), na Oração sacerdotal pelos discípulos (Jo cap. 17), na agonia do Horto (Lc 22,41-42) e no alto da Cruz (Lc 23,34.46) – mandou-nos rezar e ensinou-nos a rezar. E
Paulo também recomenda: “Orai sem cessar. Em tudo dai graças.” (1Ts 5,17-18).
Sobre a
obrigação de rezar, além do que já foi dito, registe-se a indicação aos
discípulos no Horto das Oliveiras, “Orai,
para que não entreis em tentação” e “Levantai-vos
e orai, para que não entreis em tentação” (Lc 22,40.46). Também
Jesus é claro quanto ao modo de rezar:
“Nas vossas orações, não sejais como os gentios,
que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão
atendidos. Não façais como eles,
porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes.”
(Mt 6,7-8).
E ensinou
aos discípulos a oração comummente conhecida como “Pai Nosso” ou Oração do
Senhor (Mt 6,9-13), um autêntico esquema de boa oração e um bom
programa de vida na relação para com Deus e para com o próximo. Neste último
aspeto, veja-se a exigência do perdão:
“Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o
vosso Pai celeste vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as
suas ofensas, também o vosso Pai vos não perdoará as vossas.” (Mt 6,14-15).
Por outro
lado, o universo daqueles por quem rezamos alarga-se, por ordem de Jesus em
concomitância com o mandamento do amor, aos inimigos:
“Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e
orai pelos que vos perseguem. Fazendo
assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que
o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e
os pecadores. Porque, se amais os que
vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de
impostos?” (Mt 5,44-46).
Observadas estas disposições de simplicidade,
parcimónia no uso das palavras e no alargamento do universo das intenções da
oração, somos capazes de receber o apelo a rezar com confiança:
“Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão de
abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e
quem procura, encontra; e ao que bate, hão de abrir. Qual de vós, se o seu filho lhe pedir pão,
lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir
peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem,
se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o
vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem.” (Mt
7,6-11; cf Mc 11,22.24; Lc 11,9-13; Jo 14,13-14; 16,23-24).
E rezar
acarreta uma enorme responsabilidade de vida para com Deus e para com os
outros. Vejam-se estes dois passos:
“O que
quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e
os Profetas” (Mt 7,12); e “Nem todo o
que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a
vontade de meu Pai que está no Céu’.” (Mt 7,21).
***
Sendo assim,
como se explica a produção e recomendação dos formulários com orações
elaboradas e algumas bem extensas? Do meu ponto de vista, há que assegurar a
eficácia de três situações significativas:
- A oração
litúrgica, enquanto culto público da Igreja, designadamente a liturgia das
horas, a celebração eucarística e a ministração dos sacramentos e sacramentais
não pode depender do improviso, por mais competentes e piedosos que sejam os
seus intervenientes. Por isso, se elaboram, reveem e reformulam missais,
lecionários, livros de salmos responsoriais e cânticos de meditação, livros da
liturgia das horas, sacramentários, graduais, antifonários, etc. Porém, ficam
espaços disponíveis para o silêncio, o improviso e a oração espontânea. No
entanto, a formulação contribui para a realização da equivalência entre a lex credendi e a lex orandi, ou seja, reza-se como se crê e crê-se como se reza. A
oração é expressão da fé e a fé constitui-se em norma de oração. Por outro
lado, a formulação litúrgica ensina que a iniciativa para a oração parte de
Deus, que Se revela aos homens pela sua Palavra, que nos ensina a rezar através
dos mestres do Antigo Testamento e sobretudo por seu Filho Jesus. É, assim,
necessário estar bem disponível para a escuta da Palavra e responder-lhe com
empenho pessoal e em contexto da interação comunitária. Faz-se silêncio para
ouvir Deus e responde-se-lhe rezando e cantando, ou mesmo calando para
assentir. A liturgia é a alma da vida da Igreja, mas tem de partir da
ministração da Palavra e desembocar na prática constante da caridade e da
justiça. Cristo e o seu corpo místico, a Igreja, são, como diz Teresa de
Calcutá, “oração perpétua”.
- Também a
oração comunitária, mesmo que não litúrgica (puramente devocional), necessita de apoio formulário para que não se entre
em estilo de desgarrada ou de anarquia. Deus aprecia o coro de vozes de, pelo
menos, dois ou três reunidos em seu nome (vd Mt 18,19-20), mas não a confusão. Mas é óbvio que também aqui
deve haver momentos de silêncio orante para escuta de Deus e palavras nascidas
da espontaneidade e do improviso. E rezar em conjunto ou a solo diante doutrem realiza
o objetivo de Jesus: “Vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está
no Céu” (Mt 5,16).
- E a oração
pessoal desenvolve-se em exercício da mente na relação íntima com Deus (a oração
mental) – e aqui não há palavras para
alicerçar a oração –, mas também se exercita através da chamada oração vocal (com palavras). E esta – porque não se vê Deus, porque temos
limitações, por nos cansamos facilmente – alimenta-se também de fórmulas,
tiradas da Bíblia, da Liturgia, dos devocionários, etc., que visam levar-nos a
rezar mesmo quando nada sentimos. Por outro lado, faz-nos sentir ligados à
comunidade que reza e crê: mesmo no íntimo do nosso quarto ou no cantinho do
templo, da praça e do bosque, não estamos sozinhos. Mas é esta oração pessoal
aquela em que se deve aprofundar a atitude de escuta de Deus, pelo silêncio
orante, pela leitura da Bíblia e por outros textos de edificação espiritual. É
aqui que haverá mais espaço para a oração espontânea e o improviso, mas sem
rejeitar o património oracional da comunidade e os “símbolos” da fé (por exemplo,
os formulários do credo).
Esta oração
pessoal aprende-se com os grandes místicos, por exemplo, Bernardo de Claraval, Teresa
de Lisieux, Teresa de Ávila, João da Cruz, João Paulo II, Teresa de Calcutá,
Jacinta Marto e Francisco Marto. Porém, há pessoas simples que nos dão lições eloquentes
na matéria.
***
No âmbito
das pessoas simples, não resisto ao registo de alguns casos impressionantes.
- O cura d’
Ars reconhecia a validade da forma de oração do crente simples que ele encontrava
assiduamente na igreja tão absorto e durante tanto tempo diante do sacrário. Com
efeito, ao perguntar-lhe que dizia ele ao Senhor, obteve a seguinte resposta: “Eu não sei rezar, mas como sei que Ele é meu
amigo, eu olho para Ele e Ele olha para mim. E rezo assim.”.
- Um lavrador
vinha da feira cansado e, não encontrando palavras para dizer o Senhor,
resolveu dizer: “Meu Deus, não sei que Te
dizer. Ora, como Tu conheces o que eu preciso de Te dizer, eu digo o alfabeto todo,
certinho e muito devagar e Tu sabes com as letras compor as palavras e fazer as
frases necessárias.”.
- Um sacerdote
foi chamado para visitar um enfermo. Ao entrar no quarto, topou uma cadeira bem
perto da cabeceira do enfermo. Foi-lhe então mais fácil sentar-se na cama do enfermo,
que lhe confidenciou que não sabia rezar. Porém, tendo ouvido dizer que Jesus
era amigo e irmão, resolveu, quando se sentia só, ter junto de si uma cadeira
sem que ninguém nela se sentasse. Cumprimentava-O (sentindo-O
ali sentado), falava-Lhe
e ouvia-O.
Entretanto,
passados uns dias, uma das filhas foi dar a notícia ao sacerdote de que o pai
falecera e confessou um facto estranho: foi dar com o pai falecido abraçado a
uma cadeira vazia. O sacerdote exclamou: “Quem
dera que todos morressem com essa boa disposição espiritual de seu pai!”.
- Também se
conta um episódio curioso dum encontro de Teresa de Calcutá com Fidel Castro. Na
conversa, El Comandante perguntava à Irmã
Missionária da Caridade o que fazia ela nos seus dias, ao que a religiosa respondeu
que trabalhava com os pobres e rezava. E Fidel esclarecera que passava o tempo
a pensar no seu povo, ao que a religiosa missionária terá retorquido: “Uma bela fora de oração!”.
Na verdade, a
resposta de Teresa vem alinhada com a Sagrada Escritura. Segundo o que se conta
dos jesuítas, estes terão consultado um dos Papas se poderiam rezar enquanto fumavam.
E o Pontífice respondera: “Certamente, que sim, pois lá diz o Apóstolo, “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei
tudo para glória de Deus” (1Cor 10,31).
Ora, é
necessário e possível aprender a rezar com a liturgia, com a comunidade, com os
místicos e com as almas simples e tidas por ingénuas. Com efeito, a oração é a respiração
da alma, o conforto da comunidade, o gemido da criação.
***
E Santa Teresa de Calcutá, que alguma imprensa inferia que ela duvidara
da fé – quando o que ela sentia tantas vezes era o vazio de Deus, o silêncio de
Deus como Cristo o sentiu no alto da Cruz – fala-nos do valor da oração,
apelando:
“Sente
muitas vezes, ao longo do dia, a necessidade de rezar. A oração dilata o
coração a ponto de ele se tornar capaz de receber o dom de Deus, que é Ele
próprio. Pede, procura, e o teu coração alargar-se-á a ponto de O receber, de O
guardar como teu bem.”.
Porém,
reconhece a dicotomia entre o desejo de rezar e a dificuldade em o conseguir,
dando pistas de solução:
“Desejamos
tanto rezar bem, e depois não conseguimos; então perdemos a coragem e
desistimos. Se queres rezar melhor, tens de rezar mais. Deus aceita o fracasso,
mas não quer que percas a coragem. Ele quer que sejamos cada vez mais crianças,
cada vez mais humildes, cada vez mais cheios de gratidão na oração. Quer que
nos recordemos de que pertencemos ao corpo místico de Cristo, que é oração
perpétua.”.
E sobre a
interação pessoa comunidade e a necessidade de empenho pessoal no rezar e no
amar, diz:
“Devemos
ajudar-nos uns aos outros com as nossas orações. Libertemos o espírito. Não
rezemos longamente: que as nossas orações não sejam intermináveis, mas breves e
cheias de amor. Rezemos por aqueles que não rezam. Recordemos que aquele que
quer ser capaz de amar tem de ser capaz de rezar.”.
***
Enfim,
rezar, querer rezar e ter dificuldade em rezar – eis o cenário com que o crente
se depara no quotidiano. Haja quem ajude, haja quem aprenda, haja quem ensine!
Talvez a solução esteja mesmo no coração de Deus…
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