segunda-feira, 13 de março de 2017

Mas quando a Palavra se torna modelo...

A cada passo, se ouve dizer que a palavra dos homens – nomeadamente dos políticos e dos banqueiros – está mais que desacreditada. Se antes a palavra dada era irreversível, valendo mais que uma escritura, hoje até a palavra passada a escritura ou contrato escrito, mesmo que validada por notário ou entidade pública com valor equivalente, é reversível, o que traz insegurança à vida das pessoas e dos povos. Parece que infelizmente só a declaração de guerra – formal ou tácita – constitui ponto de honra.
Por isso, não se estranha que muitos se encostem taticamente ao silêncio escudados na afirmação de Sólon de que temos dois ouvidos, mas apenas uma boca, inferindo alguns que, assim, teríamos de ouvir o dobro do que falamos. Ora, para criticar os excessivamente loquazes, que falam sem pensar em vez de pensarem antes de falar, poderíamos também chamar a atenção para o facto de termos dois ouvidos, dois olhos, duas narinas e duas mãos – órgãos aptos para captar do exterior o que nos pode ser útil. E, assim, poderíamos atender ao que diz São João:
 “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la…” (1Jo 1,1-2).
Mas, pensando bem, reparamos que o cérebro, fonte física do pensamento, tem dois hemisférios e o coração, considerado pelos mestres espirituais como a sede do sentimento (o que psicólogos e biólogos contrariam) e indiscutivelmente fonte da irrigação sanguínea corporal, tem duas aurículas e dois ventrículos – o que quererá dizer que devemos pensar bem e sentir muito o que devemos dizer. Por outro lado, os seres humanos têm dois pulmões, o que poderá legitimar e incentivar a que, às vezes, falemos com força e nitidez ou que até brademos a plenos pulmões quando as circunstâncias o postularem.
Dizer que a palavra é de prata, e que o silêncio é de ouro torna-se interessante objeto de meditação, mas pode levar-nos a equívocos, dispensando-nos de falar quando o bem do próximo, o bem comum ou a defesa da dignidade o exigem. E insistir em que as palavras voam e o exemplo fica e arrasta será insuficiente quanto tivermos a Palavra como exemplo e modelo!
É admirável a pregação franciscana inicialmente quase só baseada no exemplo, mas foi sol de pouca dura. É edificante o silêncio de Maria, que conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração” (Lc 2,19) ou “guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2,51) e todo o silêncio de São José, não podendo esquecer a sua resposta pressurosa às indicações do Céu. Mas não podemos deixar de perceber e aceitar que Maria disse tudo o que era preciso dizer. Repare-se: na questão colocada ao anjo, “Como será isso, se eu não conheço homem?” (Lc 1,34); na disponibilidade ante a vontade de Deus, “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38), no Magnificat (o canto da misericórdia e do louvor) aquando da visita a Isabel (Lc 1,46-51); na interpelação ao Menino no Templo, “Filho, porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura!” (Lc 2,48); na chamada de atenção a Jesus em Caná, “Não têm vinho!” (Jo 2,3); e na indicação procedimental aos serventes, “Fazei o que Ele vos disser!” (Jo 2,5).
***
Voltemos à primeira carta de São João acima citada. João diz-nos:
“De facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamos-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo.” (1Jo 1,2-3).
Urge anunciar aquilo que sabemos, de que damos testemunho, com vista à comunhão entre nós e com Deusa. Ora, os apóstolos receberam a missão de ir e ensinar, e não de ficar em silêncio:
Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos […] ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado” (Mt 28,19.20); “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16,15); Depois, disse-lhes: ‘Estas foram as palavras que vos disse, quando ainda estava convosco: que era necessário que se cumprisse tudo quanto a meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos’. […] Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas.” (Lc 24,44.46-48); e “Ide para o Templo e anunciai ao povo a Palavra da Vida” (At 5,20).
Os apóstolos, por sua vez, na fidelidade ao mandato, levaram a peito o preceito do Senhor: “Eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra [não o silêncio] com os sinais que a acompanhavam” (Mc 16,20). Neste aspeto, Paulo reconhece a gravidade desta obrigação de pregar e julga não merecer qualquer recompensa:
“Se eu anuncio o Evangelho, não é para mim motivo de glória, é antes uma obrigação que me foi imposta: ai de mim, se eu não evangelizar!” (1Cor 9,16). 
Já antes da Paixão, Morte, Descida à Mansão dos Mortos e Ressurreição, o Senhor mandou os discípulos em missão, ordenando:
“Por onde fordes, pregai esta mensagem: O Reino dos céus está próximo” (Mt 10,7). “O que eu vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que vos é sussurrado aos ouvidos, proclamai-o sobre os terraços” (Mt 10,27). 
E garantia:
“E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho diante de todos os povos, e então virá o fim” (Mt 24,14).
Perante as interpelações, os apóstolos explicavam com a Palavra (cf At 4,7-12); e face às ameaças e proibição de falarem em nome de Jesus, respondiam: “Julgai vós mesmos se é justo, diante de Deus, obedecer a vós primeiro do que a Deus. Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos.” (At 4,19-20); e:
“Importa mais obedecer a Deus do que aos homens. O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem matastes, suspendendo-o num madeiro. Foi a Ele que Deus elevou, com a sua direita, como Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que lhe obedecem.” (At 5,29-32).
E o anúncio da Palavra, aliado à oração, era assíduo, como se pode ver, a título de exemplo:
“Tinham acabado de orar, quando o lugar em que se encontravam reunidos estremeceu, e todos ficaram cheios do Espírito Santo, começando a anunciar a palavra de Deus com desassombro” (At 4,31). “Saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus. E todos os dias, no templo e nas casas, não cessavam de ensinar e de anunciar a Boa-Nova de Jesus, o Messias. (At 5,41-42).
Mesmo, aquando da instituição dos sete diáconos, ficou explícito que prevaleceria a oração e o serviço da Palavra como base para toda a ação da comunidade:
“Quanto a nós, entregar-nos-emos assiduamente à oração e ao serviço da Palavra (At 6,4). A palavra de Deus ia-se espalhando cada vez mais; o número dos discípulos aumentava consideravelmente em Jerusalém, e grande número de sacerdotes obedeciam à Fé (At 6,7)”.
Pregava-se por toda a parte:
“Os que haviam sido dispersos pregavam a palavra por onde quer que fossem” (At 8,4). “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações (At 2,42).
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Porém, Jesus não só mandava: dava o exemplo, começava: “Daí em diante Jesus começou a pregar, ‘Arrependei-vos, pois o Reino dos céus está próximo’” (Mt 4,17); ou “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho (Mc 1,15); e “Jesus ia passando por todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando as boas-novas do Reino e curando todas as enfermidades e doenças” (Mt 9,35). 
Ele assumiu-se como modelo, ao dizer: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6); e “Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15).
Assim, com o mandato e o exemplo de Cristo, a Palavra de Deus (o Verbo), os apóstolos persuadiram-se do dever grave de evangelizar. Diz Paulo:
“Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego. Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: O justo viverá pela fé” (Rm 1,16-17).
Interroga-se à luz do Antigo Testamento:
“Como invocarão aquele em quem não creram? E como hão de crer naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Como são belos os pés dos que anunciam boas-novas!” (Rm 10,14-15). 
Explica o fio condutor da pregação:
 “Consequentemente, a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo” (Rm 10,17). 
Ante aquilo que os destinatários esperam, garante:
“Os judeus pedem sinais milagrosos e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos Cristo crucificado, o qual, de facto, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1Cor 1,22-24). 
Apresenta a fundamentação da sua pregação o seu núcleo essencial e a sua sequência:
“Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que vós recebestes, no qual permaneceis firmes e pelo qual sereis salvos, se o guardardes tal como eu vo-lo anunciei; de outro modo, teríeis acreditado em vão. Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze.” (1Cor 15,1-5).
Em jeito de balanço pessoal, confessa:
“Basta-me poder concluir a minha carreira e cumprir a missão que recebi do Senhor Jesus, dando testemunho do Evangelho da graça de Deus. […] Por isso, tomo-vos hoje por testemunhas de que estou limpo do sangue de todos, pois jamais recuei, quando era preciso anunciar-vos todos os desígnios de Deus.” (At 20,23.26-27). 
E recomenda a um seu colaborador e sucessor à frente duma comunidade:
“Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar e que maneja corretamente a palavra da verdade” (2Tm 2,15). 
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Se falar é tão importante, o papel do silêncio fica para o momento de deserto, repouso reflexivo e mesmo orante; instrumento de contenção contra a precipitação ou contra a loquacidade, loquacidade que Jesus censura (cf Mt 6,7-8). O silêncio é de ouro se for edificante, se servir para escutar, preparar, fortalecer e confirmar a palavra. Com efeito, Cristo é a verdadeira Palavra, que existia já no princípio, veio para o que era seu, fez-se carne, habitou entre nós, ensinou-nos e deu-nos o exemplo (Jo 1,1.11.14; 13,15).
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É preciso falar sempre que necessário e calar quando for útil. Com efeito, calar sobre si próprio é humildade; sobre defeitos alheios, caridade; sobre o nosso sofrimento, heroísmo; quando os outros falam, delicadeza; quando não há necessidade de falar, prudência; se para não dizer inutilidades, penitência; quando Deus fala na oração, silêncio e escuta (é ouro); e diante do mistério, sabedoria. Porém, calar face ao sofrimento alheio é cobardia; face às injustiças, fraqueza; quando o outro precisa duma palavra e a espera, omissão. Enfim, quem não tem vez nem voz precisa do poder da palavra (que é ouro) que lhe ganhe vez e voz. É a profecia – denúncia, anúncio e compromisso pessoal com esta postura pelo outro em nome de Deus!

2017.03.12 – Louro de Carvalho

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