Os chefes de Estado e de Governo da União Europeia (UE) encontraram-se
em Roma, a 25 de março, para assinalar o 60.º aniversário da celebração do
Tratado de Roma, pelo quase criou a CEE (Comunidade
Económica Europeia) que evoluiu para o que hoje se chama União Europeia, que está a
acusar a primeira desistência com o processo do “Brexit”.
Cientes como estão da força moral do líder da Igreja Católica quiseram
avistar-se com ele numa postura de deferência, na véspera, dia 24 de março. E o
Papa Francisco, que já se tinha referido expressamente à Europa aquando das
suas intervenções no Parlamento Europeu e no Conselho da Europa, bem como no
momento em que lhe foi entregue o Prémio Carlos Magno, com que fora agraciado,
fez-lhes agora o que eu chamo um sério aviso.
Da sua parte, o Papa assegura a proximidade
da Santa Sé e da Igreja à Europa, “para cuja edificação desde sempre contribuiu
e sempre contribuirá”, e invoca “sobre ela a bênção do Senhor, para que a
proteja e lhe dê paz e progresso”. Além disso, faz suas as palavras proferidas em
tempos por Joseph Bech no Campidoglio, que recorda e acentua: Ceterum censeo
Europam esse aedificandam (de resto,
penso que a Europa merece ser construída).
Porém, julga
caber aos líderes europeus “discernir o caminho dum novo humanismo europeu, feito de ideais e concretizações”, o que
implica “não ter medo de assumir decisões eficazes, capazes de responder aos
problemas reais das pessoas e resistir à prova do tempo”.
E entende
ser de aproveitar a celebração da idade crucial dos 60 anos da sua maturidade
para que a UE se sinta chamada a pôr-se em discussão, cuidando dos “inevitáveis
achaques” que chegam com a idade e tentando, “encontrar percursos novos para
prosseguir o próprio caminho”. E como a UE, “diversamente de um ser humano de
60 anos, não tem diante de si uma velhice inevitável, mas a possibilidade duma
nova juventude”, é de assumir que “o seu sucesso dependerá da vontade de voltar
a trabalhar juntos e do desejo de apostar no futuro”.
***
Francisco não esquece que, há 60 anos, foram assinados dois documentos
fundamentais: o da Comunidade Económica Europeia e o da Comunidade
Europeia da Energia Atómica.
Adverte que
este regresso à cidade fundadora (Roma) “não se pode limitar a uma viagem de recordações”, mas para “redescobrir
a memória viva daquele evento” e “compreender o seu alcance na hora presente”,
compenetrando-se dos “desafios de então para se enfrentar os de hoje e de
amanhã”. E aduz que o ensinamento bíblico, pelas “suas narrações repletas de
evocações”, nos oferece “um método pedagógico fundamental”:
“Não se pode compreender o tempo que vivemos sem o passado, entendido não
como um conjunto de acontecimentos distantes, mas como a seiva vital que rega o
presente. Sem esta consciência, a realidade perde a sua unidade, a história o
seu fio lógico, e a humanidade o sentido das suas ações e a direção do seu
porvir.”.
Sublinha a
relação da situação do dia fundador com a de hoje:
“O dia 25 de março de 1957 constituiu uma data cheia de anseios e
esperanças, de entusiasmo e trepidação, e somente um evento excecional pelo seu
alcance e consequências históricas poderia torná-la única na história. A
memória daquele dia une-se às esperanças de hoje e aos anseios dos povos
europeus, que pedem para se discernir o presente a fim de prosseguir, com
renovado ardor e confiança, o caminho iniciado.”.
E, num pano
de fundo em que emerge a “realidade política, económica, cultural e sobretudo
humana”, recorda os grandes anseios enunciados por Spaak: o “bem-estar material dos nossos povos”, a “expansão das nossas economias”, “o progresso social” e “possibilidades industriais e comerciais
totalmente novas”, mas sobretudo “uma
particular conceção da vida, fraterna e justa, à medida do homem”.
Recordados
das penosas desgraças passadas na II Guerra Mundial, cheios de coragem e
determinados na ação, os Pais fundadores
fazem-nos entender que “a Europa não é um conjunto de regras a observar, nem um
prontuário de protocolos e procedimentos a seguir”, mas “uma vida, um modo de
conceber o homem a partir da sua dignidade transcendente e inalienável, e não
apenas como um conjunto de direitos a defender nem de pretensões a reivindicar”.
Mas, para os
Pais fundadores, era clara a
consciência de ser parte duma obra comum, que ultrapassava as fronteiras dos
Estados e os confins do tempo, de modo a unir as gerações entre si,
participando todas igualmente na construção da casa comum. Assim, “a Europa
unida – insiste Francisco – nasce a partir dum projeto claro, bem definido,
adequadamente ponderado, embora inicialmente apenas embrionário”; e “todo o bom
projeto olha para o futuro, e o futuro são os jovens, chamados a realizar as
promessas do futuro”.
E, para que
os Tratados não permaneçam letra morta e os projetos não fiquem pelo caminho,
diz o Papa que estes devem “ser preenchidos de espírito vital”, cujo primeiro
elemento “é a solidariedade”. E, citando novamente Joseph Bech, diz:
“A Comunidade Económica Europeia só viverá e terá sucesso se, durante a sua
existência, permanecer fiel ao espírito de solidariedade europeia que a criou e
se a vontade comum da Europa em gestação for mais forte do que as vontades
nacionais”.
Ora, Francisco acaba por inferir que “tal espírito é ainda mais necessário hoje face aos
ímpetos centrífugos, bem como à tentação de reduzir os ideais fundantes da
União às necessidades produtivas, económicas e financeiras”. E, sabendo que “da
solidariedade nasce a capacidade de se abrir aos outros”, frisa, com Adenauer,
que “os nossos planos não são de natureza
egoísta” e, com Pineau, que “os
países que estão para se unir (...) não pretendem isolar-se do resto do mundo
nem erigir à sua volta barreiras intransponíveis”.
Depois,
talvez para que não se volte, como parece estar a suceder hoje, ao tempo dos
muros e das divisões, o Pontífice recorda:
“Num mundo que conhecia bem o drama de muros e divisões, sentia-se
claramente a importância de trabalhar por uma Europa unida e aberta e a vontade
comum de se esforçar por remover aquela barreira antinatural que dividia o
continente do Mar Báltico ao Adriático. Quanta fadiga para fazer cair aquele
muro! E, todavia, hoje perdeu-se a memória daquela fadiga. Perdeu-se também a
consciência do drama de famílias separadas, da pobreza e da miséria que aquela
divisão provocou.”.
E lamenta
comparando os anseios de antanho com a displicência de hoje face à dor:
“Lá onde gerações anelavam por ver cair os sinais duma inimizade forçada,
agora discute-se como deixar de fora os ‘perigos´ do nosso tempo, a começar
pela longa fila de mulheres, homens e crianças, em fuga de guerra e pobreza,
que pedem apenas a possibilidade dum futuro para si e para os seus entes
queridos”.
Porém,
salienta como conquista e “fruto da solidariedade sancionada em 25 de março de
1957”: “o período mais longo de paz dos
últimos séculos” – que o vazio da memória tenta ofuscar.
Assim,
avisa:
“A paz edifica-se sempre com a contribuição livre e consciente de cada um.
Todavia, ‘para muitos, [ela] aparece hoje de certo modo
como um bem indiscutido’; e, por isso, é fácil acabar por a considerar
supérflua. Ao contrário, a paz é um bem precioso e essencial, pois sem ela não
se é capaz de construir um futuro para ninguém e acaba-se por viver dia após
dia.”.
***
A referência
aos Pais da Europa não constitui um
simples reparo para os líderes atuais, mas um convite a “nos deixarmos
interpelar pelas suas palavras, pela atualidade do seu pensamento, pelo esforço
apaixonado pelo bem comum que os caraterizou, pela certeza de serem parte duma
obra maior que eles próprios e pela amplidão do ideal que os animava”. Com
efeito, “o seu denominador comum era o espírito
de serviço, unido à paixão política
e à consciência de que ‘na origem da
civilização europeia se encontra o cristianismo’, sem o qual os valores
ocidentais de dignidade, liberdade e justiça são em grande medida
incompreensíveis”. E, como afirmava São João Paulo II, Francisco assegura:
“A alma da Europa permanece unida, porque, além da sua origem comum, tem
idênticos valores cristãos e humanos, como são os da dignidade da pessoa
humana, do profundo sentimento da justiça e liberdade, da laboriosidade, do
espírito de iniciativa, do amor à família, do respeito à vida, de tolerância e
de desejo de cooperação e de paz, que são notas que a
caraterizam”.
Todavia, o
mundo mudou muito – diz o Papa – e “o nosso tempo está mais dominado pelo
conceito de crise”, que se concretiza na crise económica, na da família e na
dos modelos sociais consolidados. Enfim, face à generalizada crise das
instituições e à crise dos migrantes e refugiados, é preciso considerar que
este “é um tempo de discernimento, que nos convida a avaliar o essencial e a
construir sobre ele: é, pois, um tempo de desafios e oportunidades”, pois o
tempo de crise não tem de ser necessariamente negativo.
E o
Pontífice, no quadro duma genuína hermenêutica da crise, propõe que a chave de
interpretação da crise com vista ao futuro – segundo a tríplice postura do ver, avaliar e julgar para agir – se
encontre sobretudo nos pilares fundadores da UE: “a centralidade do homem, uma solidariedade concreta, a abertura ao
mundo, a busca da paz e do desenvolvimento, a abertura ao futuro”. Por
outro lado, há que ter em conta que, tal como um corpo vivo que perca o sentido
do seu caminho, ao qual acaba por faltar este olhar para o futuro, começa por
sofrer uma involução e, com o passar do tempo, corre o risco de morrer, também
a Europa Unida, se perder o rumo fundacional, corre o risco de se desagregar e
morrer como unidade vital.
Por isso,
Francisco não hesita em indicar a tarefa de quem governa: “discernir as
estradas da esperança”, identificando “os percursos concretos para se
conseguir que os significativos passos realizados até agora não fiquem
perdidos, mas sejam penhor dum caminho longo e frutuoso”.
E considera
que a Europa reencontra esperança,
- “Quando o
homem é o centro e o coração das suas instituições”, o que exige “a escuta
atenta e confiante das instâncias que provêm tanto dos indivíduos, como da sociedade
e dos povos que compõem a União” e o reencontro do “espírito de família,
em que cada um contribui, livremente, segundo as próprias capacidades e dons
para a casa comum”.
- Na solidariedade, enquanto antídoto para “os
populismos modernos” e que “inclui a consciência de ser parte de um só corpo e,
ao mesmo tempo, implica a capacidade que tem cada um dos membros de ‘simpatizar’
com o outro e com o todo”, evitando o perigo duma “vaga uniformidade ou
mesmo o triunfo dos particularismos”.
- “Quando não
se fecha no medo de falsas seguranças”, mas, na esteira da sua história, aposta
no encontro com outros povos e culturas, revelando-se com a sua identidade, que
“é, e sempre foi, uma identidade dinâmica e multicultural” – o que postula a
inclusão, interajuda, diálogo e eficácia – e sendo que, à luz destes
pressupostos, a UE “não se pode limitar a gerir a grave crise migratória destes
anos como se fosse apenas um problema numérico, económico ou de segurança”, mas
deve encará-lo como um profundo problema cultural e questionar-se sobre “Que cultura propõe a Europa hoje?”.
- “Quando
investe no desenvolvimento e na paz”, pois “o desenvolvimento não é fruto de um
conjunto de técnicas produtivas, mas diz respeito ao ser humano inteiro” – “a
dignidade do seu trabalho, condições de vida adequadas, a possibilidade de
acesso à instrução e aos cuidados médicos necessários” – e “não há paz onde
falta trabalho ou a perspetiva dum salário digno”, nem “nas periferias das
nossas cidades, onde se propagam droga e violência”.
- “Quando se
abre ao futuro”: dos jovens, “oferecendo-lhes
perspetivas sérias de educação, reais possibilidades de inserção no mundo do
trabalho; da família, “que é a célula
primeira e fundamental da sociedade”; do
respeito da consciência e dos ideais dos cidadãos, garantindo “a
possibilidade de ter filhos, sem o medo de não conseguir mantê-los”; e da defesa da vida “em toda a sua
sacralidade”.
***
Não há
dúvida de que a Europa carece de ser repensada à luz dos princípios fundacionais
e na perspetiva dos seus objetivos estratégicos. Há muito que fazer. Têm os
líderes de arregaçar as mangas da lucidez e da ação e os cidadãos e os povos – enquanto
elegem livremente os líderes das instituições europeias (não se
limitando a aceitar a imposição de nomes) – têm de
semear localmente o sémen globalizante da solidariedade, deixando que ganhe
raízes, cresça razoavelmente e lance ramagem frondosa não sufocante, mas
geradora de frescura, clorofila, beleza e produção que dê vida e vida de
qualidade.
Penso que,
mais do que aplaudir o Papa, é necessário ouvi-lo para seguir as suas
sugestões.
2017.03.25 – Louro de Carvalho
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