O semanário Ecclesia,
do dia 10 de março, evoca os 35 anos de Monsenhor Luciano Paulo Guerra como reitor do Santuário de
Fátima com a publicação de excertos de uma entrevista realizada em outubro de
2008 em vésperas de deixar o cargo.
Confesso que me soube a pouco essa referência, já que, sem deslustrar o
trabalho dos antecessores e o dos dois sucessores, é de relevar que o percurso
de Fátima não seria o mesmo sem Paulo Guerra. Sem o mínimo de desvio em relação
à História de Fátima e à sua Mensagem, o “reitor” revolucionou Fátima na
vertente humana e espiritual, no aspeto luzido das celebrações, na
administração colegial do Santuário, na criação de serviços, na multiplicação de
iniciativas no dimensionamento das infraestruturas, no aumento dos equipamentos
de utilização coletiva e nas acessibilidades.
Em relação à predita
entrevista, fui-lhe no encalço e reli-a. E há aspetos que julgo marcantes.
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Sobre a disposição de
espírito ao deixar a reitoria, assegura que nunca teve “saudades”
dos tempos onde esteve, “embora fossem sempre bons”, declarando que, “se
estivermos bem no presente, não teremos saudades do passado”. Por outro lado,
garante que o Padre Virgílio Antunes (o atual Bispo de Coimbra) “tem dons suficientes para que as celebrações
corram bem”.
No respeitante ao modo do exercício do cargo,
frisa que “o grande peso desta responsabilidade passa pelo decidir”, dando-se
conta com o tempo da responsabilidade de “dar a resposta do sim ou do não”.
Porém, reconhece que Deus lhe deu o grande dom de “consultar” e lembra que “os
capelães foram o grande suporte da administração das finanças do Santuário”,
sendo que “as grandes questões foram decididas em colégio”. Acha natural o
trabalho em equipa, porque gosta muito de “conversar com as pessoas numa base
da razão” e é-lhe “muito agradável conversar com pessoas desprovidas de
preconceitos”. E, em relação ao gosto pelo diálogo, em especial no atinente à
facilidade em dialogar com os peregrinos, sentencia:
“Se conseguirmos conversar com as pessoas, na
base do que há mais básico em nós, percebemos os contextos. É evidente que há
um nível de abstração que as pessoas não estão habituadas, mas, quando escrevo
e falo, procuro relacionar a abstração com o concreto. Gosto imenso de dialogar
com os peregrinos.”.
No entanto, sabe que as pessoas têm a ideia de
que é um homem distante, pelo que explica:
“Fui sempre uma pessoa programada e estou sempre
a fazer qualquer coisa. Portanto, se não previ conversar com uma pessoa que
encontro pelo caminho começo a ficar impaciente. Quando atravesso o recinto do
Santuário, é porque tenho alguma coisa para fazer no outro lado. Não sou uma
pessoa que esteja vaga. Por isso, muito raramente, na minha vida me senti só.
Tenho sempre algo para fazer e alguma dificuldade de mudar de atenção.”
Admite que gosta de contar até dez antes de tomar
uma decisão, mas diz que “o impulso imediato é para agir e responder”. E,
assentindo que é “um ‘bocadinho’ impulsivo”, reconhece que foi com a idade que
se tornou convicto de que “as pessoas devem evitar, a todo o custo, a precipitação”,
sendo que “precipitar-se é a passagem à fase da ação ou da palavra antes de ter
o pensamento bem apurado”. E, como diz, com a idade, o seu temperamento “tornou-se
cada vez mais secundário”.
Do que
refere da sua infância, destaco o facto de, ao ter ouvido o seu pároco cantar a
Oração Eucarística (ao tempo, o prefácio), ter desejado um dia poder
cantar como ele (mimetismo
infantil que marca). Depois, esse gosto de cantar, aliado à vocação
sacerdotal, levou-o a fazer o possível “para favorecer o canto no Santuário de
Fátima e, mesmo, fora dele”.
***
Questionado sobre a assistência às aparições de outubro
de 1917 por parte da avó e do pároco que o batizou, relata a memória que o pároco
retinha daquele dia 13:
“Ele era natural do Reguengo do Fetal (situa-se a
10Km de Fátima) e foi com alguns peregrinos que ficaram na casa dos seus pais
naquela noite. Aparelhou a égua e meteu-se ao caminho com os peregrinos. Choveu
toda a noite e toda a manhã. Num determinado momento, um indivíduo tira o
relógio e diz para os outros que era meio-dia: hora da aparição. Nessa altura, começou
ver o Sol a desandar, a desandar, a desandar... Tira-se do céu e vem contra
mim... Só tive tempo de me ajoelhar na lama e dizer: ‘Meu Deus, perdoai-me que
eu morro aqui’. E foi assim que se passou o Milagre
do Sol para o meu pároco.”.
E, referindo que havia os críticos das aparições,
“mas os jornais da época nem tiveram a coragem de dizer que aquilo era forjado”.
Evocando o ambiente mariano em que viveu e a
oração em família, aliada ao trabalho, sustenta que “a sociedade está
desintegrada porque o seu elemento fundamental – a família – está em
desintegração”. Na verdade, “com as movimentações das pessoas assiste-se à
aquisição de outros amores e ligações que acabam por prejudicar a família”. Por
outro lado, julga que “esta sociedade não se vai aguentar porque não terá
filhos suficientes” e que, depois, “as crianças, quando chegam a adultos, não
querem reproduzir no seu casamento o sofrimento a que assistiram nas suas casas”,
acabando por não se casar ou por viver um casamento a prazo. Neste aspeto, aponta
o dedo a governos que vão “onda” da desintegração e da facilitação do divórcio.
Gosta de viajar e tirar proveito humano, cultural
e linguístico das inúmeras viagens feitas, sobretudo das viagens ao
estrangeiro, registando que “somos pequenos e estamos encostados de flanco à
Espanha”, havendo “um histórico muito duro entre nós e os castelhanos”.
***
Da sua permanência de 4 anos em Paris como capelão
dos emigrantes e estudante de Filosofia, revela que fez o curriculum “ad lauream” para Filosofia, mas que não fez a “laurea”
porque sempre pensou que, a escrever algo, deveria ser de si mesmo. Diz gostar
de “refletir sobre as últimas causas”. E tem pena do “abandono a que se votam
os alicerces das casas porque eles são o suporte de tudo”. É claro que está a metaforizar
a relevância da Filosofia. Não obstante, se fosse a construir uma tese de
doutoramento, escolheria o tema da liberdade de pensamento.
E, questionado sobre se foi isso que o levou a
escrever uma carta aberta a Salazar,
explica o verdadeiro motivo da carta, que o Jornal
da Marinha Grande censurou e não publicou:
“Durante os meus tempos de Paris, via as
condições dos nossos emigrantes. Muitos deles não sabiam se tinham trabalho ou
onde dormiriam. Perante estes factos, escrevi a Salazar a dizer-lhe da
necessidade que havia de olhar para estes compatriotas.”.
Não era propriamente uma questão de política
interna, mas “era sobretudo sobre a falta de assistência e a miséria dos emigrantes”,
dada a sua sensibilidade aos problemas sociais. Ora, se tinha uma posição
crítica em relação à política salazarista, não deixa de a posicionar no tempo,
salientando uma antiga admiração pelo governante devido aos melhoramentos em
obras públicas, lembrando que “o povo só sentiu a miséria antes de Salazar e o
progresso depois de Salazar”. Porém, ele “demorou tempo demais”. Sobre os
militares de abril, não esquece o móbil do pronunciamento, o aspeto
profissional, mas reconhecendo que “o fruto estava maduro” e obviamente caiu. E,
em relação à guerra colonial, pensa que “Salazar concebeu a possibilidade de
uma unidade entre nós e as províncias ultramarinas”, que foi um erro e que o seu
isolamento “não o deixou perceber a realidade exterior”, porque “faltou-lhe
viajar”. Porém, aponta a incoerência dos que acham Mouzinho de Albuquerque um
herói, que defendia o colonialismo.
***
Recusa falar de uma Fátima antes de ser reitor e outra Fátima após a sua saída. Não costuma “demorar nada no passado”. E diz
que só gosta da história “para captar dela o que acontece no presente”. Porém,
realça que, quando chegou, “estávamos no Pós-Concílio”
– o que diz tudo. E confessa que teve “algum abalo com o Concílio”,
explicando-se:
“Como tenho uma grande tendência para refletir,
também tenho dificuldade em concordar com os meus mestres. Não foi fácil
concordar com tudo aquilo que me ensinavam. Sobretudo, com o dogma porque não
temos tempo. É necessário muito tempo para assimilar uma doutrina tão complexa,
rica e elaborada como é a doutrina da igreja. Em 2000 anos, a Igreja conseguiu
uma estrutura óssea dogmática tremenda. Tive necessidade de me retirar para
rever novamente a minha vida e os compromissos. Cheguei a França e encontrei um
ambiente muito diferente. Pessoas livres que continuavam católicas.”.
E engrandece a necessidade do diálogo
inter-religioso, pois, “se as religiões não se entenderem como se entenderão os
sem religião?”. Porém, não se furta a falar do Santuário de Fátima.
É em mais do dobro o número de funcionários. De 2
milhões de peregrinos passou-se ao cálculo de entre 4 a 5 milhões. Purificou-se
o ambiente e apurou-se mais a palavra. Criou-se o Centro Pastoral Paulo VI. As
duas casas de retiros (Dores e
Carmo) foram renovadas. As peregrinações estrangeiras passaram a
ser convenientemente acolhidas. Começou a concretizar-se a publicação da Documentação Crítica de Fátima. Fez-se a
cobertura da Capelinha das Aparições. Temos a Igreja da SS.ma
Trindade (não era basílica em
2008). Além disso, foram acarinhados os Valinhos (foram comprados cerca de 40 hectares) e
Aljustrel, tendo as casas dos videntes sido restauradas com fidelidade. E foram
comprados terrenos junto à casa da irmã Lúcia com a intenção de fazer lá um Centro Pastoral sobre a Família, para “acolher
grupos” e promover a reflexão sobre os problemas da família. E poderia ter
referido o altar do Recinto de Oração, cenário preparado para a primeira visita
do Papa João Paulo II e agora reformulado para o centenário.
***
Quanto à vinda de João Paulo II a Fátima, o Papa das surpresas – um grande homem que
o marcou muito pela seriedade, integridade e profundidade –, não se furta a
informação:
“Tenho uma certa presunção de pensar que também
contribuímos para que o Papa João Paulo II viesse logo no primeiro aniversário
do atentado. Um cardeal que estava no Vaticano veio ao Santuário – suponho que
em Novembro de 1981 – e, através dele, enviámos as memórias da Irmã Lúcia a
João Paulo II com um abaixo-assinado de todos os trabalhadores do Santuário
para que viesse cá celebrar o primeiro aniversário. O Papa adensou o mistério
de Fátima.”.
Sobre o atentado ao Papa, Papa que reforçou a índole
de Fátima como Altar do Mundo, diz:
“Tenho para mim que foi um meio que Deus usou
para colocar em relevo o segredo que prometia a conversão da Rússia. A partir
deste momento, João Paulo II abriu os olhos ao segredo de Fátima e abriu o
segredo de Fátima. Um homem como ele pôde ter inspirações interiores na sua
oração, reflexão e nas pessoas que o acompanham. Ele entendeu que Deus o queria
como homem da passagem do milénio e, também, da libertação dos países
comunistas.”.
Tendo voltado a Portugal e a Fátima dez anos após
o atentado em Roma, voltou pela última vez em 2000 para beatificar Jacinta e
Francisco – uma visita onde João Paulo II furou os protocolos e entregou o anel
a Nossa Senhora. A este respeito, Paulo Guerra historia:
“O anel tinha escrito o lema dele: ‘Totus Tuus’. Foi oferecido pelo cardeal
Wyszynski, após a eleição dele. Como enviámos o guião da celebração para o
Vaticano, onde o cântico inicial era o ‘Totus
Tuus’, eu imagino que ele pensasse que era uma boa ocasião para oferecer o
anel.”.
Relativamente à visita de Paulo VI, numa época em que as aparições eram desvalorizadas, frisa:
“Foi uma visita com muito impacto e dramática.
Ele veio em 1967 – dois anos após o encerramento do II Concílio Vaticano – e
Paulo VI quis satisfazer (em 1964) o pedido de várias centenas de bispos que
lhe fizeram um abaixo-assinado para que ele atendesse o pedido de Fátima e
consagrasse o mundo ao Imaculado Coração de Maria. Em 1964, Paulo VI proclamou
Nossa Senhora como Mãe da Igreja.”.
E acrescenta:
“Paulo VI tomou a decisão de vir a Fátima por um
impulso muito pessoal, mas amargurado. Ele teve quem se manifestasse contra a
sua vinda. Veio somente a Fátima – não quis ir a Lisboa – e se Salazar quis
falar com ele teve de vir a Fátima.”.
Não estava esquecida a visita a Bombaim e fora impedida
a ida do Papa a Goa.
E da causa das colónias e movimentos de
libertação, estava no ar o facto de Holden Roberto ter sido recebido pelo Papa –
acontecimento que Salazar não tolerou.
***
Diz que o marcou muito
mais a beatificação de Jacinta e Francisco que a inauguração da Igreja da
Santíssima Trindade, porque a beatificação “foi lançar um selo quase definitivo
sobre a integridade psíquica, moral, ascética e espiritual daquelas crianças” e
porfia que, quanto mais lê os escritos da irmã Lúcia, mais o encanta “o relato
que ela faz das duas crianças”.
Olhando para a Igreja da Santíssima Trindade, confessa
que nada o deslumbra: nem o todo nem uma peça em especial, explicitando:
“São obras interessantes, mas nenhuma daquelas
obras é de deslumbrar. O painel com aquelas cores é muito belo. Fica muito bem
ali porque concentra a atenção das pessoas. Tenho pena de não ter tido coragem
de pedir para que as cores fossem mais marcadas. O Cristo é um belo Cristo, mas
não tem nada de Salvador Dalí ou Picasso. É um Cristo humano que olha para as
pessoas com a consciência de que está inocente. É um Cristo que sabe que tem
por trás a Jerusalém celeste. O que me alegra mais é a simplicidade daquele
edifício.”.
E, sobre a
fonte, sente que “de noite tem um ar de mistério”.
Recorda que deixou programada uma Via-Sacra entre
o Centro Pastoral e os Valinhos, pensando que seria uma oportunidade para fazer
um museu ao ar livre, e assegura que gostava de publicar algo sobre a Igreja da
Santíssima Trindade e que estava a escrever um livro – tinha já cerca de 350
páginas escritas – sobre os “Papas e Fátima”.
***
Finalmente,
aduzo a minha outra razão para a relevância da figura de Monsenhor Luciano
Paulo Guerra. Fátima, na sua mensagem inteiramente conexa com o Evangelho, coincide
com a dinâmica da Quaresma. Como esta, pela escuta da Palavra e envolvimento na
penitência, nos leva para a Páscoa, também Fátima se centra, pela mão de Maria,
na Páscoa da Eucaristia. Ora com Paulo Guerra passamos da Basílica de Nossa Senhora
do Rosário (da oração e penitência) para a da Santíssima Trindade, voltando ao início
das aparições do Anjo: Eucaristia e Trindade.
Mais:
se a Quaresma prescreve, no apelo ao arrependimento/penitência, a oração, o
jejum e a esmola, com Paulo Guerra, o Santuário, que falava da oração e da
penitência (arrependimento do pecado e a mortificação) e apelava à esmola para dentro,
passou a falar também da esmola do Santuário para fora, para os pobres e as
Igrejas. Não é uma reviravolta, mas é uma mais-valia!
***
“Na minha terra rezava-se o Terço todos os dias”.
“Ao jantar rezávamos um bocadinho – dois a três minutos – e aos domingos íamos
à missa”. (Paulo Guerra)
2017.03.11 – Louro de Carvalho
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