sábado, 2 de maio de 2020

A propósito da Memória de São José Operário e Dia do Trabalhador


É bom não esquecer que o mês dedicado à Virgem Maria se iniciou com a comemoração universal do dia do trabalhador, que o Arcebispo do Rio de Janeiro considera “um clamor a reconhecer todas as circunstâncias que envolvem a realidade laboral, principalmente aquelas situações de exploração do trabalho e a realidade do crescente desemprego”.
No dia do trabalhador, que evoca a luta histórica de tantos e tantas pelo respeito da sua dignidade de pessoas humanas e que Pio XII colocou sob a égide do operário São José, esposo de Maria e pai adotivo de Jesus, instituindo a festa que a reforma conciliar categorizou como memória litúrgica, há que prestar a atenção orante e solidária a “todos aqueles homens e mulheres que se esforçam na luta pelo pão de cada dia, com honestidade e valentia, fazendo frutificar na terra os dons recebidos por Deus manifestos em suas habilidades e colhendo os frutos do suor do seu rosto”. E frisa o Cardeal Tempesta que “o trabalho foi desde o princípio um preceito para o homem, uma exigência da sua condição de criatura e expressão da sua dignidade”, bem como “a forma como colabora com a Providência Divina sobre o mundo”.
Se a solenidade do Pai Adotivo de Jesus, a 19 de março, o focaliza como Padroeiro da Igreja, a 1 de maio, apresenta-se-nos “o Homem do Trabalho, pobre, que ganhou o pão de cada dia com o suor do seu rosto”, um exemplo que o próprio Jesus seguiu trabalhando como operário até os 30 anos de idade. José, o homem discreto, sustentou a sua família durante toda a vida com o trabalho de suas próprias mãos, cumpriu os seus deveres para com a comunidade, ensinou uma profissão ao Filho de Deus e, assim, facilitou o cumprimento das profecias de salvação da Humanidade. E, proclamando-O protetor dos trabalhadores, a Igreja quis mostrar que está ao lado deles, dando-lhes como patrono o mais exemplar dos homens, que aceitou ser pai adotivo do Deus feito homem, mesmo sabendo o que poderia acontecer à sua família. José, que lutou pelos direitos da vida do ser humano, agora, coloca-se ombro a ombro na luta pelos direitos humanos dos trabalhadores do mundo por meio dos membros da Igreja, que aumentam as fileiras dos que defendem os operários e o seu direito a uma vida digna.
Já o Papa Leão XIII se sentiu obrigado a intervir na questão social com a Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891), sobre a condição dos operários, baseado nas ideias distributivistas de Wilhelm Emmanuel von Ketteler e Edward Manning. Na verdade, com a revolução industrial e o advento das sociedades democráticas afloraram algumas graves questões a que urgia dar resposta. Rejeitando o socialismo e defendendo claramente o direito de os trabalhadores formarem sindicatos, o Papa criticava fortemente a falta de princípios éticos e valores morais na sociedade progressivamente laicizante e aduzia alguns princípios que deveriam ser usados na procura de justiça na vida social, económica e industrial, como a melhor distribuição da riqueza, a a intervenção do Estado na economia em prol dos pobres e desprotegidos e a verdadeira caridade patronal em relação à classe operária.
Os sucessores de Leão XIII chamaram e esta encíclica a “Carta Magna” do “Magistério Social da Igreja” com que se iniciou a sistematização do pensamento social católico, passado ser o pilar fundamental da “Doutrina Social da Igreja(DSI).
Pio XI, na Encíclica Quadragesimo anno (15 de maio de 1931), embora considere legítimo o livre mercado, diz que não se pode deixá-lo governar o mundo e que o mundo não deve ser governado apenas pela economia, que agrilhoa a política, como evidencia a dura experiência dos trabalhadores, nem tampouco pode converter-se numa ditadura económica que se rege por si mesma ou como um fim em si mesma – despotismo económico. Considera que é tão funesto o nacionalismo ou imperialismo económico como o internacionalismo do dinheiro, que só têm pátria em si mesmos.
A Radiomensagem de Pio XII (1 de junho de 1941) reafirma o direito à propriedade como direito natural, mas limitado segundo a ordem objetiva estabelecida por Deus, pois não pode constituir obstáculo a que seja satisfeita a ‘exigência irrevogável de os bens, criados por Deus para todos os homens, estarem equitativamente à disposição de todos, segundo os princípios da justiça e da caridade”. E sustenta que as relações de trabalho devem ser reguladas primeiro entre os interessados e, no caso de estes não cumprirem ou não poderem cumprir os seus deveres, compete ao Estado intervir no campo da distribuição e divisão do trabalho na medida em que o requer o bem comum.
A Encíclica Mater et Magistra, de São João XXIII (15 de maio de 1961), considerando as grandes, rápidas e universais transformações no mundo e as desigualdades no plano económico e internacional, exortou “as nações mais ricas a ajudar as mais pobres” e defendeu “a participação dos trabalhadores na posse, gestão e lucros das empresas”.
São Paulo VI produziu dois documentos relevantes sobre a matéria: a Encíclica Populorum Progressio (26 de março de 1967) e a Carta Apostólica Octogesima adveniens (14 de maio de 1971). A primeira ensina que a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Assim, a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo o que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, “o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos”. Surgindo algum conflito “entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais”, é ao poder público que pertence “resolvê-lo, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais”. A segunda refere, em nome da dignidade da pessoa humana:
Todo o homem tem direito ao trabalho, à possibilidade de desenvolver as próprias qualidades e a sua personalidade no exercício da profissão abraçada, a uma remuneração equitativa que lhe permita, a ele e à sua família, ‘cultivar uma vida digna no aspecto material, social, cultural e espiritual’, à assistência em caso de necessidade, quer esta seja proveniente de doença ou da idade. Se é certo que, para a defesa destes direitos, as sociedades democráticas aceitam o princípio da organização sindical, por outro lado, elas nem sempre estão abertas para o exercício do mesmo. Deve admitir-se o papel importante dos sindicatos: eles têm por objetivo a representação das diversas categorias dos trabalhadores, a sua legítima colaboração no progresso económico da sociedade e o desenvolvimento do seu sentido de responsabilidade, para a realização do bem comum. (…) Quando se trata de serviços públicos em particular, necessários para a vida quotidiana de toda a comunidade, dever-se-á saber determinar os limites, para lá dos quais o prejuízo causado se torna inadmissível.”.
São João Paulo II escreveu duas importantes encíclicas: a Laborem Exercens (14 de setembro de 1981); e Centesimus Annus (1 de maio de 1991). A primeira preconiza que os direitos de qualquer trabalhador, que exerce a sua atividade, para se engrandecer como pessoa humana. E, em particular, considera os direitos das mulheres que trabalham, dos emigrantes, dos camponeses, dos deficientes; realça a necessidade de um fundo de subsistência destinado aos trabalhadores desempregados; reconhece o direito de associação em sindicatos, o direito à greve justa (sem fins políticos e prejuízo para os serviços essenciais da sociedade), o direito ao salário, à família, à reforma ou aposentação; e apresenta a espiritualidade do trabalho, que vem a ser a continuação da obra do Criador, assim como a participação na Páscoa (cruz, morte e ressurreição) de Cristo. E a segunda evidencia quão sábias eram as advertências de Leão XIII relativas à propriedade particular e ao socialismo; considera que a propriedade particular é direito inerente a toda pessoa humana, mas que é meio (ou instrumento) para os homens crescerem em solidariedade e sentimentos fraternos; e admite que o lucro obtido honestamente por uma empresa de mercado é um valor reconhecido, mas um valor subordinado a finalidades humanitárias, pois o ser vale mais que o ter.
Bento XVI aborda o tema na Encíclica Caritas in Veritate (7 de julho de 2009), não pretendendo oferecer soluções económicas, mas orientações éticas, para que a economia, orientada por “uma ética amiga da pessoa que respeite a vida, os mais pobres e desfavorecidos”, possa “funcionar corretamente” e contribua para o autêntico desenvolvimento de todos os homens e para a minimização dos desequilíbrios mundiais. Exorta os países mais ricos a que ajudem as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da recessão e, em consequência, mais desequilíbrios. E realça a necessidade urgente “de uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento”.
O Papa Francisco tem denunciado recorrentemente esta economia de capitalismo sem rosto e que mata e a queda intempestiva na corrupção. E, dentre os vários pronunciamentos que fez sobre a realidade concreta do trabalho, diz num deles:
É uma prioridade cristã valorizar o trabalho, e inclusive uma prioridade do Papa. Porque se origina daquele primeiro mandamento que Deus deu a Adão: ‘Vai, faz crescer a terra, trabalha a terra, domina-a’. Sempre houve uma amizade entre a Igreja e o trabalho, a partir de Jesus trabalhador. Onde houver um trabalhador ali estarão o interesse e o olhar de amor do Senhor e da Igreja. Penso que isto é claro.” (Visita pastoral a Génova, 27 de maio de 2017).
Na sua audiência geral no dia 1 de maio de 2013, dirigiu um apelo aos poderes públicos no sentido de terem em conta a dignidade do trabalho do homem: 
Eu gostaria de estender a todos o convite à solidariedade e aos chefes do setor público convidá-los ao encorajamento, a fazerem de tudo para darem novo impulso ao emprego, o que significa preocuparem-se com a dignidade da pessoa mas, acima de tudo, exorto-os a não perderem a esperança. São José também teve momentos difíceis, mas nunca perdeu a confiança e soube superá-los, na certeza de que Deus não nos abandona. E agora gostaria de falar especialmente a vós, meninos e meninas, a vós jovens: esforçai-vos em vossas tarefas diárias, no estudo, no trabalho, nas relações de amizade, contribuindo com os outros; o vosso futuro também depende de como vós ides viver esses preciosos anos de vida. Não tenhais medo do compromisso, do sacrifício e não olheis para o futuro com medo, mantende viva a esperança: há sempre uma luz no horizonte.”.
E transcrevo a “Súplica do Santo Padre pelos trabalhadores” na pedreira de granito de Mahatzana (Antananarivo), no domingo, 8 de setembro de 2019, no âmbito da viagem apostólica a Moçambique, Madagáscar e Maurício.

Deus nosso Pai, criador do céu e da terra,
Nós Vos damos graças por nos reunirdes aqui como irmãos,
Em frente desta pedreira britada pelo trabalho do homem:
Nós Vos pedimos por todos os trabalhadores.

Por aqueles que o fazem com as próprias mãos e enorme esforço físico.
Preservai os seus corpos do desgaste excessivo:
Que não lhes falte a ternura e a capacidade de acariciar os seus filhos e jogar com eles.
Concedei-lhes o vigor da alma e a saúde do corpo
Para que não fiquem esmagados pelo peso da sua tarefa.

Fazei que o fruto do trabalho lhes permita
Assegurar uma vida digna às suas famílias.
Que encontrem nelas, à noite, calor, conforto e encorajamento,
E que juntos, reunidos sob o vosso olhar,
Conheçam as verdadeiras alegrias.

Saibam as nossas famílias que a alegria de ganhar o pão
É perfeita, quando este pão é partilhado.
Que as nossas crianças não sejam forçadas a trabalhar,
Possam ir à escola e continuar os seus estudos,
E os seus professores consagrem tempo a esta tarefa,
Sem precisarem doutras atividades para a subsistência diária.

Deus da justiça, tocai os corações de empresários e dirigentes:
Que eles provejam a tudo o que é necessário
Para assegurar a quantos trabalham um salário digno
E condições respeitosas da sua dignidade de pessoas humanas.

Com paterna misericórdia, cuidai daqueles que não têm trabalho,
E fazei que o desemprego, causa de tantas misérias,
Desapareça das nossas sociedades.
Possa cada um conhecer a alegria e a dignidade de ganhar o pão
Para o trazer para casa e sustentar os seus queridos.

Pai, criai entre os trabalhadores um espírito de verdadeira solidariedade:
Saibam velar uns pelos outros,
Encorajar-se mutuamente, sustentar quem está extenuado, levantar aquele que caiu.

Perante a injustiça, que o seu coração nunca ceda ao ódio,
Ao rancor, à amargura, mas mantenha viva a esperança
De ver um mundo melhor e trabalhar por ele.

Que saibam, juntos e de forma construtiva,
Fazer valer os seus direitos
E que as suas vozes e o seu clamor sejam atendidos.

Deus nosso Pai, Vós destes, como protetor
Aos trabalhadores do mundo inteiro, São José,
Pai adotivo de Jesus, esposo corajoso da Virgem Maria:
A Ele, entrego quantos trabalham aqui, em Akamasoa,
E todos os trabalhadores de Madagáscar, especialmente aqueles
Que levam uma vida precária e difícil.

Que Ele os guarde no amor do vosso Filho
E os sustente na sua vida e na sua esperança. Ámen!

***
Imploremos, pois, a intercessão de São José para realizarmos bem o trabalho que nos ocupa tanto tempo: as tarefas domésticas, profissionais, o escritório, o serviço público, o balcão, a cozinha, o computador, o trabalho fabril e de estrada, a docência, o trabalho de carregar pacotes ou de cuidar da portaria dum edifício, o serviço aos doentes e aos idosos, sobretudo neste tempo de pandemia. A grandeza dum trabalho não reside no seu status ou na quantidade do salário, mas  na capacidade de nos aperfeiçoar humana e sobrenaturalmente, nas possibilidades que nos oferece de levar adiante a família e de colaborar nas obras em favor dos homens, na ajuda que através dele prestamos à sociedade.
Nestes tempos de instabilidade sanitária e económica, São José operário pode valer a todos os que sofrem o drama do desemprego e a todos aqueles que veem drasticamente reduzido o seu rendimento. Que o guardião da Sagrada Família interceda pelas nossas necessidades de paciência e ultrapassagem da crise de confinamento clamando ao Pai e a Cristo para que não nos falte o pão de cada dia, pão que alimenta o corpo e pão que alimenta o espírito.
2020.05.02 – Louro de Carvalho

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