Em
artigo de Sara Oliveira publicado, a 13 de maio, no “educare.pt”, sob o título “Como
está a literacia digital de alunos e professores?”, fica patente a
panorâmica do ensino à distância no país por virtude da pandemia, que levou a
que se ensinasse, aprendesse e estudasse em
casa.
Considerando fundamentais a motivação e os meios
disponíveis, diz a colunista que “a literacia digital é essencial” para os
desafios com que nos confrontamos, pelo que tem de se “garantir o acesso ao
novo modelo de escola a todos os alunos e assegurar uma maior articulação e
menor dispersão das práticas docentes”. E, face à inédita situação – não do ensino à distância (já existia
no MOOC, e-learning e mesmo b-learning), mas pela razão que o generalizou, pelo modo que assumiu e pelas faixas
etárias que mobiliza (Nunca alunos e professores, de todos os níveis de
ensino, estiveram ligados por um modelo digital e tecnológico como agora) – é de questionar “como está a literacia digital”.
Em geral, os estudos internacionais fornecem
indicadores que situam as escolas e os professores portugueses em termos de
competência digital e de preparação tecnológica num patamar inferior ao da
apetência e literacia digital dos alunos. Porém, Neuza Pedro, doutorada em
Educação na especialidade TIC, professora do Instituto de Educação e cocoordenadora
do Laboratório de e-learning da
Universidade de Lisboa, entende que a resposta sobre a literacia digital de
quem ensina e de quem aprende não é simples de dar, sendo “incorreto e
desonesto” simplificá-la. Diz a investigadora e docente ao “educare.pt”:
“A verdade é que neste domínio a realidade
nacional é marcada por grandes assimetrias e os dados que existem nivelam em
torno de medidas de tendência central (níveis médios), os quais levaram à
adoção de respostas negligentes face às grandes diferenças que pautam a nossa
realidade educativa”.
Com efeito, se há um conjunto de escolas e professores
com grande preparação e experiência de relevo no domínio da inovação e da
integração das tecnologias nas práticas pedagógicas (note-se a
profusão de ambientes educativos inovadores existentes em Portugal), também há uma significativa fatia de escolas e
professores para quem a realidade tecnológica é desconsiderada, “replicando-se
em sala de aula dinâmicas de ensino muito tradicionais”.
Segundo as estimativas mais recentes, há cerca de 200
mil alunos sem acesso a computador para uso pessoal e/ou sem acesso à Internet,
ou seja, em infoexclusão. Há entre os alunos, sobretudo os de meios
socioeconómicos desfavorecidos, um acesso e uso desiguais das tecnologias digitais
e ambientes online. Assim, é “complexa e demorada” a resposta à questão se os
alunos e os professores estão preparados e têm respondido à utilização das
novas plataformas de ensino, acrescendo a isto “todo um contexto ligado a uma
pandemia e às adversidades vividas nos últimos meses de dimensão sem
precedentes”.
Seja como for, Neuza Pedro, verificando que “professores
e alunos procuraram da melhor forma mudar a sala de aula para um ambiente
online”, sublinha:
“Considerando tudo o que se fez, todos os
esforços do Ministério, das autarquias, das direções escolares, dos pais,
professores e alunos e, atendendo ao panorama nada favorável em que todo o
processo se deu, diria que o saldo é positivo e o que se conseguiu estabelecer
como sistema educativo nos últimos meses suplanta em muito as fragilidades que
a este se pode apontar”.
Por seu turno, a 16 de abril, o professor Paulo Guinote, no seu
blogue “O Meu Quintal”, publicou
um texto que intitulou “#EstudoEmQualquerLugar”
levantando a questão se os alunos estão aptos a lidar com as novas tecnologias.
E escreveu, um pouco contra a corrente, que “muita miudagem não percebe grande
coisa de computadores”: “nasceram com o chip dos zingarelhos, com os polegares
em riste”, mas a maior não percebe “o que é para fazer se não for ver vídeos e
jogar umas cenas maradas, tipo gta, versão 10.3 com o crack das chocapicas”. Nestes
termos, a resposta à questão se os alunos estão focados no ensino à distância
que exige a utilização plataformas tecnológicas “tem várias variantes”, sendo
de ter em conta “a motivação, os meios e os equipamentos disponíveis”. Ora, só
parcialmente é que “é verdade” dizer que “as gerações mais novas ‘já trazem o
chip’ dos suportes digitais e que são nativos de um mundo já dominado pela
tecnologia quando nasceram”. Por um lado, a “competência para determinados
procedimentos não nasce do facto de convivermos com eles em nosso redor”, refere
Guinote ao “educare.pt”,
acrescentando que é necessária a aprendizagem “e, mesmo que seja mais rápida
entre quem já nasce rodeado por aparatos tecnológicos, não significa que tenha
sempre sucesso ou que se transforme em verdadeira mestria”. Por outro lado, o
acesso aos meios tecnológicos “é muito desigual na sociedade, como sempre
aconteceu com a generalidade das inovações ao longo dos tempos”. E explica
recorrendo à História:
“A História ensina-nos que os grandes
avanços tiveram sempre ‘vencedores’ e ‘perdedores’. Os que ficaram na vanguarda
graças ao domínio das novas técnicas (do fogo ou da roda à imprensa, à máquina
a vapor, à biotecnologia) e os que foram deixados para trás. Veja-se o caso da
vacinação que há mais de meio século se generalizou no mundo desenvolvido, mas
ainda hoje tem dificuldades em impor-se em várias zonas do mundo. E o mesmo é
válido para as novas tecnologias.”.
Admite que os alunos podem ter acesso a equipamentos,
mas “nem sempre têm a capacidade ou a disciplina necessárias para gerir uma
nova situação que vai além do uso de redes sociais ou a exploração de jogos na
perspetiva do utilizador”. E, para sustentar que “o que é simples pode
tornar-se um quebra-cabeças”, exemplifica:
“Mesmo no Ensino Secundário, algo tão
elementar como um registo na Escola
Virtual pode provocar uma avalanche de mails ou mensagens por incapacidade
em perceber procedimentos muito simples e em reter as informações para a sua
exploração”.
E conclui que a literacia digital (não apenas
em Portugal) “é muito
heterogénea, desigual e, muitas vezes, superficial”.
Quanto aos professores, Guinote aplica parte do que
disse sobre os alunos, mas nem sempre pelos mesmos motivos. Considera que “a
adaptação às novas tecnologias foi gradual, foi uma imersão progressiva” desde os
finais dos anos 80 e que, por vezes, “o problema é a capacidade para acumular
mais informação e ir acompanhando a sucessão de ferramentas, dos suportes
físicos (…) às plataformas”. Reconhece que, para quem nasceu no
tempo do manuscrito, da tecla batida e da tira corretora, “nem sempre é fácil
acompanhar o ‘estado da arte’ em matérias digitais” e que há “a pressão por
parte de quem é mais dedicado às novas ferramentas para que todos adiram, mas
“nem sempre com as melhores metodologias”. E, sustentando que os suportes digitais
deviam servir para aligeirar os procedimentos, desmaterializar a burocracia e a
documentação e não para a sua replicação, aponta que isso não tem acontecido. E
observa:
“Em muitas escolas, as ferramentas digitais
não substituem as analógicas, apenas se sobrepondo a elas e criando uma nova camada
de trabalho hiperburocrático. (…) Também os mais novos protestam com a
irracionalidade de múltiplas grelhas de monitorização e registo de atividades
que replicam o que as próprias plataformas já fazem de forma automática.”.
Para Rolando São Marcos, professor de Informática,
Eletricidade e Eletrónica, em geral, a utilização destas novas ferramentas está
a correr bem. E afirma que “os miúdos estão a desenrascar-se muito bem”. Aulas
online, videoconferências, trabalhos no computador estão sem problemas de
maior. Todavia, repara que “os afetos, sobretudo em idades tão iniciais, perdem-se
por completo”, pois a interação tem agora quilómetros de distância. Entretanto,
neste ambiente, que tem como positivo, o professor denuncia problemas como: falta
de equipamentos, falta de meios, Internet demasiado lenta. Se bem que os
alunos, em geral, lidam bem com as ferramentas e plataformas digitais e há
editoras que disponibilizam tutoriais facilitadores do trabalho a professores e
estudantes, como a Escola Virtual, as
dificuldades situam-se nos alunos mais carenciados que não têm equipamentos
para estas aulas, nas famílias sem computadores, algumas com smartphones que
acabam por esgotar dados.
Não havendo acesso total a estas tecnologias, há casos
em que um novo circuito se cumpre: os professores fazem chegar os trabalhos às
escolas, que os entregam às autarquias locais, que os levam aos alunos (muitas
vezes a GNR e a PSP colaboram); e os
trabalhos dos alunos são entregues nas juntas de freguesia que os levam às
escolas, que os digitalizam e enviam para os professores.
Para Lurdes Figueiral, presidente da APM (Associação
de Professores de Matemática), os alunos
têm a seu favor a familiaridade com o mundo tecnológico, pois, “independentemente
da plataforma, é mais natural adaptarem-se”, colocando-se o problema “no
sentido crítico em relação àquilo que utilizam e às potencialidades do que
utilizam”.
Quanto aos professores, diz que alguns estão
familiarizados com as novas tecnologias, outros não; e que “os menos familiarizados, por exemplo, anotam
todos os passos que têm de dar na utilização das novas plataformas digitais (…),
precisam de cábulas para não se perderem no mundo online”. Ora, isto coloca
outros problemas: mais stresse, maiores dificuldades no ensino à distância, “mais
uma fonte de ansiedade e de trabalho”.
Filomena Viegas, presidente da APP (Associação
de Professores de Português), diz que
este ensino é a “substituição possível” da forma presencial; e os professores
estão a adaptar-se, estão mais orientados que no início, o uso das novas
tecnologias tem melhorado. Em sua opinião, a capacidade para trabalhar
conteúdos não se perdeu: aulas síncronas, momentos assíncronos, emissões
televisivas do #EsttudoEmCasa. E, realçando a importância da manutenção
das rotinas, associadas às aprendizagens, para professores e alunos, aponta os
exageros, a carga burocrática aumentada: nos horários, nos recursos, na
quantidade de trabalhos enviados aos alunos… Há casos de trabalho fora de
horas, professores que se sentam ao computador às 8 da manhã e às 8 da noite
ainda estão a responder e a enviar e-mails a pais e alunos. E refere que, “por
vezes, é difícil manter uma disciplina muito forte relativamente a pais e
alunos”.
***
Contudo, este regime de ensino coloca os seguintes
desafios: garantir o acesso a este modelo a todos os alunos, num nível mínimo
de igualdade de circunstâncias; assegurar maior trabalho de articulação entre
professores, maior interdisciplinaridade, maior homogeneidade nas práticas
docentes, menor dispersão. A este respeito, Neuza Pedro adverte:
“É necessário que se crie um ‘sentir
coletivo de escola’ online, tal como em cada escola se procura criar no
presencial, logo a proliferação de uma grande multiplicidade de soluções,
plataformas e recursos de suporte à aprendizagem não é favorável. Cria nos
alunos mais desorganização do que era necessário.”.
O encerramento das escolas foi compensado com excesso,
excesso de soluções e meios mobilizados – plataformas online, webconferências,
trabalhos por email, #EstudoEmCasa, etc.. E, segundo Neuza Pedro, o excesso de
ferramentas, de medidas de apoio, de trabalho enviado aos alunos, de horas
ligados online… foi “tudo causado pela boa vontade dos atores, por um forte
sentido de missão abraçado por escolas e professores”.
Porém, esta experiência levanta uma grande questão: Até que ponto as plataformas, ferramentas e
recursos digitais, de uso já generalizado, devem fazer parte do quotidiano
escolar? E Neuza Pedro entende, sem reservas, que, mais do que uma solução
temporária e de recurso, deveria tornar-se um método usual e comum. E
considera:
“O uso da tecnologia nas escolas deveria ser
uma realidade estabelecida e plenamente difundida no dia a dia das escolas.
Aliás, isso deveria ser uma exigência da sociedade civil, tal como o é na
saúde, na indústria… não aceitamos que nenhum médico exerça hoje sem recorrer à
tecnologia que tem ao dispor, não nos faz qualquer sentido… na educação também
deveríamos ter a mesma exigência.”.
Verificando que o país está hoje muito melhor do que
na década anterior, mas é preciso insistir neste caminho”, a docente e
investigadora argumenta:
“Caso contrário, a escola estará a preparar
as crianças e jovens para um mundo que já não existe. Sublinho que as nossas
escolas têm procurado combater esse atraso tecnológico e muito se tem
conseguido, mas é necessário continuar a insistir nesse processo.”.
Porém, coloca o dedo em vários pontos:
“As escolas estão tecnologicamente hoje
muito mal equipadas, os professores precisam ainda de formação no que respeita
à integração educativa das tecnologias, os currículos precisam de ser
científica e tecnologicamente atualizados e os nossos jovens precisam deter
maiores índices de literacia digital, esses elementos são requisitos mínimos
para fazer face à sociedade que queremos edificar e para um melhor amanhã.”.
***
Ao invés
do que geralmente se observa, o texto de Sara Oliveira, sustentado por
testemunhos vários de especialistas, não embarca na rotulação de infoexcluídos
aos professores mais velhos nem alimenta a ideia que os miúdos são em absoluto hábeis
na utilização das novas tecnologias. Contudo, patenteia a deficiência
tecnológica em dois patamares: as escolas mal equipadas nesta área, sem um
comutador (ou equivalente) por aluno, Internet lenta ou sem funcionar, má
utilização das tecnologias, excesso de burocracia e de instrumentos de
controlo; e os alunos e famílias sem posses para aceder a estas novas
tecnologias. Dá conta do esforço dos professores nesta matéria, sendo que, por
insuficiência de atualização dos equipamentos e de conhecimento por parte de
alguns, muitos se sentiram obrigados, pela pressão e pelo dever, a uma
verdadeira cambalhota informática, tornando-se “escravos” do ritmo dos alunos,
da inibição destes em participar na aula ativamente e de intervenções abusivas
de alguns encarregados de educação.
Assentindo
que esta via tecnológica de ensino deve generalizar-se na escola aquando das
sessões presenciais e o ensino à distância deve complementar o ensino
presencial, importa: cuidar da formação atempada e efetiva de todos os
docentes nestas áreas (não para cumprir calendário ou acumular
créditos) e não
apenas criar plataformas para verificar se estão preparados; equipar as escolas
de forma adequada; dotar todo o território nacional de acesso à rede móvel de
telecomunicações por parte de todos os operadores; formar os professores para
falar em rádio e ensinar pela televisão, para não acontecer como desta feita,
em que os docentes tiveram que se preparar à pressão para o tele-ensino,
mostrando muita coragem, mas também algumas debilidades; e apoiar os professores
e alunos na aquisição de meios informáticos, acolhendo o lado positivo do que
fez o Ministério da Educação no tempo de José Sócrates.
E,
sobretudo, há que parar com a diferença entre os infoexcluídos e os possuidores
de literacia tecnológica. Com efeito, a deficiência tecnológica ao nível da
educação é ainda alastrante, pelo que a experiência, embora positiva, mostra,
pelo que, além da posse dos equipamentos, há que tratar da disciplina e na sua utilização
de forma adequada aos fins e resultados. Por outro lado, todos somos capazes,
se nos derem oportunidades, mesmo que tenhamos de utilizar cábulas!
Por fim,
não se despreze a ferramenta da escrita manual, da leitura em papel, do livro,
do jornal e do panfleto, ferramentas que podem ser muito úteis quando tudo
falhar. Não se venha a criar outra exclusão (tradicioexclusção) quando falharem as novas
tecnologias!
2020.05.15 –
Louro de Carvalho
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