É a
exortação de Pedro na perícopa (1Pe 3,15-18) da sua 1.ª
carta proclamada como 2.ª leitura no VI domingo de Páscoa neste Ano A – uma
carta exortativa enviada às
comunidades cristãs estabelecidas em algumas zonas rurais da Ásia Menor, para
dar aos crentes, confrontados com a hostilidade
do mundo, o alento à confiança e o incentivo ao sereno testemunho da sua fé,
mostrando o seu amor a todos os homens, mesmo aos caluniadores e perseguidores.
Na verdade. Cristo, que fez da sua vida um dom de amor a todos, é o referente
dos cristãos em Igreja e o modelo que têm sempre diante dos olhos.
Os destinatários da carta, pertencendo maioritariamente a
grupos menos favorecidos, têm um quadro de fragilidade que os torna vulneráveis
à pregação de falsas doutrinas e às perseguições.
Por isso, o emissor pretende animar os crentes e estimulá-los
à fidelidade ao compromisso que assumiram com Cristo pelo Batismo. Para tanto,
lembra-lhes o exemplo de Cristo, que trilhou um caminho de cruz, mas que
desemboca na ressurreição. Nestes termos, é dito aos cristãos qual deve a sua
atitude no confronto com a hostilidade do mundo e como hão de reagir face às
provocações e às injustiças.
Antes de mais, devem santificar Cristo Senhor nos seus
corações, ou seja, reconhecer e venerar nos corações a “santidade” de Cristo,
“o Senhor” (“Kyrios” é Deus, o Senhor do mundo e da
história). Dessa santificação
“em espírito e verdade”, em que pontifica a soberania de Cristo, mana a confiança
e a esperança; e, assim, os crentes, nada temendo, enfrentarão as provocações,
a injustiça e a perseguição, pois, imersos no mistério de Cristo, têm arcaboiço
para encarar o mundo e o irem minando para que ele possa enveredar pelas sendas
do bem.
Depois, os crentes têm de estar disponíveis para uma apologia
dirigida a todo aquele que solicitar um relato sobre a razão da esperança que
os cristãos acalentam (“hétoimoi aeì pròs apologían pantì tô aitoûnti hymãs lógon perìtês en hymîn elpídos”) –, isto é, testemunhar por palavras e por obras Aquele e
aquilo em que acreditam e Aquele e aquilo que esperam. Não se trata de razões,
mas da razão, o “logos” (verbum, palavra), que é Jesus Cristo, o Verbo de Deus
incarnado.
Porém, devem fazê-lo com delicadeza e boa consciência, com
respeito e amor mesmo pelos caluniadores e perseguidores. Note-se que é
empregue aqui o verbo “epêreázô” (caluniar, insultar) como em Lucas (6,28), sendo estas as duas únicas ocorrências no NT.
Efetivamente, importa que os caluniadores e perseguidores fiquem envergonhados,
desarmados e sem argumentos face ao comportamento edificante dos cristãos a fim
de perceberem onde está a verdade e a justiça.
E, mesmo diante do ódio e da hostilidade ou em qualquer outra
circunstância, os crentes em Cristo devem preferir fazer o bem. Com efeito, a
razão fundamental desse procedimento ilógico aos olhos do mundo está no facto
de que o próprio “Cristo morreu uma só vez pelos nossos pecados – o justo pelos
injustos – para nos conduzir a Deus”. Ora, se Cristo Se ofereceu em salvação,
mesmo aos injustos, também os cristãos devem dar a vida e fazer o bem, mesmo perseguidos
e sofredores. Com efeito, a dádiva da vida não é uma via de fracasso ou morte.
Na verdade, assim como Cristo, que morreu pelos injustos, voltou à vida pelo
Espírito, assim os cristãos que fizerem da vida uma dádiva ressuscitarão.
***
Obviamente
as razões da esperança radicam na Boa Nova, que proclama o amor como fundamento
do cristianismo e garantia da observância dos mandamentos. Veja-se a passagem
do Evangelho desta dominga (Jo 14,15-21), enquadrada
no Testamento do Senhor, a seguir à Última Ceia, e cujas linhas temáticas vêm e
refluem sucessivamente. Trata-se aqui do primeiro dos cinco anúncios do outro
auxiliador, o Espírito Santo – “állos parákletos” – feitos por Jesus. Anote-se
que “parákletos” mistura a ideia de auxílio com a de advocacia. É
simultaneamente auxiliador e intérprete, advogado (defensor) e conselheiro (entre os rabinos o aramaico
“paraklita” não tem o sentido usual do grego – defensor e consolador – mas de intérprete). E, designado por “o outro paráclito”, é de ter em
conta que há um primeiro, Jesus, aquele que não nos deixa órfãos.
Os órfãos
pertenciam, em Israel, ao grupo dos mais desprotegidos. Por outro lado, a ideia
de o mestre, com a sua morte, deixar ou não os discípulos órfãos já surgira em
Platão a propósito da morte de Sócrates.
Jesus estava para deixar fisicamente os seus. Por isso, ensina-lhes
como devem comportar-se na sua ausência. Frisa que o amor por ele é fundamental
e concreto, não se esgotando nas palavras, mas demonstrando-se com os factos, e
que é preciso amar como Ele amou. Mas este amor tão forte e concreto não é
possível à natureza humana, se não vier a ajuda da intervenção do Espírito de
Deus. Por isso, Jesus pede ao Pai que dê aos seus amigos o Espírito da Verdade
para que esteja sempre com eles. E o Espírito, além de ser o Paráclito no grande
processo do mundo contra Cristo, exerce a função específica de fazer penetrar
no coração dos discípulos a verdade, ou seja, a revelação de Cristo que é a
manifestação do amor de Deus, guiando os cristãos para essa mesma revelação. É
o guia, porque permanente fonte e ponte de comunicação, compreensão e comunhão.
O Paráclito é assim o derrubador de muros e o grande construtor de pontes entre
nós, uns com os outros, e com Deus.
A dor da
separação, provocada pela partida de Jesus, atravessa o coração dos discípulos.
Também no coração dos discípulos de hoje pode vir à tona a sensação de que
Jesus está ausente ou impercetível e quase inacessível. E, tanto naquele tempo
como agora, Jesus garante que não nos deixa abandonados e sós. Antes permanece
connosco e continua a tratar-nos por ‘filhinhos’ (“teknía”). Jesus morre, mas não sucumbirá na morte. Voltará na condição de
Ressuscitado para nos comunicar a sua própria vida nova. Eclipsa-Se aos olhos
do mundo, que apenas sabe que Ele morreu crucificado. O mundo não conhece a vida.
E os discípulos não superarão o teste da Paixão e Morte de Jesus, teste que os
leva a abandoná-Lo e a fugir. Será Jesus que suprirá esta brecha reconvocando
os discípulos. E eles, levando consigo toda a narrativa anterior de amor, de
rutura e de cura, voltam para a Galileia, para o reencontro com o Ressuscitado,
de quem nunca mais se separarão e cujo mandato desempenharão entre calúnias e perseguições.
Jesus diz
que, a seu pedido, o Pai dará outro Paráclito. Como ficou
dito, este outro é o Espírito Santo. Porém, Jesus é também
Paráclito, logo também defensor, consolador e intérprete, aliás como refere a
1.ª Carta de João:
“Temos um Defensor (paráklêtos) junto
do Pai, Jesus Cristo, o Justo” (2,1).
O Filho é o
primeiro enviado do Pai, cumprindo a própria missão e revelando o seu conteúdo.
O segundo enviado é o Espírito, que é Paráclito tanto em si mesmo como na sua
ação. O enviante em relação aos dois é o Pai. Porém, havemos de recordar que,
tal como o Pai enviou Jesus, também Jesus envia os discípulos, comunicando-lhes
o Espírito Santo (cf Jo 20,21-22), de modo
que nas grandes decisões eles dirão “Pareceu
bem ao Espírito Santo e a nós…” (At 15,28).
Mas é
verdade que o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos enviados e há
semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o
Filho, ambas veiculadas pelo verbo “pémpô” (enviar). Mas há
também diferenças. Assim, em relação ao Filho, o verbo está no passado e, em
relação ao Paráclito, está no futuro. Com efeito, o envio de Jesus pelo Pai já
se realizou, ao passo que o anunciado envio do Paráclito vai realizar-se. De
modo semelhante, a sua tarefa de ensinar e de recordar surge enunciada no
futuro. Contudo, em relação ao Paráclito, Jesus é por duas vezes sujeito do
verbo enviar (vd Jo 15,26; 16,7). Por outro lado, o envio de Jesus é feito pelo Pai, enquanto o Paráclito é
enviado pelo Pai pela intervenção de Jesus, veiculada pelo segmento “no meu
nome”. O mesmo se passa com o verbo “dídômi”
(dar): “Deus… deu o seu Filho unigénito” (Jo 3,16), e “dar-vos-á
outro Paráclito” a pedido de Jesus (Jo 14,16).
Acresce que referir
que João (20,21), falando do envio de Jesus pelo Pai utiliza a forma
verbal “apéstalken”, mas, falando do
envio dos apóstolos por Jesus, utiliza a forma verbal “pémpô”.
***
Decorrente
da missão de Cristo, continuada pelos discípulos que, guiados pelo Espírito
Santo, se constituem em apóstolos para anunciar a Boa Nova a todo o mundo
ressalta, nos Livro dos Atos dos Apóstolos (At 8,5-8), o diácono Filipe, agora o Evangelista (“ho
euagelistês”) a levar a Palavra de Deus à Samaria, aquele “insensato
povo que habita em Siquém” (Sir 50,26). Era agora
o anúncio metódico do Messias, em contraste com o anúncio espontâneo que a
samaritana fizera movida por Jesus (cf Jo 4,28-30). Assim, pela palavra e prodígios, nascia mais uma
comunidade de pessoas livres. E aquela gente ficou cheia de alegria por ser
admitida no Reino de Deus.
Entretanto,
a comunidade de Jerusalém, ciente de que os samaritanos receberam a Palavra,
enviou lá, em visita de confirmação, Pedro e João (At 8,14-17), que verificaram que os visitados ainda não conheciam
o Espírito Santo. Talvez tenham aderido por ouvirem palavras bonitas e maravilhosos
prodígios. Faltava o selo do Espírito para permanecerem firmes na fé, alegres
na esperança e zelosos na caridade – frente às incompreensões, provocações e
perseguições.
***
Na verdade,
fundados no amor a Cristo, em crescendo, e a replicar no amor afetivo e efetivo
ao próximo, os cristãos sentirão a alegria em Deus tanto quando recebem a
palavra e a rezam e põem em prática enquanto cumpridores como quando a servem e
comunicam falando e testemunhando com o exemplo e, sobretudo, quando enveredam
pelo apostolado mais ativo junto das periferias existenciais: geográficas,
socioeconómicas, étnicas e do submundo.
Então Jesus,
com o Pai e o Espírito Santo, habita entre nós, seu povo, e dentro de cada um
de nós, seu templo e santuário. “Não
sabeis que sois Templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? (…). Na
verdade, o Templo de Deus é santo e vós sois esse Templo. (1Cor 3,16 e
17). Ora, o Templo respira espírito,
santidade, oração, acolhimento, comunidade, mas é ponto de partida para longe e
ponto de chegada de todos os lados. Por isso, o discípulo tem o coração em que
o mundo todo, mas o mundo concreto, cabe; as mãos para abraçar, amparar; os pés
para chegar a todo o lado e regressar ao centro para se revestir da força do
Alto; os ouvidos para escutar Deus e os homens; e a cabeça e a boca para rezar
por todos e falar a todos.
Assim,
seremos arquitetos dum mundo novo, transparente, credível e eficaz.
Dom António
Couto, Bispo de Lamego, recorda que “o velho comentário rabínico aos Salmos,
dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no Sinai
para fazer aliança com Deus, ‘o ventre das mulheres grávidas se tornou
transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com
Ele’.” Ora o mundo novo de transparência, concebido e criado por Deus só é visualizado
pelos puros de olhar e de coração pelos pacíficos, que hão de ver a Deus, pois
são filhos seus. E importa que todos embarquemos nesta bem-aventurança (cf Mt
5,8-9; 1Jo 3,1-3).
2020.05.17
– Louro de Carvalho
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