Naturalmente que a pessoa de Marcelo Rebelo de
Sousa merece todo o respeito e consideração da parte dos concidadãos, tal como
o seu desempenho como Presidente da República, sobretudo quando no uso das suas
competências constitucionais, nas funções de representação do Estado, na missão
de garante do regular funcionamento das instituições democráticas e no comando supremos
das forças armadas. Não obstante, a sua postura que a cidadania informal lhe
empresta ao exercício do cargo pode ser criticada tanto pela positiva como pela
negativa, desde que não se enverede pela via do insulto ou do negativismo
demolidor.
Aquilo que designo por acordeonismo tem a ver
com os excessos explicativos em que o Senhor de Cascais (diferente do referido por Camões) incorre ao fluir natural da loquela ou ao correr da pena – o que leva, por
vezes, a que desdiga agora o que disse antes (distendendo
ou encolhendo como o fole do acordeão), obviamente com a intenção de esclarecer, mas sendo pior a emenda que o
soneto.
Neste aspeto, podiam registar-se muitas das
suas tiradas em que se pronuncia sobre as matérias, com o risco de influir na
discussão pelas entidades respetivas – Parlamento, Governo e Poder Judiciário (recordo a crítica ao MP pelo atraso no processo de Tancos) – para depois lhanamente
endossar as responsabilidades a quem de direito, mas sem poder negar que disse.
Chegou a vetar, pelo menos, um diploma do Parlamento e a sugerir as condições
em que podia promulgá-lo, como chegou a antecipar as condições em que promulgaria
as Leis de Bases da Saúde.
Por vir a talho de foice, recordo o que se passou
antanho com Centeno e António Domingues a propósito dos alegados e-mails e SMS
a propósito dos gestores da CGD com ou sem o estatuto de gestor público. Não,
não falo já do decreto-lei que promulgou a eximir aqueles gestores do estatuto
de gestor público, mas urgir, depois, a interpretação de que não estavam dispensados
da obrigação de rendimentos e de património junto do TC, alegadamente por força
da lei ainda em vigor, não lhe cabendo nem a interpretação autêntica da lei nem
a sua aplicação, mas no que levou consigo o Governo e o TC, tendo o presidente deste
aduzido que o Tribunal ainda não tinha sido estimulado em relação ao tema.
Falo, sim, da convocação que faz ao Ministro das Finanças para comparecer em
Belém – ato que parecia dramático –, vindo, depois, a declarar que o Ministro Centeno
não podia deixar a governação em virtude da necessidade que havia de consolidar
as contas e afirmar a credibilidade do Governo face à UE. Afinal, só lhe cabe a
nomeação ou exoneração dum governante sob proposta do Primeiro-Ministro (não a iniciativa)!
Recordo também que, sendo Mário Centeno
candidato à presidência do Eurogrupo, alvitrou publicamente que não teria
vantagem para a governação portuguesa, vindo depois a aceitar a elogiar a sua
ação como ministro e líder do Euro.
Recentemente, face à divergência entre Costa e
Centeno sobre a transferência de 850 milhões euros para o Fundo de Resolução
para benefício do Novo Banco (NB), feita pelas Finanças sem
conhecimento do Chefe do Governo, disse que o Primeiro-Ministro esteve muito
bem, pois não é indiferente fazer uma transferência daquele montante antes ou
depois dos resultados da auditoria em curso. E, após um telefonema seu a
Centeno, que este entendeu como pedido de desculpa, escreveu, em nota da
Presidência, que mantinha tido o que dissera dantes. Disse-o e escreveu-o, mas
veio, a seguir, dizer que não comentava o funcionamento interno do Governo, o
que é desmentido pelas suas asserções. A pari,
o Primeiro-Ministro, na AutoEuropa, profetizou que, tal como estiveram os dois –
Marcelo e Costa – ali no primeiro ano do primeiro mandato presidencial de
Marcelo, também ali estarão no primeiro ano do seu segundo mandato. Esta asserção
não foi apenas uma manifestação de apoio à recandidatura presidencial, mas um
ato revelador da convicção da vitória por parte do recandidato. A isto Rebelo
de Sousa reagiu, sem máscara (não com ela, como dizem
alguns), que lá estariam,
pois são uma equipa cujas relações não se quebram. Talvez pense que nos
esquecemos de que, em outubro de 2017, a propósito dos incêndios florestais, produziu
um discurso que pôs o Governo “a pão e água”.
Porém, interpelado quanto ao lançamento da recandidatura,
disse que não era candidato neste momento. Clara como água foi a sua asserção
na AutoEuropa, embora não tenha sido uma formal apresentação. Faz-me lembrar o
juiz que, interrogando a testemunha se jurava por sua honra dizer a verdade e
só a verdade, não se contentou com o “sim”, mas exigiu o “sim, juro”.
Entretanto, como António Costa disse, no dia
16, que não houve crise política ou do
Governo, o Chefe de Estado, no dia 17, no
final duma visita ao mercado da Ericeira, no concelho de Mafra, sustentou que não houve crise no Governo e que
portugueses devem estar gratos a Centeno pelo que tem vindo a fazer ao
longo dos anos e que o reafirmou há mês e meio, dois meses.
E voltou à carga com a questão do NB ao dizer de forma tão isenta e enfática:
“O dinheiro público é dinheiro dos
contribuintes, portanto, saber se é bem utilizado, como é que é utilizado, isso
é uma questão que não tem a ver com A, com B ou com C. É tão óbvio, tão óbvio,
tão óbvio que toda a gente percebe que num período de
dificuldade ainda é mais importante controlar o uso do dinheiro público.”.
Também o Presidente da República não vê nenhum problema numa
transição direta do cargo de Ministro das Finanças para o de governador do
Banco de Portugal aduzindo que isso já aconteceu por duas vezes: uma
no tempo da ditadura, com o professor Pinto Barbosa; outra no tempo do governo
do professor Cavaco Silva, com o professor Miguel Beleza – adiantando:
“Aconteceu sem reparo
nenhum quer num caso quer noutro, mas a decisão não é minha, é do senhor
Primeiro-Ministro”.
E lá deixou a dica do não comentário, o que nunca deixou de fazer, ressalvando
que “o Governo é que nomeia o governador do Banco de Portugal e, portanto,
quando o problema se colocar, daqui por umas semanas ou daqui por um mês, o Governo
decidirá”, vincando que “o Presidente da República não tem intervenção nessa
matéria” e que “é de bom tom não estar a pisar a competência de outros órgãos”
e que “há separação de poderes”. Belo princípio!
Promulgou o decreto do Governo que excecionou a celebração do 1.º de maio
das restrições à circulação na emergência; depois, veio dizer que não imaginava
o que veio a suceder.
O predito
acordeonismo provém da sede de protagonismo e exibicionismo que o fazem sentir-se
bem no exercício das funções de Estado, quer no cumprimento do protocolo, quer
juntando ao poder simbólico que detém o tique de professor catedrático de
direito – que o leva a explicar tudo ao vetar ou promulgar diplomas ou a dispensar-se
de os submeter ao TC para fiscalização da constitucionalidade, prévia ou
sucessiva – e comentar tudo e todos.
Já não
falo da selfie, do rap, do beijo e abraço
ou de ensinar a juventude moçambicana a pegar no microfone para cantar; de ser
ele a explicar, após reuniões com especialistas, as medidas do confinamento ou desconfinamento
invocando razões técnicas e socioeconómicas; da marcação dum mergulho no mar ou
do expediente de ter combinado com um pescador a levá-lo ao sítio se a praia
estiver sobrelotada; de se perfilar no supermercado em calção e mãos atrás das
costas; ou de dizer ser aquele que mais precisa das eucaristias, enquanto
elogia a decisão do cardeal Marto.
Enfim acordeonismo
e exibicionismo q. b. a exornar o halo presidencial.
2020.05.19 –
Louro de Carvalho
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