terça-feira, 19 de maio de 2020

O acordeonismo e o exibicionismo de Marcelo


Naturalmente que a pessoa de Marcelo Rebelo de Sousa merece todo o respeito e consideração da parte dos concidadãos, tal como o seu desempenho como Presidente da República, sobretudo quando no uso das suas competências constitucionais, nas funções de representação do Estado, na missão de garante do regular funcionamento das instituições democráticas e no comando supremos das forças armadas. Não obstante, a sua postura que a cidadania informal lhe empresta ao exercício do cargo pode ser criticada tanto pela positiva como pela negativa, desde que não se enverede pela via do insulto ou do negativismo demolidor.        
Aquilo que designo por acordeonismo tem a ver com os excessos explicativos em que o Senhor de Cascais (diferente do referido por Camões) incorre ao fluir natural da loquela ou ao correr da pena – o que leva, por vezes, a que desdiga agora o que disse antes (distendendo ou encolhendo como o fole do acordeão), obviamente com a intenção de esclarecer, mas sendo pior a emenda que o soneto.
Neste aspeto, podiam registar-se muitas das suas tiradas em que se pronuncia sobre as matérias, com o risco de influir na discussão pelas entidades respetivas – Parlamento, Governo e Poder Judiciário (recordo a crítica ao MP pelo atraso no processo de Tancos) – para depois lhanamente endossar as responsabilidades a quem de direito, mas sem poder negar que disse. Chegou a vetar, pelo menos, um diploma do Parlamento e a sugerir as condições em que podia promulgá-lo, como chegou a antecipar as condições em que promulgaria as Leis de Bases da Saúde.
Por vir a talho de foice, recordo o que se passou antanho com Centeno e António Domingues a propósito dos alegados e-mails e SMS a propósito dos gestores da CGD com ou sem o estatuto de gestor público. Não, não falo já do decreto-lei que promulgou a eximir aqueles gestores do estatuto de gestor público, mas urgir, depois, a interpretação de que não estavam dispensados da obrigação de rendimentos e de património junto do TC, alegadamente por força da lei ainda em vigor, não lhe cabendo nem a interpretação autêntica da lei nem a sua aplicação, mas no que levou consigo o Governo e o TC, tendo o presidente deste aduzido que o Tribunal ainda não tinha sido estimulado em relação ao tema. Falo, sim, da convocação que faz ao Ministro das Finanças para comparecer em Belém – ato que parecia dramático –, vindo, depois, a declarar que o Ministro Centeno não podia deixar a governação em virtude da necessidade que havia de consolidar as contas e afirmar a credibilidade do Governo face à UE. Afinal, só lhe cabe a nomeação ou exoneração dum governante sob proposta do Primeiro-Ministro (não a iniciativa)!   
Recordo também que, sendo Mário Centeno candidato à presidência do Eurogrupo, alvitrou publicamente que não teria vantagem para a governação portuguesa, vindo depois a aceitar a elogiar a sua ação como ministro e líder do Euro.
Recentemente, face à divergência entre Costa e Centeno sobre a transferência de 850 milhões euros para o Fundo de Resolução para benefício do Novo Banco (NB), feita pelas Finanças sem conhecimento do Chefe do Governo, disse que o Primeiro-Ministro esteve muito bem, pois não é indiferente fazer uma transferência daquele montante antes ou depois dos resultados da auditoria em curso. E, após um telefonema seu a Centeno, que este entendeu como pedido de desculpa, escreveu, em nota da Presidência, que mantinha tido o que dissera dantes. Disse-o e escreveu-o, mas veio, a seguir, dizer que não comentava o funcionamento interno do Governo, o que é desmentido pelas suas asserções. A pari, o Primeiro-Ministro, na AutoEuropa, profetizou que, tal como estiveram os dois – Marcelo e Costa – ali no primeiro ano do primeiro mandato presidencial de Marcelo, também ali estarão no primeiro ano do seu segundo mandato. Esta asserção não foi apenas uma manifestação de apoio à recandidatura presidencial, mas um ato revelador da convicção da vitória por parte do recandidato. A isto Rebelo de Sousa reagiu, sem máscara (não com ela, como dizem alguns), que lá estariam, pois são uma equipa cujas relações não se quebram. Talvez pense que nos esquecemos de que, em outubro de 2017, a propósito dos incêndios florestais, produziu um discurso que pôs o Governo “a pão e água”.
Porém, interpelado quanto ao lançamento da recandidatura, disse que não era candidato neste momento. Clara como água foi a sua asserção na AutoEuropa, embora não tenha sido uma formal apresentação. Faz-me lembrar o juiz que, interrogando a testemunha se jurava por sua honra dizer a verdade e só a verdade, não se contentou com o “sim”, mas exigiu o “sim, juro”.
Entretanto, como António Costa disse, no dia 16, que não houve crise política ou do Governo, o Chefe de Estado, no dia 17, no final duma visita ao mercado da Ericeira, no concelho de Mafra, sustentou que não houve crise no Governo e que portugueses devem estar gratos a Centeno pelo que tem vindo a fazer ao longo dos anos e que o reafirmou há mês e meio, dois meses. E voltou à carga com a questão do NB ao dizer de forma tão isenta e enfática:
O dinheiro público é dinheiro dos contribuintes, portanto, saber se é bem utilizado, como é que é utilizado, isso é uma questão que não tem a ver com A, com B ou com C. É tão óbvio, tão óbvio, tão óbvio que toda a gente percebe que num período de dificuldade ainda é mais importante controlar o uso do dinheiro público.”.
Também o Presidente da República não vê nenhum problema numa transição direta do cargo de Ministro das Finanças para o de governador do Banco de Portugal aduzindo que isso já aconteceu por duas vezes: uma no tempo da ditadura, com o professor Pinto Barbosa; outra no tempo do governo do professor Cavaco Silva, com o professor Miguel Beleza – adiantando:  
Aconteceu sem reparo nenhum quer num caso quer noutro, mas a decisão não é minha, é do senhor Primeiro-Ministro.
E lá deixou a dica do não comentário, o que nunca deixou de fazer, ressalvando que “o Governo é que nomeia o governador do Banco de Portugal e, portanto, quando o problema se colocar, daqui por umas semanas ou daqui por um mês, o Governo decidirá”, vincando que “o Presidente da República não tem intervenção nessa matéria” e que “é de bom tom não estar a pisar a competência de outros órgãos” e que “há separação de poderes”. Belo princípio!
Promulgou o decreto do Governo que excecionou a celebração do 1.º de maio das restrições à circulação na emergência; depois, veio dizer que não imaginava o que veio a suceder.  
O predito acordeonismo provém da sede de protagonismo e exibicionismo que o fazem sentir-se bem no exercício das funções de Estado, quer no cumprimento do protocolo, quer juntando ao poder simbólico que detém o tique de professor catedrático de direito – que o leva a explicar tudo ao vetar ou promulgar diplomas ou a dispensar-se de os submeter ao TC para fiscalização da constitucionalidade, prévia ou sucessiva – e comentar tudo e todos.
Já não falo da selfie, do rap, do beijo e abraço ou de ensinar a juventude moçambicana a pegar no microfone para cantar; de ser ele a explicar, após reuniões com especialistas, as medidas do confinamento ou desconfinamento invocando razões técnicas e socioeconómicas; da marcação dum mergulho no mar ou do expediente de ter combinado com um pescador a levá-lo ao sítio se a praia estiver sobrelotada; de se perfilar no supermercado em calção e mãos atrás das costas; ou de dizer ser aquele que mais precisa das eucaristias, enquanto elogia a decisão do cardeal Marto.
Enfim acordeonismo e exibicionismo q. b. a exornar o halo presidencial.
2020.05.19 – Louro de Carvalho

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