sexta-feira, 22 de maio de 2020

Em atípico Dia Mundial do Abraço


Dia Mundial do Abraço surgiu no âmbito duma campanha de 2004, quando Juan Man começou a oferecer ‘abraços de graça’ no centro de Sydney, na Austrália, a maior cidade do país. Ao vencer uma fase de depressão e solidão, tomou a iniciativa e decidiu que o carinho aleatório, mesmo duma pessoa estranha, pode salvar vidas ao demonstrar simplesmente carinho.  A razão por que tomou a iniciativa tem a ver, segundo contou, com o facto de, estando numa festa, um desconhecido ter ido até ele e abraçá-lo. Aí, sentiu-se como um rei e confessa que foi o melhor sentimento que teve. Com o cartaz ‘abraços grátis’, começou a receber e a dar abraços às pessoas nas ruas e ganhou notoriedade. Em 2006, a banda australiana Sick Puppies postou um vídeo no Youtube com a música “All the Same” e tornou-se viral.
Este dia pretende que as pessoas, com um ato de bondade, se sintam melhor.
O abraço ou amplexo acontece quando duas ou mais pessoas, geralmente duas, ficam parcial ou completamente nos braços uma da outra. Faz-se, dependendo da cultura local, como forma de demonstração de afeto duma pessoa para com outra. Pode ser um cumprimento, sobretudo depois de longa ausência, como pode ser ação conjunta de várias pessoas abraçadas que pretendem exprimir um sentimento ou objetivo comum. Pode apenas expressar sentimentos de carinho, ternura, amor, compaixão, saudade, congratulação, terror, etc. E um abraço a alguém pode demonstrar proteção instintiva.
O abraço, associado ou não ao beijo carinhoso, erótico ou de cortesia, é uma forma de comunicação não verbal. Dependendo da cultura, do contexto e do relacionamento, permite a exteriorização de sentimentos de amor, amizade, fraternidade ou simpatia. Ao invés doutros tipos de contacto físico, o abraço pode dar-se em público – sem conotações e manifestações de outro tipo – e em privado, sem estigma em muitos países e diferentes religiões e culturas, independentemente de sexo ou idade. E indica familiaridade ou camaradagem com o outro.
Há também o abraço impessoal, que geralmente é apenas dito e não é dado de facto. É bastante comum cumprimentar ou despedir-se dizendo “um abraço”, mas muitas vezes não abraçando de facto. Esse tipo de abraço impessoal é um sinal de mínima intimidade, mas é comum também entre pessoas desconhecidas. 
E há o abraço duma personalidade para um coletivo, que também não se dá efetivamente, mas que se supõe dar a cada pessoa, o que só se não faz por alegada impossibilidade.
No quadro da amplexoterapia, abraçar será uma ótima terapia contra a tristeza e depressão, pois o abraço será muito mais do que um simples “apertão” de braços, e que no momento em que abraçamos afetuosamente a quem apreciamos, transmitimos emoções como o amor e a paz.
A expressão “ósculos e amplexos” significa “beijos e abraços”. Enquanto a palavra ósculo (do latim “osculum, i”, boca pequenina ou boquinha – sendo que “os, oris” significa “boca”; e “osculum, i” é seu diminutivo) significa “beijo”, o termo “amplexo” é “abraço”, derivando do latim “amplexus, que significa “contorno”, “circuito”, “envoltura”, “abraço”. O amplexo é sinal de afeto bastante comum entre os seres humanos, consistindo em manter os braços entrelaçados entre o corpo do outro, mantendo uma aproximação física. O ósculo é um gesto de cumprimento entre duas pessoas, expressado através de um beijo (os romanos tinham o “basium” – passagem dos lábios pela face ou pela mão do outro; o “osculum”, o beijo repenicado; e o “suavium”, exclusivo da arte amatória) que representa um sinal de amizade ou conciliação, bastante utilizado entre os membros da comunidade cristã.
Como se referiu, etimologicamente, a palavra “ósculo surgiu” a partir do latim “osculum, que significa “boquinha” ou “beijo” repenicado. Mas na biologia e na botânica, o ósculo é um orifício exalante das esponjas (poríferos), por onde passa o fluxo de água, e que se encontra na extremidade livre do corpo desses animais que vivem nos oceanos.
ósculo santo, também conhecido por “beijo da paz”, coexistente com o “abraço da paz” (por isso é que se diz apenas: “saudai-vos na paz de Cristo” ou “oferecei a paz uns aos outros”), foi uma forma de cumprimento criada por Jesus Cristo, segundo a religião cristã. O ato consiste em dar um beijo na face doutra pessoa em sinal de fraternidade. Com os lábios cerrados, o beijo é referido apenas como toque subtil em alguma parte do rosto da pessoa.
Os apóstolos Pedro e Paulo recomendam o uso do ósculo santo em várias passagens bíblicas.
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Entretanto, a pandemia provocada pelo SARS CoV-2, transforma o Dia Mundial do Abraço de 2020 em Dia do Abraço Virtual. É um paradoxo um abraço, que à partida implica contacto físico seja celebrado num dia que recai em tempo que não desaconselha o contacto físico.  
Até 2020, a distância social, praticada com maior frequência na cultura nórdica, era alvo de críticas, especialmente das pessoas mais amorosas. E uma das mais marcantes quebras de protocolo da vida da princesa Diana foi a de cumprimentar afetuosamente as pessoas, rompendo com a distância física esperada da realeza. A proximidade e de troca de carinho em público passou a ser também um dos ‘defeitos’ apontados a Meghan Markle. Porém, tudo mudou: agora, tocar ou estar muito perto das pessoas pode custar vidas. E o peso emocional da distância já vem afetando muita gente. Por isso, o Dia Mundial do Abraço, celebrado a 22 de maio há 16 anos, tem hoje novo momento: virtual, mas de igual importância, se não maior.
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É de recordar que o cardeal José Tolentino Mendonça, a 4 de janeiro deste ano, escrevia para o Expresso online um precioso texto conexo com o abraço. Citando Martin Buber, assegurava que “o mundo não é compreensível, mas é abraçável”, referindo-se não só ao mundo que nos é exterior, mas também ao especificamente humano, “àquela porção de experiência e de mistério que com cada pessoa emerge de forma única no tempo”. E do abraço dizia que a sua “grandeza” é que “pode muitas vezes chegar aonde a compreensão não chega”, pois “o abraço aceita a separação ontológica que a pele do outro significa, detendo-se aquém da pele” e “reconhece que existe uma pele deste lado e do outro, e que, mesmo na intimidade das relações, essa película perdura”. E, estribado em Aristóteles, que sustentava que, ao tocarmos, “não eliminamos uma espécie de intervalo que persiste entre nós e a realidade”, assegurava que “avizinharmo-nos dos outros não é consumir os outros, como se os pudéssemos reduzir a objeto”.
E, para ilustrar que precisamos daquilo que “o toque significa”, evoca o facto de a capa do catálogo da 1.ª exposição surrealista na Europa após a II Guerra Mundial, confiada a Marcel Duchamp, ter uma imagem com a legenda: “Prière de toucher”, quando é usual, junto às obras de arte, colocar-se o aviso para não tocar. A razão é que “era preciso uma mensagem reparadora, capaz de fazer esquecer a segregação e o arame farpado”. Por isso, esperamos que a pandemia passe, para nos tornarmos a abraçar na humildade do abraço de que necessitamos mesmo, pois como diz o cardeal madeirense, “o abraço é o momento do encontro em que o contacto se realiza, mas é também o momento seguinte, quando a separação vem assumida como forma profunda de comunhão”. O “até à próxima” tem muita força anímica.
2020.05.22 – Louro de Carvalho

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