Contou Dom
Américo Aguiar, na homilia da Missa a que presidiu, neste dia 24 de maio, na
igreja paroquial do Parque das Nações, que um miúdo à catequista que, na sua lição
de catequese por videoconferência, perguntava o que é a ascensão de Jesus,
respondera que é o dia em que Jesus passou a estar em teletrabalho. Na verdade,
Ele subiu ao Céu, mas garantiu estar connosco todos os dias (“Eu convosco sou” – Egô meth’ hymôn eimi: note-se a proximidade
entre “eu” e “vós”) até ao fim dos tempos. Mais do que
sempre conectado, está próximo, muito próximo, pois, como disse o Cardeal
Patriarca na sua homilia na Igreja de Cristo Rei da Portela, a ascensão mais
não é que o desconfinamento de Jesus em relação à sua pátria terrena e a este
mundo.
Porém,
agregado à ascensão e como corolário do Evangelho, está o mandato duma Igreja
em saída ancorada em toda a autoridade (exousía) de Jesus, como perentoriamente falou dizendo (elálêsen
légôn) aos
discípulos, que, vendo-O (idóntes), O adoraram (prosekýnêsan):
“Toda
a autoridade me foi dada no Céu e na Terra. Por isso, indo, fazei discípulos de
(ensinai – mathêteúsate) todas
as nações, batizando-os no nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a observar todas as coisas que vos mandei. E eis que Eu convosco Sou todos os dias até ao fim do mundo.”.
Alguns ainda
duvidaram (edístasan) – diz o Evangelista –, o que só mostra que a via da
fé não é linear, mas pode encontrar escolhos. Segundo o relato lucano (At 1,6), até interrogaram Jesus se era agora que ia restaurar
o Reino de Israel (apokathistáteis tên basileían tôi Israêl?). Porém, Jesus remeteu a explicação, contrária à expectativa
mundanal dos discípulos, para o desígnio paterno e para a ação do Espírito
Santo, que os iria fazer testemunhas de Jesus até aos confins da Terra.
O discurso de
Jesus revela que a sua autoridade se radica na familiaridade e se concretiza na
proximidade; a missão é universal (a todas as nações – tà ethnê) a cargo do conjunto dos discípulos, que não podem
despegar do Mestre; os discípulos só ensinam o que Ele lhes mandou, não se
podendo arvorar em mestres, o que releva a fidelidade em detrimento da nossa
pretensa mestria ou iniciativa (Também o Filho e o Espírito Santo só falam do que ouviram ao Pai); é “indo” (poreuthéntes – traduzimos este particípio aoristo pelo gerúndio, com a
marca da progressão e não da espera de que as coisas aconteçam) que se sentem enviados e se tornam
apóstolos e missionários; e a missão de ir e ensinar, confiada aos discípulos,
tornados irmãos de Jesus pela Ressurreição, significa o desconfinamento da
missão de Jesus em relação aos filhos de Israel, pois agora vai a todas as
nações, porque os confins da Terra verão a salvação do Nosso Deus por obra da
ação missionária partilhada entre a comunidade discipular, Jesus e o Espírito
Santo – quer os discípulos partam da Galileia, como fez Jesus e Mateus regista,
quer partam de Jerusalém, onde Pedro fez o discurso querigmático.
Segundo Dom
António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, de 24 de maio), a soberania de Jesus, “nova, próxima e familiar”, é
preparada quando “o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a
Galileia”, dizendo-lhes que fossem depressa dizer aos discípulos que “Ele
ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei
hymâs) na Galileia”
(Mt 28,7). Porém, Jesus
surpreendendo as mulheres no caminho, reformula o dizer angélico: “Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão” (Mt 28,10). É o tempo da “nova e indestrutível familiaridade” em que “o
Ressuscitado aponta para nós e nos envolve a todos “num imenso abraço fraternal”.
O “indo a
fazer discípulos de todas as nações” corporiza a missão infinda “colocada
diante dos nossos olhos”, sendo que “todas as nações são todos os corações”. E,
como lembrava Dom Manuel Clemente, dizia Santo Agostinho que seguimos com o
coração a ascensão de Jesus na esperança de que iremos um dia ter com Ele, mas por
agora também é preciso que levemos a Boa Nova a todos os corações, sabendo
perscrutá-los e cuidar deles e da sua vida e dignidade.
Acentuando
que não estamos sós nesta estrada sem medida, pois Ele está connosco e frisando
que este é o caminho de Abraão, que partiu da sua terra, apoiado na promessa e
na bênção, Dom António Couto faz o paralelo entre a abertura do Evangelho, em
que se apresenta o Emanuel, Deus connosco, e o remate do Evangelho, em que Ele
garante continuar connosco – o que remete para a figura literária da inclusão
para garantir que toda a Boa Nova é a da presença de Deus entre nós e em nós.
Os
discípulos, pela palavra e pelas obras, testemunham esta visita de Deus em
Jesus Cristo Ressuscitado às pessoas e aos povos. Ora, as testemunhas não
inventam, mas dizem e põem o pescoço por aquilo que viram e ouviram. E dessa
visita diz o Bispo de Lamego:
“Não
se trata de uma visita rápida, de quem está apenas de passagem. Ele vem para
ficar connosco sempre, tanto nos ama. Imensa fraternidade em ascendente
movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento
suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada,
ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada.”.
O Livro dos
Atos dos Apóstolos (1,1-11) centra a instrução de Jesus nos 40
dias que mediaram entre a ressurreição e a ascensão no essencial: o Reino de
Deus (Hé Basileía Tou Theoû), garantindo que, em breve, seriam
batizados no Espírito Santo (hymeîs dè en pneúmati
baptisthêsesthe hagíôi)
e não só em água como era o batismo de João.
E, no momento
da ascensão, evidencia-se o facto de “ver” (vários verbos que o significam) em contraste com a subtração pela
nuvem e com a advertência dos dois homens vestidos de branco:
“Vendo
(blepóntôn)
eles, Ele foi Elevado (epêrthê); e uma nuvem (nephélê) O
subtraiu (hypélaben) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E, tendo o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde Ele ia, eis que (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e disseram:
“Homens Galileus, por que estais de pé, mirando
(emblépontes) o céu? Este Jesus que vos foi arrebatado (analêmphtheís) para o céu, assim virá (eleúsetai) do modo (trópon) que O vistes (etheásthe) ir para o céu.’ (Atos 1,9-11).”.
Ao
arrebatamento de Jesus pelo céu, os dois homens vestidos de branco juntam a vinda final de Jesus. Não se verá mais a ascensão, mas
a vinda. Entretanto, importa descolar da visão física do céu e alimentar a
afeição por ele e partir para a missão segundo o mandato de Jesus e a moção do
Espírito Santo. É nesse trabalho orante e testemunhal que se ganha eficazmente
a afeição pelas coisas do Alto, ou seja, passando pelo mundo a pregar e a fazer
o bem. Aliás, a ascensão e a vinda final não são fenómenos que se confinem à
limitação e devir físicos, mas são categorias teológicas transcendentais que
obviamente têm de se exprimir através da linguagem da fisicidade, a que os
homens entendem e usam.
Por tudo
isto, é conveniente seguir o exemplo de Paulo (Ef 1,17-23) agradecendo a Deus o dom da fé e a confiança que pôs na
comunidade discipular em ordem à missão de testemunho, ensino e prática das
boas obras entre nós e para com os irmãos de todos os quadrantes.
Porém, Paulo une à ação de graças fervorosa oração a Deus ao Pai (epíclese) para que dê aos
destinatários da Carta, pelo Espírito Santo, o conhecimento profundo (epígnôsis) da “esperança a que
foram chamados”. E a prova de que pode o Pai realizar essa “esperança” é o que
Ele fez com Jesus: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita, exaltou-O e deu-Lhe
a soberania sobre todos os poderes angélicos, soberania que se estende à Igreja
– o “corpo” cuja “cabeça” é Cristo.
A ideia de que a comunidade discipular é um “corpo”, o “corpo de
Cristo”, formado por muitos membros, já aparecera nas “grandes cartas”,
sobretudo para definir a relação dos vários membros do “corpo” entre si.
Contudo, nas “cartas do cativeiro”, Paulo retoma esta noção para refletir sobre
a relação existente entre a comunidade e Cristo. E dois conceitos
significativos definem aqui a relação entre Cristo e a Igreja: o de “cabeça” e
o de “plenitude” (em grego, “pleroma”). Assumir Cristo
como a “cabeça” da Igreja significa perceber que os dois formam uma comunidade
indissolúvel e que há entre os dois uma comunhão total de vida e de destino; e
significa também que Ele é o centro em torno do qual o “corpo” se articula, a
partir do qual e em direção ao qual cresce, se orienta e constrói – em suma, é a
origem e o fim desse “corpo”. Por outro lado, significa que a Igreja/corpo está
submetida à obediência a Cristo/cabeça, pelo que a Igreja só de Cristo depende
e só a Ele deve obediência. E dizer que a Igreja é a “plenitude” de Cristo é
dizer que nela reside a “plenitude”, a “totalidade” de Cristo. Ela é o recetáculo,
a morada, onde Cristo Se torna presente no mundo e é através desse “corpo” onde
reside que Jesus Cristo continua todos os dias a realizar o seu projeto de
salvação em favor dos homens. Presente nesse “corpo”, Cristo enche o mundo e
atrai a Si todo o universo, até que o próprio Cristo “seja tudo em todos”.
Assim, Jesus subiu ao Céu, mas constituiu a sua Igreja como sinal e
instrumento de salvação, sendo que, embora a Igreja não esgote as vias da graça
e da salvação, porque o Espírito sopra donde e onde quer e o Verbo está
espalhado como semente pelos corações (lógos
spermatikós ou verbum seminale) – queiram eles dar-se
conta dele e desenvolvê-lo em si – a salvação não pode vir contra a Igreja que
siga no uso do sensus fidei e na
perscrutação dos sinais dos tempos.
Assim, a ascensão como desconfinamento de Jesus ou passagem de Jesus ao
teletrabalho dá lugar ao confinamento universal em torno do Cristo e ao
trabalho missionário partilhado familiarmente, proximamente e fraternalmente
entre Jesus, o Espírito Santo e a comunidade discipular que se torna
apostolada, também pela preocupação e trabalho pelos que vivem longe.
Não sei se, neste Dia Mundial das
Comunicações Sociais, a propósito do qual o Papa formula o voto de que
esses meios se empenhem em dar boas notícias, estarão todos os elementos da
comunidade discipular disponíveis para testemunhar por obras e palavras a boa
notícia de que Jesus vive, nos ama, intercede por nós junto do Pai e nos quer a
todos no Reino de Deus. Talvez seja este um desafio aos cristãos que trabalham
com os meios de comunicação e aos que eles possam intervir, bem como a todos os
profissionais dos media para que estejam atentos às boas notícias e as difundam.
2020.05.24 – Louro de Carvalho
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