domingo, 24 de maio de 2020

O dia em que Jesus “se desconfinou” e passou a estar em teletrabalho


Contou Dom Américo Aguiar, na homilia da Missa a que presidiu, neste dia 24 de maio, na igreja paroquial do Parque das Nações, que um miúdo à catequista que, na sua lição de catequese por videoconferência, perguntava o que é a ascensão de Jesus, respondera que é o dia em que Jesus passou a estar em teletrabalho. Na verdade, Ele subiu ao Céu, mas garantiu estar connosco todos os dias (“Eu convosco sou” – Egô meth’ hymôn eimi: note-se a proximidade entre “eu” e “vós”) até ao fim dos tempos. Mais do que sempre conectado, está próximo, muito próximo, pois, como disse o Cardeal Patriarca na sua homilia na Igreja de Cristo Rei da Portela, a ascensão mais não é que o desconfinamento de Jesus em relação à sua pátria terrena e a este mundo.    
Porém, agregado à ascensão e como corolário do Evangelho, está o mandato duma Igreja em saída ancorada em toda a autoridade (exousía) de Jesus, como perentoriamente falou dizendo (elálêsen légôn) aos discípulos, que, vendo-O (idóntes), O adoraram (prosekýnêsan):
Toda a autoridade me foi dada no Céu e na Terra. Por isso, indo, fazei discípulos de (ensinai – mathêteúsate) todas as nações, batizando-os no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar todas as coisas que vos mandei. E eis que Eu convosco Sou todos os dias até ao fim do mundo.”.
Alguns ainda duvidaram (edístasan) – diz o Evangelista –, o que só mostra que a via da fé não é linear, mas pode encontrar escolhos. Segundo o relato lucano (At 1,6), até interrogaram Jesus se era agora que ia restaurar o Reino de Israel (apokathistáteis tên basileían tôi Israêl?). Porém, Jesus remeteu a explicação, contrária à expectativa mundanal dos discípulos, para o desígnio paterno e para a ação do Espírito Santo, que os iria fazer testemunhas de Jesus até aos confins da Terra.    
O discurso de Jesus revela que a sua autoridade se radica na familiaridade e se concretiza na proximidade; a missão é universal (a todas as nações – tà ethnê) a cargo do conjunto dos discípulos, que não podem despegar do Mestre; os discípulos só ensinam o que Ele lhes mandou, não se podendo arvorar em mestres, o que releva a fidelidade em detrimento da nossa pretensa mestria ou iniciativa (Também o Filho e o Espírito Santo só falam do que ouviram ao Pai); é “indo” (poreuthéntes – traduzimos este particípio aoristo pelo gerúndio, com a marca da progressão e não da espera de que as coisas aconteçam) que se sentem enviados e se tornam apóstolos e missionários; e a missão de ir e ensinar, confiada aos discípulos, tornados irmãos de Jesus pela Ressurreição, significa o desconfinamento da missão de Jesus em relação aos filhos de Israel, pois agora vai a todas as nações, porque os confins da Terra verão a salvação do Nosso Deus por obra da ação missionária partilhada entre a comunidade discipular, Jesus e o Espírito Santo – quer os discípulos partam da Galileia, como fez Jesus e Mateus regista, quer partam de Jerusalém, onde Pedro fez o discurso querigmático.      
Segundo Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, de 24 de maio), a soberania de Jesus, “nova, próxima e familiar”, é preparada quando “o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia”, dizendo-lhes que fossem depressa dizer aos discípulos que “Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia” (Mt 28,7). Porém, Jesus surpreendendo as mulheres no caminho, reformula o dizer angélico: “Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão(Mt 28,10). É o tempo da “nova e indestrutível familiaridade” em que “o Ressuscitado aponta para nós e nos envolve a todos “num imenso abraço fraternal”.
O “indo a fazer discípulos de todas as nações” corporiza a missão infinda “colocada diante dos nossos olhos”, sendo que “todas as nações são todos os corações”. E, como lembrava Dom Manuel Clemente, dizia Santo Agostinho que seguimos com o coração a ascensão de Jesus na esperança de que iremos um dia ter com Ele, mas por agora também é preciso que levemos a Boa Nova a todos os corações, sabendo perscrutá-los e cuidar deles e da sua vida e dignidade.
Acentuando que não estamos sós nesta estrada sem medida, pois Ele está connosco e frisando que este é o caminho de Abraão, que partiu da sua terra, apoiado na promessa e na bênção, Dom António Couto faz o paralelo entre a abertura do Evangelho, em que se apresenta o Emanuel, Deus connosco, e o remate do Evangelho, em que Ele garante continuar connosco – o que remete para a figura literária da inclusão para garantir que toda a Boa Nova é a da presença de Deus entre nós e em nós.   
Os discípulos, pela palavra e pelas obras, testemunham esta visita de Deus em Jesus Cristo Ressuscitado às pessoas e aos povos. Ora, as testemunhas não inventam, mas dizem e põem o pescoço por aquilo que viram e ouviram. E dessa visita diz o Bispo de Lamego:
Não se trata de uma visita rápida, de quem está apenas de passagem. Ele vem para ficar connosco sempre, tanto nos ama. Imensa fraternidade em ascendente movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada, ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada.”.
O Livro dos Atos dos Apóstolos (1,1-11) centra a instrução de Jesus nos 40 dias que mediaram entre a ressurreição e a ascensão no essencial: o Reino de Deus (Hé Basileía Tou Theoû), garantindo que, em breve, seriam batizados no Espírito Santo (hymeîs dè en pneúmati baptisthêsesthe hagíôi) e não só em água como era o batismo de João.
E, no momento da ascensão, evidencia-se o facto de “ver” (vários verbos que o significam) em contraste com a subtração pela nuvem e com a advertência dos dois homens vestidos de branco:
Vendo (blepóntôn) eles, Ele foi Elevado (epêrthê); e uma nuvem (nephélê) O subtraiu (hypélaben) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E, tendo o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde Ele ia, eis que (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e disseram: “Homens Galileus, por que estais de pé, mirando (emblépontes) o céu? Este Jesus que vos foi arrebatado (analêmphtheís) para o céu, assim virá (eleúsetai) do modo (trópon) que O vistes (etheásthe) ir para o céu.’ (Atos 1,9-11).”.
Ao arrebatamento de Jesus pelo céu, os dois homens vestidos de branco juntam a vinda final de Jesus. Não se verá mais a ascensão, mas a vinda. Entretanto, importa descolar da visão física do céu e alimentar a afeição por ele e partir para a missão segundo o mandato de Jesus e a moção do Espírito Santo. É nesse trabalho orante e testemunhal que se ganha eficazmente a afeição pelas coisas do Alto, ou seja, passando pelo mundo a pregar e a fazer o bem. Aliás, a ascensão e a vinda final não são fenómenos que se confinem à limitação e devir físicos, mas são categorias teológicas transcendentais que obviamente têm de se exprimir através da linguagem da fisicidade, a que os homens entendem e usam.
Por tudo isto, é conveniente seguir o exemplo de Paulo (Ef 1,17-23) agradecendo a Deus o dom da fé e a confiança que pôs na comunidade discipular em ordem à missão de testemunho, ensino e prática das boas obras entre nós e para com os irmãos de todos os quadrantes.
Porém, Paulo une à ação de graças fervorosa oração a Deus ao Pai (epíclese) para que dê aos destinatários da Carta, pelo Espírito Santo, o conhecimento profundo (epígnôsis) da “esperança a que foram chamados”. E a prova de que pode o Pai realizar essa “esperança” é o que Ele fez com Jesus: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita, exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre todos os poderes angélicos, soberania que se estende à Igreja – o “corpo” cuja “cabeça” é Cristo.
A ideia de que a comunidade discipular é um “corpo”, o “corpo de Cristo”, formado por muitos membros, já aparecera nas “grandes cartas”, sobretudo para definir a relação dos vários membros do “corpo” entre si. Contudo, nas “cartas do cativeiro”, Paulo retoma esta noção para refletir sobre a relação existente entre a comunidade e Cristo. E dois conceitos significativos definem aqui a relação entre Cristo e a Igreja: o de “cabeça” e o de “plenitude” (em grego, “pleroma”). Assumir Cristo como a “cabeça” da Igreja significa perceber que os dois formam uma comunidade indissolúvel e que há entre os dois uma comunhão total de vida e de destino; e significa também que Ele é o centro em torno do qual o “corpo” se articula, a partir do qual e em direção ao qual cresce, se orienta e constrói – em suma, é a origem e o fim desse “corpo”. Por outro lado, significa que a Igreja/corpo está submetida à obediência a Cristo/cabeça, pelo que a Igreja só de Cristo depende e só a Ele deve obediência. E dizer que a Igreja é a “plenitude” de Cristo é dizer que nela reside a “plenitude”, a “totalidade” de Cristo. Ela é o recetáculo, a morada, onde Cristo Se torna presente no mundo e é através desse “corpo” onde reside que Jesus Cristo continua todos os dias a realizar o seu projeto de salvação em favor dos homens. Presente nesse “corpo”, Cristo enche o mundo e atrai a Si todo o universo, até que o próprio Cristo “seja tudo em todos”.
Assim, Jesus subiu ao Céu, mas constituiu a sua Igreja como sinal e instrumento de salvação, sendo que, embora a Igreja não esgote as vias da graça e da salvação, porque o Espírito sopra donde e onde quer e o Verbo está espalhado como semente pelos corações (lógos spermatikós ou verbum seminale) – queiram eles dar-se conta dele e desenvolvê-lo em si – a salvação não pode vir contra a Igreja que siga no uso do sensus fidei e na perscrutação dos sinais dos tempos.
Assim, a ascensão como desconfinamento de Jesus ou passagem de Jesus ao teletrabalho dá lugar ao confinamento universal em torno do Cristo e ao trabalho missionário partilhado familiarmente, proximamente e fraternalmente entre Jesus, o Espírito Santo e a comunidade discipular que se torna apostolada, também pela preocupação e trabalho pelos que vivem longe.
Não sei se, neste Dia Mundial das Comunicações Sociais, a propósito do qual o Papa formula o voto de que esses meios se empenhem em dar boas notícias, estarão todos os elementos da comunidade discipular disponíveis para testemunhar por obras e palavras a boa notícia de que Jesus vive, nos ama, intercede por nós junto do Pai e nos quer a todos no Reino de Deus. Talvez seja este um desafio aos cristãos que trabalham com os meios de comunicação e aos que eles possam intervir, bem como a todos os profissionais dos media para que estejam atentos às boas notícias e as difundam.         
2020.05.24 – Louro de Carvalho

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