quarta-feira, 20 de maio de 2020

Evocando o sofrimento do Padre Manuel Souto, de Freixinho


Passaria hoje, dia 20 de maio, mais um aniversário do seu nascimento, mas faleceu a 14 de janeiro de 1980, uma segunda-feira, já lá vão 40 anos. Sucedi-lhe na paróquia de Freixinho (Sernancelhe), donde era natural e que paroquiou nos últimos anos de vida, tendo-o acompanhado nos seus últimos meses. Conheci os seus pais António da Cunha Rebelo e Ângela Rebelo.
É certo que o conhecimento que tive deste sacerdote ordenado em e para a arquidiocese de Luanda – falava com unção e saudade do arcebispo Dom Manuel Nunes Gabriel – não dá para tecer muitas considerações. Não obstante, não posso deixar de salientar alguns factos.
Regressou à metrópole em virtude de se sentir doente, pelo que, residindo na casa materna, coadjuvava em Freixinho e Fonte Arcada (aí residia o pároco) o Padre Alfredo Pedrinho, que terá falecido de pneumonia em que não fora assistido supostamente por o então Hospital de Sernancelhe não estar munido de oxigénio e a deslocação a Lamego ou a Viseu ser ao tempo complicada, bem como a tendência natural dos doentes era ir esperando a ver se passava com as mezinhas caseiras.
Apesar da doença, o Padre Manuel Rebelo da Cunha Souto, passou a paroquiar Fonte Arcada e Freixinho, até que, impossibilitado de se deslocar e de manter uma atividade regular, Fonte Arcada foi entregue ao Padre José Amorim, então pároco de Ferreirim e de Macieira, e o Padre Manuel ficou apenas com Freixinho até à sua completa debilitação.
Entretanto, na tarde do dia 10 de março de 1979, Dom António de Castro Xavier Monteiro, Arcebispo-bispo de Lamego, que se encontrava em Vila Nova de Paiva, numa reunião do clero do então arciprestado, mandou-me chamar ao saber que eu estava de serviço na Escola Preparatória. Fiquei admirado quando o Padre Sílvio Pinto do Amaral me sussurrou que aceitasse tudo o que o prelado me pedisse. O pedido de Dom António era que eu me encarregasse da paróquia de Freixinho, promovesse as catequeses, presidisse à celebração da Palavra ao domingo na ausência de sacerdote, com homilia e distribuição da Comunhão, presidisse a funerais e chamasse sacerdotes para o serviço de confissões, santa unção, batismos e matrimónios e acompanhasse o Padre Manuel, que tinha sido operado a um tumor cerebral e estava cada vez mais debilitado, na celebração da Missa em privado em sua casa. A única credenciação que eu tinha era o curso de Teologia e a instituição nos ministérios de Leitor (27 de abril de 1974) e de Acólito (15 de junho de 1974).
Apenas referi ao prelado lamecense que só era preciso o entendimento com o Padre Lucas Ribeiro, com quem ainda estava em estágio, o que obviamente não era difícil de conseguir. Assim, o Arcebispo levou-me a Freixinho a apresentar-me ao Padre Manuel, à família e a algumas pessoas que por ali se encontravam. Depois, viemos falar com o Padre Lucas. E, como eu não tinha meio de transporte próprio, o senhor Manuel Salgado, da Sarzeda, vinha buscar-me para Freixinho ao domingo, o que sucedeu logo no dia seguinte pela primeira vez, levando-me, a seguir, para a Sarzeda, onde faria também a celebração da Palavra, sendo que no fim do dia me traria a casa do Padre Lucas, em Caria.
Advertindo-me o prelado de que tivesse cuidado porque o sacerdote poderia não ter capacidade para celebrar a missa, tranquilizei-o nos termos seguintes: ajudá-lo-ia a celebrar a missa sempre que ele o desejasse (arranjaria meio de ir a Freixinho muitas vezes para esse efeito). Se ele não conseguisse fazer a consagração, não havia missa, pelo que as coisas se deixariam no ponto em que estavam; se conseguisse fazer a consagração, eu próprio e/ou outra pessoa que ali estivesse faríamos a comunhão. E não haveria problema, pois casos excecionais merecem tratamento adequado.
E assim se procedeu. Os padres do arciprestado organizaram-se para as confissões quaresmais; o Padre Amorim celebrou a Missa e fez a procissão no dia 8 de maio, festa de São Miguel; o Padre Adélio da Cunha Fonte, espiritano, fez a procissão e celebrou a Missa da Páscoa (em Freixinho e Sarzeda), aonde eu fui na segunda-feira fazer a celebração da palavra e a visita pascal, tendo ficado no domingo a ajudar o Padre Lucas. A partir de 15 de agosto, ordenado diácono, já podia oficiar em batismos e matrimónios; e, a partir de 29 de setembro, ordenado de presbítero, podia assumir a gestão normal da paróquia e celebrar a Missa, a Reconciliação e a Unção dos doentes. E, a 1 de novembro, passei também a Vila da Ponte e Granjal e deixei Sarzeda.
O Padre Manuel Souto, cada vez mais debilitado e choroso, por vezes, “incomodava” os conterrâneos, que não compreendiam que tudo provinha da doença que o consumia. Porém, alguns lembravam-se da ajuda que ele dispensava a muitos graças à sua habilidade na reparação dos motores e sistemas de regra e na reparação de avarias em eletrodomésticos e da sua boa disposição e jeito um pouco para tudo quando a situação de doença ainda era controlável.
Quem mostrou sempre um carinho especial pelo sacerdote foram as crianças da época, mercê do jeito pedagógico das catequistas e da professora do então ensino primário Odete Duarte.
A este propósito, recordo que acompanhei estas crianças à peregrinação a Fátima, a 9 e 10 de junho de 1980 (segunda e terça-feira). E foi uma verdadeira festa tanto no Santuário como na casa das Irmãs da Apresentação de Maria, onde ficaram alojadas.
Devo ainda recordar que, a 20 de maio de 1982, estando eu em serviço como capelão militar no Regimento de Infantaria de Viseu, a assinalar postumamente o aniversário do Padre Manuel, as crianças de Freixinho, como fora previamente combinado com o comando, foram recebidas no quartel, tendo-lhes sido mostrado o que era de mostrar. Aquilo que mais apreciaram foi ver passar os soldados em formatura e o museu regimental. Almoçámos ao ar livre no Parque do Fontelo e, a meio da tarde, celebrámos missa de grupo pelo Padre Manuel.
Não posso deixar de sublinhar que no seu funeral, além do Arcebispo, compareceram em massa os sacerdotes como era é usual – e penso que ainda é – na diocese de Lamego e que o Seminário de Lamego promoveu, anos depois, uma celebração de sufrágio e ação de graças pelo dom deste sacerdote na Igreja de Freixinho, que envolveu toda a paróquia.
Bem recordo aqueles tempos, assim como a oferta da batina preta e da batina branca. Esta ainda a utilizei várias vezes no verão ou noutras ocasiões sob a capa negra – parecendo um pinguim. E ainda há dias folheei um livrinho de canto coral que ele me deu, editado em Angola em 1958.
Porém, o que é de salientar é o testemunho do padre dedicado e macerado pelo sofrimento num termo de vida em que os amigos nem sempre mostraram a conveniente compreensão e a devida tolerância, não por maldade, mas por falta da avaliação concreta da realidade concreta. Só Deus é que sabe dar o justo valor a todos e a cada um, usando mais a misericórdia que a justeza.
2020.05.20 – Louro de Carvalho

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