São enunciadas pelo cardeal
Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima e vice-presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), no fim da entrevista à Ecclesia
e à Renascença, publicada a 15 de maio e em que aborda diversos aspetos
atinentes à Igreja e à sociedade, como segue.
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Sobre a experiência destes
12 e 13 de maio, com o altar do mundo num recinto tão vazio e em solidão, diz
ter sido uma experiência inédita para si, sobretudo por contrastar com “o recinto a extravasar” das outras vezes. Revela o
receio inicial de sentir solidão, o que não se concretizou.
Porém, sentiu a “experiência de comunhão espiritual”, a teológica “comunhão
dos santos”, pela qual e em conformidade com o que anunciara, “embora
estivéssemos fisicamente separados, estaríamos espiritualmente todos unidos,
como Igreja, em comunhão, à volta de Maria e com o coração cheio de fé”. Tem conhecimento pessoal de muitos
casos de pessoas que se uniram às celebrações, que o fizeram muito pelo
contributo da preparação que o Santuário fez, durante pelo menos 8 dias,
antes da peregrinação, pelos meios digitais (v.g.: passos da peregrinação do
coração e transmissões da missa e do rosário). Assim, muita gente seguia “as indicações do Santuário, a pôr a sua vela,
cada dia, à janela” e “os meios de comunicação social, nos últimos dias,
aguçaram a curiosidade e o apetite às pessoas de seguirem a celebração”, umas levadas
pela “curiosidade” e outras “por devoção, para se sentirem unidas”.
Referindo que “a simbólica foi belíssima”, sobretudo no dia 12, à noite,
sendo que os milhares de velas dispostas pelo Recinto representavam “todos os
peregrinos”, tendo sido expressamente dito que “eram os vivos e também os
defuntos, daqueles que tinham sido vítimas da Covid-19, para que os familiares
se sentissem ali, também”. Por outro lado, foram transportadas na procissão 21 velas
a representar as dioceses, bem como estiveram os três metropolitas (Patriarca
de Lisboa, Arcebispo de Braga e Arcebispo de Évora) em representação do episcopado. E houve o
“impressionante” gesto do lava-pés a três peregrinos a representar todos os
outros.
No dia 13, o Movimento do Apostolado Mundial de Fátima ofereceu o grande
ramo de flores a simbolizar o ramalhete espiritual recolhido por todo o mundo,
pois o Movimento fez chegar a toda a parte “a preparação desta peregrinação e
como ela seria, sem a presença física dos fiéis”. E diz o cardeal que “tudo
isto tocou o coração das pessoas”. Tanto assim é que está a receber “dezenas e
dezenas de emails a agradecerem e a salientarem esses aspetos”.
Explica o sentido da frase
“sentimos o chão fugir-nos por debaixo dos pés” (homilia do dia
13):
“Estava a referir-me ao contexto social e
mundial. Agora, pessoalmente, todos nós sentimos que vivemos num ambiente de
incerteza, de insegurança, sem saber como vai ser o dia de amanhã, seja do
ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista social e económico, seja do
ponto de vista eclesial. Vamos adaptando-nos, dia a dia, às circunstâncias, conforme
nos vão sendo fornecidos os dados.”.
Porém, descartou qualquer hesitação ou drama na decisão, a 5 de abril, em
articulação com os colaboradores do Santuário. E vincou:
“Sabíamos exatamente o que estávamos a
fazer, que tínhamos de preservar a saúde pública e a responsabilidade do
Santuário, nesse sentido. Tive ocasião de dizer, na conferência de imprensa,
que não queria ficar na história como o bispo responsável, enfim, por um
alastramento do vírus que viesse a agravar a situação de saúde pública do país.
(…) Tive muitas manifestações, depois de afirmar a decisão ou reafirmar a
decisão, que seria assim – consultei também o presidente da Conferência Episcopal,
para saber também a opinião dos outros. Não era sozinho. E era no mesmo
sentido.”.
E, por falar de recinto
vazio e momento espiritual tocante, questionado sobre o protagonismo que teve na
consagração de Portugal aos Sagrados Corações de Jesus e Maria, a 25 de março (antes do momento vivido pelo mundo com o Papa na
Praça de São Pedro), o prelado fatimita esclareceu:
“A ideia
surgiu do povo. O Povo de Deus, com o diz o nosso Papa Francisco, traduzido à
letra, tem o seu faro. (…) E, em 24 horas, foram milhares de assinaturas a
fazer esse pedido que chegava à Conferência Episcopal, concretamente ao seu
presidente, que depois consultou o Conselho Permanente e este, por sua vez,
aceitou fazer essa consagração. Como estávamos na altura do confinamento, o
presidente da Conferência pediu-me a mim, como vice-presidente e bispo do
lugar, para ser eu (…) a fazer essa consagração. Foi
tudo muito preparado em cima da hora, mas saiu bem, muito bem.”.
Quanto à sua própria comoção, diz ter sentido que o sofrimento do mundo lhe
“pesava sobre os ombros” e foi resistindo enquanto pôde “até chegar ao fim e
não conseguir mais”. Admite que “a visão
das Aparições também é isso: sobre um bispo recai todo o sofrimento, carrega
sobre si as dores do mundo”. E observa que “foi um momento muito
significativo para quem seguiu, pelos meios de comunicação”, referindo que recebeu
“telefonemas de bispos espanhóis (…), que tinham seguido e se tinham comovido”.
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Em relação às comunidades no
ambiente digital, salienta que estamos a fazer “uma experiência de fé em circunstâncias excecionais”, tendo havido “a
suspensão das celebrações comunitárias da Eucaristia, o cancelamento de quase
todas as atividades pastorais que implicavam reuniões, assembleias”. Daí
decorreu a emergência de “uma criatividade muito grande para que, nestas
circunstâncias excecionais, se pudesse continuar a celebrar a fé e a fazer a
experiência comunitária, também da própria fé”. Ora, algumas destas mudanças
ficarão, “porque têm de se aproveitar para o futuro”; outras durarão enquanto as
circunstâncias se mantiverem. Assim, tal como o Papa diz que, a partir do dia
18, terminará a transmissão online da Missa matinal, desde o Vaticano, o Bispo
de Leiria-Fátima, a partir do Pentecostes, deixará de transmitir a celebração no
YouTube para a diocese, pois as pessoas devem retomar gradual e
progressivamente “a sua pertença eclesial vivida nas comunidades” (Porém, muitas pessoas não podem devido ao
distanciamento).
Sobre os que anseiam por
participar fisicamente nas celebrações, há que seguir o exemplo do Papa, a quem
custou a supressão das celebrações comunitárias, mas que teve de dar o exemplo
a toda a Igreja. E “foi em todo o
mundo, praticamente, que se suspenderam essas celebrações”.
Tem havido sempre diálogo com as autoridades, nomeadamente, com a Direção
Geral da Saúde, para a tomada das decisões. Mas diz que esperava que fosse
possível recomeçar 15 dias antes do previsto, mas, dado o risco elevado de
contágio, segundo a previsão das autoridades, optou-se pelo Pentecostes (31 de maio) e já foi mais do que o previsto inicialmente, pois as
autoridades queriam que fosse mais tarde. Porém, a CEP aduziu que “o
Pentecostes é uma data muito significativa para a Igreja”; e chegou-se a
acordo, facilmente.
Questionado sobre a alegada cedência, comparando
com a situação de outros países, onde foi mais grave a pandemia, que já abriram
as igrejas, o cardeal nega a cedência, mas diz que houve um diálogo. E,
evocando a virtude cristã da paciência, referiu que gostaria que abrissem antes,
mas, não sendo possível, “temos de dar este testemunho e lembrar-nos de que
Cristo está sempre junto de nós, não deixa de estar presente”. Pensa que “se
deve conservar, juntamente com a Comunhão sacramental, pela qual se anseia”, a
Comunhão espiritual”. E chamou a atenção para um problema:
“A certa altura, em várias comunidades,
banalizou-se a Comunhão sacramental, sem a dimensão espiritual profunda que
agora se redescobriu, na melhor tradição da Igreja. O Papa fazia, todos os
dias, no final de cada Eucaristia, e isso deve acompanhar novamente, e
simultaneamente, a Comunhão sacramental. É uma das lições a interiorizar, a
permanecer para o futuro da Igreja. Jesus continua sempre, mesmo quando não é
possível celebrar a Eucaristia.”.
Põe em evidência o caso dos católicos do Japão, que estiveram 200 anos sem
sacerdote, religioso ou religiosa que os assistisse, sem a Eucaristia, mas,
“postos à prova”, “conservaram a fé”, que se aprofundou. E evocou o exemplo dos
que viveram nos países de Leste, para destacar:
“Muitos deles celebravam clandestinamente ou
não tinham celebração. O cardeal Van Thuân, na cadeia, recorreu a um meio
absolutamente excecional, que era fazer das mãos o altar. Ele pedia um remédio,
que deixavam passar na cadeia, e era o vinho para a Missa: era uma gotinha de
vinho numa mão e um pouco de pão na outra.”.
Colocada recentemente a
questão da prática sacramental noutros moldes, no caso da Amazónia, e focando o
que disse o Padre Spadaro da possibilidade da Reconciliação em termos digitais,
Dom António Marto frisa que o Papa advertiu para a necessidade de “não tornar viral a prática sacramental da Igreja que, por
si, é uma prática que requer encontro físico”, pois exige-se o toque em vários
sacramentos e “nada substitui aquela relação pessoal”. Porém, em casos
excecionais, o cardeal assente, mas evoca o que disse Francisco recentemente:
“O Papa concretizou um aspeto que vem no
Catecismo da Igreja: se uma pessoa não tem a possibilidade de celebrar a
Reconciliação, pode fazer o ato de arrependimento, diante de Deus, com o
propósito de, depois, se reconciliar sacramentalmente quando tiver ocasião, de
novo. E diz: ficam-lhe perdoados todos os pecados, inclusive os mortais. A
misericórdia de Deus é tão grande…”.
Não podemos contentar-nos só com a expressão virtual da fé. Mas esse é o
risco para muitos, que, em vez de terem aproveitado esta experiência para
personalizarem a fé, se podem ter acomodado a ponto de não quererem voltar à
comunidade. Porém, o purpurado comenta:
“Às vezes, para alguns, era fé rotineira,
agora também só participada. E, mesmo através dos meios de comunicação social,
só participava quem queria. Não era por rotina, era quem fazia essa opção. (…)
Havia uma participação espiritual e eu penso que o Espírito Santo também agia
através desses meios, não era só o espetáculo de quem vê e presencia o que se
está a passar ao longe. Havia uma união espiritual, havia uma comunhão
espiritual também, que a gente aconselhava a fazer.”.
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No atinente às relações
Igreja/Estado, o cardeal diz que têm seguido “nos dois princípios ou parâmetros da Concordata: autonomia própria na colaboração com o
bem-comum”.
Em relação à alegada
inconstitucionalidade da medida de proibir as celebrações comunitárias,
esclarece que ninguém as proibiu, mas que “foi a Igreja que assumiu”, tendo-se
até antecipado “para dar o exemplo,
porque a Igreja, quer queira quer não queira, é uma instituição de referência
fundamental na sociedade”. Referindo
que esteve sempre salvaguardada a autonomia da Igreja nas
negociações, diz que há uma comissão (não a integra) que dialoga com as autoridades sobretudo no
concernente às questões sanitárias. Estranhou a princípio as celebrações do 1.º
de maio, mas reparou que isso “estava permitido por decreto”, mas nunca
imaginou que se pudesse fazer o mesmo em Fátima, apesar de o recinto ser muito
maior. E reforça:
“A minha decisão estava tomada e era firme e
a Igreja não segue os mesmos critérios que são, às vezes, de ordem política, de
ordem partidária. A Igreja segue o critério da dignidade da pessoa e do bem comum.”.
Confrontado com o facto de
as respostas da Igreja Católica a nível litúrgico terem sido tomadas a nível nacional,
com orientações comuns, e não se tendo feito o mesmo a outros níveis, como a
participação na construção da sociedade, responde:
“Nós jogamos
sempre com isto: cada diocese tem uma autonomia própria e, ao mesmo tempo,
procuramos também a comunhão de todos através da Conferência Episcopal. Há
âmbitos em que são necessárias essas normas comuns, como foi este caso porque
era do âmbito sanitário, era igual para todos e, portanto, as normas são
comuns, mesmo respeitando as autonomias regionais.”.
Depois, descarta a ideia de olhar a Igreja como empresa a comandar desde a
cúpula. Com efeito, há organismos nos outros âmbitos da atividade eclesial: no
âmbito da caridade, da solidariedade, que têm autonomia para coordenar todas as
ações. Por exemplo, a Cáritas Portuguesa “tem estado sempre em atividade
coordenadora com as Cáritas Diocesanas”; e as IPSS, cuja maioria é da Igreja
Católica, “também têm uma coordenação própria, com atividade muito grande
durante a pandemia”, bem como a União das Misericórdias. Todas essas instituições
têm estado presentes durante este tempo da pandemia. E é de salientar a
colaboração de cada diocese com as autoridades autárquicas e com as da saúde, sobretudo
para disponibilizar casas, imóveis. O Santuário de Fátima pôs o Albergue dos
Peregrinos à disposição e ofereceu três ventiladores. O Seminário de Leira e o Santuário
ofereceram camas, que foram pedidas.
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O que mais preocupa o cardeal,
na crise económica e social, são sobretudo as consequências laborais, económicas e sociais, que já se sentem. Com
efeito, os pedidos de ajuda, a título individual e a título familiar, têm
aumentado muitíssimo nas dioceses. E dá exemplos de aumento exponencial: a
Cáritas de Setúbal assiste 4000 famílias, 13 mil pessoas ao todo; Santo António
dos Cavaleiros assiste 1300 pessoas; uma paróquia do Porto que servia 160
refeições serve 400. Trata-se de “gente que tinha o seu trabalho, gente da
classe média, mais ou menos, e que agora, por causa da família, sente
necessidade…é a chamada pobreza envergonhada”.
Bruxelas prevê que a recessão seja grave, mas ninguém tem certezas. Também
a Igreja se vai ressentir. “Mesmo o Santuário de Fátima vai sentir isso porque
vive das ofertas e, não havendo ofertas, durante todo este tempo…”. Já há uma
ou outra paróquia em que se está a sentir isso. Porém, como disse em Fátima, “a mão materna de Maria não deixará faltar o
necessário”.
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Sobre a próxima assembleia
da CEP, diz que será diferente e mais breve. Estava marcada para abril, com uma agenda bastante extensa, mas por causa
da pandemia foi adiada para junho por ser necessário fazer as eleições dos
diferentes órgãos da conferência. Prevê-se que haja tempo para o esboço dum
futuro documento sobre “a situação social e eclesial”, embora sem grandes
linhas de orientação, pois “ainda não sabemos o que vai acontecer nos próximos
meses”.
Todavia, pensa que se vai abrir uma nova oportunidade para a Igreja, para a
reforma da Igreja, que leva tempo: uma “Igreja hospital de campanha” –
misericordiosa e samaritana, próxima das pessoas feridas (feridas
pessoais e familiares, do coração, do espírito, das situações económicas, etc.); Igreja em saída às diferentes periferias
– geográficas, humanas, existenciais, sociais, dos que andam afastados, porque
não podemos prescindir deles, pois o primeiro papel da Igreja é a evangelização;
Igreja
centrada no mistério de Deus – cuja beleza é preciso redescobrir,
pois “não somos pequenos deuses”, como às vezes presumimos, mas “criaturas de
Deus” que se confrontam com “um grande mistério: um mistério de vida e um
mistério da humanidade, que requer uma abertura para um mistério”, que chamamos
Deus e, para nós, cristãos, é o “Deus de Jesus Cristo”; e uma Igreja
Sinodal – “composta de toda uma série de serviços e ministérios que
procuram caminhar juntos”, “menos clerical, menos assente só sobre o clero”,
sendo que a responsabilidade de ser clerical vem, ora da parte do clero, que
tudo quer controlar, ora da parte do povo, que diz “o padre que faça, o clero que faça”.
Frisando que agora se notou “também uma criatividade da parte dos leigos,
catequistas, serviços da caridade, juventude, voluntários…”, diz que “são
coisas a aproveitar”, para seguirmos na linha do Papa, que equaciona, na
Exortação Apostólica ‘Querida Amazónia’:
“Uma Igreja marcadamente laical”,
muito embora o clero seja necessário, mas “cada coisa no seu lugar.
Termina com a referência aos novos meios de comunicação, que valeram no
confinamento para a celebração da fé, garantindo a celebração comunitária, o sentido
de pertença a toda a Igreja e a oferta de subsídios para a celebrar a Missa:
Palavra de Deus, meditações, orações, que as pessoas seguiam e faziam em suas
casas”. Novos meios para a nova
evangelização!
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Enfim, um hierarca a ouvir pela sua perspicácia e sentido de Igreja e de humanidade!
2020.05.16 –
Louro de Carvalho
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