sábado, 16 de maio de 2020

Quatro prioridades para a renovação da Igreja Católica em Portugal


São enunciadas pelo cardeal Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima e vice-presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), no fim da entrevista à Ecclesia e à Renascença, publicada a 15 de maio e em que aborda diversos aspetos atinentes à Igreja e à sociedade, como segue.
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Sobre a experiência destes 12 e 13 de maio, com o altar do mundo num recinto tão vazio e em solidão, diz ter sido uma experiência inédita para si, sobretudo por contrastar com “o recinto a extravasar” das outras vezes. Revela o receio inicial de sentir solidão, o que não se concretizou.
Porém, sentiu a “experiência de comunhão espiritual”, a teológica “comunhão dos santos”, pela qual e em conformidade com o que anunciara, “embora estivéssemos fisicamente separados, estaríamos espiritualmente todos unidos, como Igreja, em comunhão, à volta de Maria e com o coração cheio de fé”. Tem conhecimento pessoal de muitos casos de pessoas que se uniram às celebrações, que o fizeram muito pelo contributo da preparação que o Santuário fez, durante pelo menos 8 dias, antes da peregrinação, pelos meios digitais (v.g.: passos da peregrinação do coração e transmissões da missa e do rosário). Assim, muita gente seguia “as indicações do Santuário, a pôr a sua vela, cada dia, à janela” e “os meios de comunicação social, nos últimos dias, aguçaram a curiosidade e o apetite às pessoas de seguirem a celebração”, umas levadas pela “curiosidade” e outras “por devoção, para se sentirem unidas”.
Referindo que “a simbólica foi belíssima”, sobretudo no dia 12, à noite, sendo que os milhares de velas dispostas pelo Recinto representavam “todos os peregrinos”, tendo sido expressamente dito que “eram os vivos e também os defuntos, daqueles que tinham sido vítimas da Covid-19, para que os familiares se sentissem ali, também”. Por outro lado, foram transportadas na procissão 21 velas a representar as dioceses, bem como estiveram os três metropolitas (Patriarca de Lisboa, Arcebispo de Braga e Arcebispo de Évora) em representação do episcopado. E houve o “impressionante” gesto do lava-pés a três peregrinos a representar todos os outros.
No dia 13, o Movimento do Apostolado Mundial de Fátima ofereceu o grande ramo de flores a simbolizar o ramalhete espiritual recolhido por todo o mundo, pois o Movimento fez chegar a toda a parte “a preparação desta peregrinação e como ela seria, sem a presença física dos fiéis”. E diz o cardeal que “tudo isto tocou o coração das pessoas”. Tanto assim é que está a receber “dezenas e dezenas de emails a agradecerem e a salientarem esses aspetos”.
Explica o sentido da frase “sentimos o chão fugir-nos por debaixo dos pés” (homilia do dia 13):
Estava a referir-me ao contexto social e mundial. Agora, pessoalmente, todos nós sentimos que vivemos num ambiente de incerteza, de insegurança, sem saber como vai ser o dia de amanhã, seja do ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista social e económico, seja do ponto de vista eclesial. Vamos adaptando-nos, dia a dia, às circunstâncias, conforme nos vão sendo fornecidos os dados.”.
Porém, descartou qualquer hesitação ou drama na decisão, a 5 de abril, em articulação com os colaboradores do Santuário. E vincou:
Sabíamos exatamente o que estávamos a fazer, que tínhamos de preservar a saúde pública e a responsabilidade do Santuário, nesse sentido. Tive ocasião de dizer, na conferência de imprensa, que não queria ficar na história como o bispo responsável, enfim, por um alastramento do vírus que viesse a agravar a situação de saúde pública do país. (…) Tive muitas manifestações, depois de afirmar a decisão ou reafirmar a decisão, que seria assim – consultei também o presidente da Conferência Episcopal, para saber também a opinião dos outros. Não era sozinho. E era no mesmo sentido.”.
E, por falar de recinto vazio e momento espiritual tocante, questionado sobre o protagonismo que teve na consagração de Portugal aos Sagrados Corações de Jesus e Maria, a 25 de março (antes do momento vivido pelo mundo com o Papa na Praça de São Pedro), o prelado fatimita esclareceu:
A ideia surgiu do povo. O Povo de Deus, com o diz o nosso Papa Francisco, traduzido à letra, tem o seu faro. (…) E, em 24 horas, foram milhares de assinaturas a fazer esse pedido que chegava à Conferência Episcopal, concretamente ao seu presidente, que depois consultou o Conselho Permanente e este, por sua vez, aceitou fazer essa consagração. Como estávamos na altura do confinamento, o presidente da Conferência pediu-me a mim, como vice-presidente e bispo do lugar, para ser eu (…) a fazer essa consagração. Foi tudo muito preparado em cima da hora, mas saiu bem, muito bem.”.
Quanto à sua própria comoção, diz ter sentido que o sofrimento do mundo lhe “pesava sobre os ombros” e foi resistindo enquanto pôde “até chegar ao fim e não conseguir mais”. Admite que “a visão das Aparições também é isso: sobre um bispo recai todo o sofrimento, carrega sobre si as dores do mundo”. E observa que “foi um momento muito significativo para quem seguiu, pelos meios de comunicação”, referindo que recebeu “telefonemas de bispos espanhóis (…), que tinham seguido e se tinham comovido”.
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Em relação às comunidades no ambiente digital, salienta que estamos a fazer “uma experiência de fé em circunstâncias excecionais”,  tendo havido “a suspensão das celebrações comunitárias da Eucaristia, o cancelamento de quase todas as atividades pastorais que implicavam reuniões, assembleias”. Daí decorreu a emergência de “uma criatividade muito grande para que, nestas circunstâncias excecionais, se pudesse continuar a celebrar a fé e a fazer a experiência comunitária, também da própria fé”. Ora, algumas destas mudanças ficarão, “porque têm de se aproveitar para o futuro”; outras durarão enquanto as circunstâncias se mantiverem. Assim, tal como o Papa diz que, a partir do dia 18, terminará a transmissão online da Missa matinal, desde o Vaticano, o Bispo de Leiria-Fátima, a partir do Pentecostes, deixará de transmitir a celebração no YouTube para a diocese, pois as pessoas devem retomar gradual e progressivamente “a sua pertença eclesial vivida nas comunidades” (Porém, muitas pessoas não podem devido ao distanciamento).
Sobre os que anseiam por participar fisicamente nas celebrações, há que seguir o exemplo do Papa, a quem custou a supressão das celebrações comunitárias, mas que teve de dar o exemplo a toda a Igreja. E “foi em todo o mundo, praticamente, que se suspenderam essas celebrações”.
Tem havido sempre diálogo com as autoridades, nomeadamente, com a Direção Geral da Saúde, para a tomada das decisões. Mas diz que esperava que fosse possível recomeçar 15 dias antes do previsto, mas, dado o risco elevado de contágio, segundo a previsão das autoridades, optou-se pelo Pentecostes (31 de maio) e já foi mais do que o previsto inicialmente, pois as autoridades queriam que fosse mais tarde. Porém, a CEP aduziu que “o Pentecostes é uma data muito significativa para a Igreja”; e chegou-se a acordo, facilmente.
Questionado sobre a alegada cedência, comparando com a situação de outros países, onde foi mais grave a pandemia, que já abriram as igrejas, o cardeal nega a cedência, mas diz que houve um diálogo. E, evocando a virtude cristã da paciência, referiu que gostaria que abrissem antes, mas, não sendo possível, “temos de dar este testemunho e lembrar-nos de que Cristo está sempre junto de nós, não deixa de estar presente”. Pensa que “se deve conservar, juntamente com a Comunhão sacramental, pela qual se anseia”, a Comunhão espiritual”. E chamou a atenção para um problema:
A certa altura, em várias comunidades, banalizou-se a Comunhão sacramental, sem a dimensão espiritual profunda que agora se redescobriu, na melhor tradição da Igreja. O Papa fazia, todos os dias, no final de cada Eucaristia, e isso deve acompanhar novamente, e simultaneamente, a Comunhão sacramental. É uma das lições a interiorizar, a permanecer para o futuro da Igreja. Jesus continua sempre, mesmo quando não é possível celebrar a Eucaristia.”.
Põe em evidência o caso dos católicos do Japão, que estiveram 200 anos sem sacerdote, religioso ou religiosa que os assistisse, sem a Eucaristia, mas, “postos à prova”, “conservaram a fé”, que se aprofundou. E evocou o exemplo dos que viveram nos países de Leste, para destacar:
Muitos deles celebravam clandestinamente ou não tinham celebração. O cardeal Van Thuân, na cadeia, recorreu a um meio absolutamente excecional, que era fazer das mãos o altar. Ele pedia um remédio, que deixavam passar na cadeia, e era o vinho para a Missa: era uma gotinha de vinho numa mão e um pouco de pão na outra.”.
Colocada recentemente a questão da prática sacramental noutros moldes, no caso da Amazónia, e focando o que disse o Padre Spadaro da possibilidade da Reconciliação em termos digitais, Dom António Marto frisa que o Papa advertiu para a necessidade de “não tornar viral a prática sacramental da Igreja que, por si, é uma prática que requer encontro físico”, pois exige-se o toque em vários sacramentos e “nada substitui aquela relação pessoal”. Porém, em casos excecionais, o cardeal assente, mas evoca o que disse Francisco recentemente:
O Papa concretizou um aspeto que vem no Catecismo da Igreja: se uma pessoa não tem a possibilidade de celebrar a Reconciliação, pode fazer o ato de arrependimento, diante de Deus, com o propósito de, depois, se reconciliar sacramentalmente quando tiver ocasião, de novo. E diz: ficam-lhe perdoados todos os pecados, inclusive os mortais. A misericórdia de Deus é tão grande…”.
Não podemos contentar-nos só com a expressão virtual da fé. Mas esse é o risco para muitos, que, em vez de terem aproveitado esta experiência para personalizarem a fé, se podem ter acomodado a ponto de não quererem voltar à comunidade. Porém, o purpurado comenta:
Às vezes, para alguns, era fé rotineira, agora também só participada. E, mesmo através dos meios de comunicação social, só participava quem queria. Não era por rotina, era quem fazia essa opção. (…) Havia uma participação espiritual e eu penso que o Espírito Santo também agia através desses meios, não era só o espetáculo de quem vê e presencia o que se está a passar ao longe. Havia uma união espiritual, havia uma comunhão espiritual também, que a gente aconselhava a fazer.”.
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No atinente às relações Igreja/Estado, o cardeal diz que têm seguido “nos dois princípios ou parâmetros da Concordata: autonomia própria na colaboração com o bem-comum”.
Em relação à alegada inconstitucionalidade da medida de proibir as celebrações comunitárias, esclarece que ninguém as proibiu, mas que “foi a Igreja que assumiu”, tendo-se até antecipado “para dar o exemplo, porque a Igreja, quer queira quer não queira, é uma instituição de referência fundamental na sociedade”. Referindo que esteve sempre salvaguardada a autonomia da Igreja nas negociações, diz que há uma comissão (não a integra) que dialoga com as autoridades sobretudo no concernente às questões sanitárias. Estranhou a princípio as celebrações do 1.º de maio, mas reparou que isso “estava permitido por decreto”, mas nunca imaginou que se pudesse fazer o mesmo em Fátima, apesar de o recinto ser muito maior. E reforça:
A minha decisão estava tomada e era firme e a Igreja não segue os mesmos critérios que são, às vezes, de ordem política, de ordem partidária. A Igreja segue o critério da dignidade da pessoa e do bem comum.”.
Confrontado com o facto de as respostas da Igreja Católica a nível litúrgico terem sido tomadas a nível nacional, com orientações comuns, e não se tendo feito o mesmo a outros níveis, como a participação na construção da sociedade, responde:
Nós jogamos sempre com isto: cada diocese tem uma autonomia própria e, ao mesmo tempo, procuramos também a comunhão de todos através da Conferência Episcopal. Há âmbitos em que são necessárias essas normas comuns, como foi este caso porque era do âmbito sanitário, era igual para todos e, portanto, as normas são comuns, mesmo respeitando as autonomias regionais.”.
Depois, descarta a ideia de olhar a Igreja como empresa a comandar desde a cúpula. Com efeito, há organismos nos outros âmbitos da atividade eclesial: no âmbito da caridade, da solidariedade, que têm autonomia para coordenar todas as ações. Por exemplo, a Cáritas Portuguesa “tem estado sempre em atividade coordenadora com as Cáritas Diocesanas”; e as IPSS, cuja maioria é da Igreja Católica, “também têm uma coordenação própria, com atividade muito grande durante a pandemia”, bem como a União das Misericórdias. Todas essas instituições têm estado presentes durante este tempo da pandemia. E é de salientar a colaboração de cada diocese com as autoridades autárquicas e com as da saúde, sobretudo para disponibilizar casas, imóveis. O Santuário de Fátima pôs o Albergue dos Peregrinos à disposição e ofereceu três ventiladores. O Seminário de Leira e o Santuário ofereceram camas, que foram pedidas.
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O que mais preocupa o cardeal, na crise económica e social, são sobretudo as consequências laborais, económicas e sociais, que já se sentem. Com efeito, os pedidos de ajuda, a título individual e a título familiar, têm aumentado muitíssimo nas dioceses. E dá exemplos de aumento exponencial: a Cáritas de Setúbal assiste 4000 famílias, 13 mil pessoas ao todo; Santo António dos Cavaleiros assiste 1300 pessoas; uma paróquia do Porto que servia 160 refeições serve 400. Trata-se de “gente que tinha o seu trabalho, gente da classe média, mais ou menos, e que agora, por causa da família, sente necessidade…é a chamada pobreza envergonhada”.
Bruxelas prevê que a recessão seja grave, mas ninguém tem certezas. Também a Igreja se vai ressentir. “Mesmo o Santuário de Fátima vai sentir isso porque vive das ofertas e, não havendo ofertas, durante todo este tempo…”. Já há uma ou outra paróquia em que se está a sentir isso. Porém, como disse em Fátima, “a mão materna de Maria não deixará faltar o necessário”.
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Sobre a próxima assembleia da CEP, diz que será diferente e mais breve. Estava marcada para abril, com uma agenda bastante extensa, mas por causa da pandemia foi adiada para junho por ser necessário fazer as eleições dos diferentes órgãos da conferência. Prevê-se que haja tempo para o esboço dum futuro documento sobre “a situação social e eclesial”, embora sem grandes linhas de orientação, pois “ainda não sabemos o que vai acontecer nos próximos meses”.
Todavia, pensa que se vai abrir uma nova oportunidade para a Igreja, para a reforma da Igreja, que leva tempo: uma “Igreja hospital de campanha” – misericordiosa e samaritana, próxima das pessoas feridas (feridas pessoais e familiares, do coração, do espírito, das situações económicas, etc.); Igreja em saída às diferentes periferias – geográficas, humanas, existenciais, sociais, dos que andam afastados, porque não podemos prescindir deles, pois o primeiro papel da Igreja é a evangelização; Igreja centrada no mistério de Deus – cuja beleza é preciso redescobrir, pois “não somos pequenos deuses”, como às vezes presumimos, mas “criaturas de Deus” que se confrontam com “um grande mistério: um mistério de vida e um mistério da humanidade, que requer uma abertura para um mistério”, que chamamos Deus e, para nós, cristãos, é o “Deus de Jesus Cristo”; e uma Igreja Sinodal – “composta de toda uma série de serviços e ministérios que procuram caminhar juntos”, “menos clerical, menos assente só sobre o clero”, sendo que a responsabilidade de ser clerical vem, ora da parte do clero, que tudo quer controlar, ora da parte do povo, que diz “o padre que faça, o clero que faça”.
Frisando que agora se notou “também uma criatividade da parte dos leigos, catequistas, serviços da caridade, juventude, voluntários…”, diz que “são coisas a aproveitar”, para seguirmos na linha do Papa, que equaciona, na Exortação Apostólica ‘Querida Amazónia’: “Uma Igreja marcadamente laical”, muito embora o clero seja necessário, mas “cada coisa no seu lugar.
Termina com a referência aos novos meios de comunicação, que valeram no confinamento para a celebração da fé, garantindo a celebração comunitária, o sentido de pertença a toda a Igreja e a oferta de subsídios para a celebrar a Missa: Palavra de Deus, meditações, orações, que as pessoas seguiam e faziam em suas casas”. Novos meios para a nova evangelização!
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Enfim, um hierarca a ouvir pela sua perspicácia e sentido de Igreja e de humanidade!
2020.05.16 – Louro de Carvalho

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