Por mais voltas que os responsáveis pelo caso
deem, bem como os apologistas das soluções encontradas, tanto a “cobaização” de
Portugal para salvar um banco através da criação dum fundo de resolução com
garantias de privilégio por parte do Estado como o processo de venda do banco
bom – o Novo Banco (NB),
que resultou da desmembração do BES para se livrar dos produtos tóxicos – como
ainda a execução do instrumento contratual constituem um péssimo exemplo da
carga que o sistema financeiro impôs aos cidadãos portugueses sob a égide do
poder político, quer na vertente que resulta do voto do eleitorado, quer na que
deriva da convenção de que os magistrados formados à custa do povo procedem à
ministração da justiça em nome deste mesmo povo, que unido jamais seria
vencido.
A resolução do BES imposta pelo BCE (Banco Central Europeu),
exercida pelo BdP Banco
de Portugal), com a cobertura do Governo num fim de semana de
agosto de 2014, foi um dos maiores crimes de colarinho branco, como assegurou
Rui Rio no mais recente debate parlamentar com o Primeiro-Ministro. É óbvio que
foi legal, mas a legalidade foi forjada com dois decretos-lei formulados um
numa sexta-feira e outro no domingo seguinte. O Fundo de Resolução, constituído
por um sindicato de bancos, em que a parte de leão inversa coube à CGD, foi a
nuvem de poeira atirada para o ar a convencer o povo de que não haveria custos
para os contribuintes e alegadamente a garantir os depósitos.
Do Governo que decretou o lastro para a resolução
saiu um secretário de Estado para o BdP que ficou encarregado de proceder à
venda do NB. E, supostamente depois de muitas tentativas falhadas, vendeu-o, já
no consulado de António Costa, a um fundo norte-americano em que as disposições
contratuais mais não significam do que a Lone
Star compra e o Estado Português paga através do Fundo de Resolução.
Qualquer outra alternativa era menos má que esta.
Nos últimos dias, esteve na ribalta pública a
transferência de 850 milhões alegadamente sem conhecimento do Primeiro-Ministro,
que garantiu no Parlamento que tal operação não se faria sem que se conhecessem
os resultados da auditoria em curso sobre a gestão de 2017 e 2018 e que,
primeiro, pediu desculpa ao grupo parlamentar que levantou a questão e, depois,
veio dizer que não tinha havido crise nenhuma no Governo. O Ministro das
Finanças veio dizer que todos sabiam porque faz parte do contrato e do OE (Orçamento do Estado),
prometendo que, enquanto for ministro, não permitirá um debate destes sobre o
banco. O Presidente da República, que não comenta o funcionamento interno do
Governo, disse que o Primeiro-Ministro esteve muito bem.
Do Presidente já se espera que faça comentários:
está no seu direito e no “seu” entendimento das prerrogativas constitucionais.
O Primeiro-Ministro garantiu o que não podia, pois não ouviu o Ministro das
Finanças, e agora vem garantir que o Fundo de Resolução pode reaver a verba
transferida se as conclusões da auditoria forem pela administração incompetente
e ruinosa, o que só os tribunais podem concluir. E o Ministro parece renunciar à
defesa da coisa pública em benefício dum banco, como parece desconhecer que não
basta uma cláusula contratual existir para que seja boa, não bastando uma verba
estar inscrita no OE para ser automaticamente disponibilizada, pois sabe que, a
par do decreto de execução orçamental, é necessário o ato de autorização de
despesa. Mais: quando uma das partes dum contrato reconhece que está a ser
gravemente lesada e/ou que a outra parte não está a cumprir o clausulado nos
termos que lhe dizem respeito, cabe-lhe a denúncia do contrato com vista à
correção ou à sua anulação.
Tudo isto é verificável em situações normais e,
se o não é por alegadamente o contrato ter ficado blindado, os responsáveis têm
de responder por isso. Para isso existem os tribunais.
Porém, a questão do NB torna-se escandalosa para
os contribuintes pelos milhares de milhão de euros que já absorveu do Estado a
par dos prejuízos acumulados ao longo do tempo, contra as expectativas que a
publicidade inventou no início, do aumento de 75% dos vencimento dos gestores
desde a tomada de posse do NB pela Lone Star e dos chorudos prémios com que os mesmos
gestores têm sido contemplados. E, no âmbito da gestão, é de esperar que os gestores
deem as cambalhotas necessárias para que o NB possa retirar do Estado, através
do Fundo de Resolução, tudo o que puder obter em termos contratuais até ao último
cêntimo.
E este estado de exceção do NB, além de ser um
escândalo nacional, é um ultraje à enorme fatia de cidadãos que a covid-19
atirou para o desemprego, agora em constante aumento, aos que a situação de
pandemia levou à pobreza, ao isolamento e à morte, aos que serviam e o medo
sentido ou imposto, atirou para a inatividade, às empresas e serviços que
encerraram, que ficaram em meia atividade, se reconverteram ou precisaram de
recorrer às migalhas do Estado. E é um insulto aos outros bancos a quem o Governo
e a oposição advertiram de que não podem aproveitar-se da crise para acumular
lucros escandalosos e a quem a sociedade está a solicitar apoio às empresas e
às famílias.
Não contando, porque não estiveram para isso, com
a crise socioeconómica que flagelo como este pudesse provocar, sabendo-se que isto
é cíclico, a banca em
geral não aprendeu com a crise financeira de 2008, havendo a esperança, na época,
de que o choque obrigasse à profunda reforma do sistema financeiro, que não
aconteceu. Mudou-se algo para que tudo ficasse na mesma, prosseguindo grosso modo os hábitos e o modus
faciendi pré-2008. O poder que a Idade Média cria ser confiado por
Deus ao monarca é detido pela banca que se julga acima de todos.
No atinente
ao BES, o banco mau ficou com o nome de Banco Espírito Santo e o banco bom, o
NB, recebe tranches de proventos do Estado a título de garantias para as “debilidades”
que vão surgindo convenientemente. Tem crédito mal parado de que não informa o
avalista Estado e vende património sem autorização do credor Fundo de Resolução.
Ora, o cidadão que tenha empréstimo bancário para habitação ou para uma unidade
empresarial costuma estar sujeito a hipoteca imobiliária, não se podendo
desfazer do bem sem o acordo do credor. E quando lhe é concedido financiamento para
um projeto, deve periodicamente prestar contas da administração que faz do
projeto em causa e das respetivas atividades. Porém, ao NB tudo é lícito. (um
empréstimo que qualquer contribuinte desejaria ter a várias décadas), os salários dos administradores subiram 75% com
a venda à Lone Star e os prémios de eleição continuam a ser religiosamente concedidos. Apesar de
acumular prejuízos sobre prejuízos e continuar a ter capital injetado pelo
Estado
Por fim, supostamente
nada obsta a que o Ministro das Finanças passe a Governador do BdP, porque tem
feito um papel fantástico como governante e porque o mesmo sucedeu com outros
como Pinto Barbosa, Silva Lopes e Miguel Beleza. Só nos esquecemos que ao BdP
incumbirá provavelmente avaliar finalmente todo o percurso do NB de que o próprio
não pode alijar responsabilidades tal como a sua antecessora – o que não se aplica
aos preditos. E, quanto ao desempenho como governante não é despiciendo o garrote
que impôs à despesa pública que ia continuando a estrangular o SNS na esteira do
tempo da troika. Não éramos todos “Centeno”?
Constitui,
pois, o percurso do NB uma forte interpelação aos poderes do Estado!
2020.05.21 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário