quinta-feira, 21 de maio de 2020

O estado do Novo Banco passou de ruinoso a escandaloso e ultrajante


Por mais voltas que os responsáveis pelo caso deem, bem como os apologistas das soluções encontradas, tanto a “cobaização” de Portugal para salvar um banco através da criação dum fundo de resolução com garantias de privilégio por parte do Estado como o processo de venda do banco bom – o Novo Banco (NB), que resultou da desmembração do BES para se livrar dos produtos tóxicos – como ainda a execução do instrumento contratual constituem um péssimo exemplo da carga que o sistema financeiro impôs aos cidadãos portugueses sob a égide do poder político, quer na vertente que resulta do voto do eleitorado, quer na que deriva da convenção de que os magistrados formados à custa do povo procedem à ministração da justiça em nome deste mesmo povo, que unido jamais seria vencido.
A resolução do BES imposta pelo BCE (Banco Central Europeu), exercida pelo BdP Banco de Portugal), com a cobertura do Governo num fim de semana de agosto de 2014, foi um dos maiores crimes de colarinho branco, como assegurou Rui Rio no mais recente debate parlamentar com o Primeiro-Ministro. É óbvio que foi legal, mas a legalidade foi forjada com dois decretos-lei formulados um numa sexta-feira e outro no domingo seguinte. O Fundo de Resolução, constituído por um sindicato de bancos, em que a parte de leão inversa coube à CGD, foi a nuvem de poeira atirada para o ar a convencer o povo de que não haveria custos para os contribuintes e alegadamente a garantir os depósitos.
Do Governo que decretou o lastro para a resolução saiu um secretário de Estado para o BdP que ficou encarregado de proceder à venda do NB. E, supostamente depois de muitas tentativas falhadas, vendeu-o, já no consulado de António Costa, a um fundo norte-americano em que as disposições contratuais mais não significam do que a Lone Star compra e o Estado Português paga através do Fundo de Resolução. Qualquer outra alternativa era menos má que esta.
Nos últimos dias, esteve na ribalta pública a transferência de 850 milhões alegadamente sem conhecimento do Primeiro-Ministro, que garantiu no Parlamento que tal operação não se faria sem que se conhecessem os resultados da auditoria em curso sobre a gestão de 2017 e 2018 e que, primeiro, pediu desculpa ao grupo parlamentar que levantou a questão e, depois, veio dizer que não tinha havido crise nenhuma no Governo. O Ministro das Finanças veio dizer que todos sabiam porque faz parte do contrato e do OE (Orçamento do Estado), prometendo que, enquanto for ministro, não permitirá um debate destes sobre o banco. O Presidente da República, que não comenta o funcionamento interno do Governo, disse que o Primeiro-Ministro esteve muito bem.       
Do Presidente já se espera que faça comentários: está no seu direito e no “seu” entendimento das prerrogativas constitucionais. O Primeiro-Ministro garantiu o que não podia, pois não ouviu o Ministro das Finanças, e agora vem garantir que o Fundo de Resolução pode reaver a verba transferida se as conclusões da auditoria forem pela administração incompetente e ruinosa, o que só os tribunais podem concluir. E o Ministro parece renunciar à defesa da coisa pública em benefício dum banco, como parece desconhecer que não basta uma cláusula contratual existir para que seja boa, não bastando uma verba estar inscrita no OE para ser automaticamente disponibilizada, pois sabe que, a par do decreto de execução orçamental, é necessário o ato de autorização de despesa. Mais: quando uma das partes dum contrato reconhece que está a ser gravemente lesada e/ou que a outra parte não está a cumprir o clausulado nos termos que lhe dizem respeito, cabe-lhe a denúncia do contrato com vista à correção ou à sua anulação.
Tudo isto é verificável em situações normais e, se o não é por alegadamente o contrato ter ficado blindado, os responsáveis têm de responder por isso. Para isso existem os tribunais.   
Porém, a questão do NB torna-se escandalosa para os contribuintes pelos milhares de milhão de euros que já absorveu do Estado a par dos prejuízos acumulados ao longo do tempo, contra as expectativas que a publicidade inventou no início, do aumento de 75% dos vencimento dos gestores desde a tomada de posse do NB pela Lone Star e dos chorudos prémios com que os mesmos gestores têm sido contemplados. E, no âmbito da gestão, é de esperar que os gestores deem as cambalhotas necessárias para que o NB possa retirar do Estado, através do Fundo de Resolução, tudo o que puder obter em termos contratuais até ao último cêntimo.        
E este estado de exceção do NB, além de ser um escândalo nacional, é um ultraje à enorme fatia de cidadãos que a covid-19 atirou para o desemprego, agora em constante aumento, aos que a situação de pandemia levou à pobreza, ao isolamento e à morte, aos que serviam e o medo sentido ou imposto, atirou para a inatividade, às empresas e serviços que encerraram, que ficaram em meia atividade, se reconverteram ou precisaram de recorrer às migalhas do Estado. E é um insulto aos outros bancos a quem o Governo e a oposição advertiram de que não podem aproveitar-se da crise para acumular lucros escandalosos e a quem a sociedade está a solicitar apoio às empresas e às famílias.
Não contando, porque não estiveram para isso, com a crise socioeconómica que flagelo como este pudesse provocar, sabendo-se que isto é cíclico, a banca em geral não aprendeu com a crise financeira de 2008, havendo a esperança, na época, de que o choque obrigasse à profunda reforma do sistema financeiro, que não aconteceu. Mudou-se algo para que tudo ficasse na mesma, prosseguindo grosso modo os hábitos e o modus faciendi pré-2008. O poder que a Idade Média cria ser confiado por Deus ao monarca é detido pela banca que se julga acima de todos.  
No atinente ao BES, o banco mau ficou com o nome de Banco Espírito Santo e o banco bom, o NB, recebe tranches de proventos do Estado a título de garantias para as “debilidades” que vão surgindo convenientemente. Tem crédito mal parado de que não informa o avalista Estado e vende património sem autorização do credor Fundo de Resolução. Ora, o cidadão que tenha empréstimo bancário para habitação ou para uma unidade empresarial costuma estar sujeito a hipoteca imobiliária, não se podendo desfazer do bem sem o acordo do credor. E quando lhe é concedido financiamento para um projeto, deve periodicamente prestar contas da administração que faz do projeto em causa e das respetivas atividades. Porém, ao NB tudo é lícito. Parte inferior do formulárioApesar de acumular prejuízos sobre prejuízos e continuar a ter capital injetado pelo Estado (um empréstimo que qualquer contribuinte desejaria ter a várias décadas), os salários dos administradores subiram 75% com a venda à Lone Star e os prémios de eleição continuam a ser religiosamente concedidos.
Por fim, supostamente nada obsta a que o Ministro das Finanças passe a Governador do BdP, porque tem feito um papel fantástico como governante e porque o mesmo sucedeu com outros como Pinto Barbosa, Silva Lopes e Miguel Beleza. Só nos esquecemos que ao BdP incumbirá provavelmente avaliar finalmente todo o percurso do NB de que o próprio não pode alijar responsabilidades tal como a sua antecessora – o que não se aplica aos preditos. E, quanto ao desempenho como governante não é despiciendo o garrote que impôs à despesa pública que ia continuando a estrangular o SNS na esteira do tempo da troika. Não éramos todos “Centeno”?
Constitui, pois, o percurso do NB uma forte interpelação aos poderes do Estado!
2020.05.21 – Louro de Carvalho

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