sábado, 30 de maio de 2020

No desenho do plano económico é de separar o patamar político do técnico


Como refere o Expresso deste dia 30 de maio, o Primeiro-Ministro convidou, há duas semanas, um gestor, independente do PS, para preparar um programa de recuperação económica para o país. Trata-se do engenheiro de minas António Costa Silva, nunca antes metido na política qua tali, muito menos na área da governação.
O, há muitos anos, presidente executivo da Partex, a empresa petrolífera que, durante décadas, foi a principal financiadora da Fundação Gulbenkian, tornou-se uma espécie de “paraministro”. Com efeito, o Primeiro-Ministro explicou a todos os membros do Executivo que o engenheiro reuniria com cada um deles para se definirem os programas que estão previstos ou programados “que devem cair, ficar ou nascer”.
Politicamente a missão é muito sensível e espinhosa, pois o conselheiro ad hoc não integra o Governo, embora já tenha acompanhado António Costa em reuniões com empresários e já tenha iniciado as reuniões com cada um dos ministros, na ótica do condicionamento da governação dos próximos tempos. A ronda começou com Matos Fernandes, Ministro do Ambiente, para garantir que o seu currículo e a posição de gestor duma petrolífera não são incompatíveis com a agenda de combate às alterações climáticas. E Costa Silva prepara-se para, daqui a algum tempo, falar em nome do Governo com os partidos da oposição e com os parceiros sociais a fim de partilhar e colher ideias.
Pensam alguns que uma personalidade independente terá maior e mais forte peso na construção de consensos. E, quando a missão estiver em ponto de rebuçado, o negociador entregará ao Chefe do Governo o que será “uma visão da nova economia do país”, a implementar encerrada que for a crise desencadeada pela Covid-19, e que será a base do Orçamento do Estado para 2021, com reflexos marcantes nos anos seguintes.
Assim, Costa Silva vai escolher setores e programas prioritários, escolhas que António Costa enviará a Bruxelas para que Portugal tenha acesso ao novo fundo europeu. Porém, o país não pode ficar-se com uma resposta de curto, deverá, ao invés, direcionar os apoios para os setores, ideias e projetos conducentes a uma reestruturação modernizadora em articulação com a prioridade identificada agora pela UE: “tornar o espaço económico único mais autónomo face a outras economias, tecnologicamente avançado, baseado em energias limpas”. Por isso, há que ver quais os nossos “game changers” na economia, na área social, na administração pública.
Não é a primeira vez que António Costa designa um não governante para negociações de peso. Tal sucedeu, por exemplo, com a negociação da reversão parcial da privatização da TAP ou com a negociação aquando da greve dos motoristas de transporte de matérias perigosas. É, porém, a primeira vez que o faz em relação a matéria de política de interesse crucial para o país com incidência na relação entre partidos e entre parceiros sociais.
Também, como refere o Expresso, o Primeiro-Ministro não é o único a tomar uma decisão deste jaez. Na verdade, esta semana, Emmanuel Macron, em França, pediu isso a um grupo de economistas liderado pelo ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, e o Nobel Jean Tirole. De facto, o Chefe do Governo sabe que só com propostas concretas e em sintonia com as prioridades definidas por Bruxelas, se poderá aceder, a partir de janeiro de 2021, aos mais de €26 mil milhões do novo Fundo de Recuperação da UE, a que Portugal tem direito para obviar à crise e empreender a reestruturação da economia.
É verdade que António Costa já pegou num independente para o aproximar da área da governação. Foi buscar Centeno ao Banco de Portugal para ajudar o PS a fazer o seu programa económico e, depois, fê-lo Ministro das Finanças; e chamou Siza Vieira, em dezembro 2015, para chefiar a estrutura de missão para a capitalização de empresas, passando a Ministro da Economia em 2018 e sendo agora o número dois do executivo. Porém, no primeiro caso, ainda se estava numa fase pré-eleitoral; e, no segundo, estava em causa só um setor.
Será Costa Silva o sucessor de Centeno, que deixará o Governo depois do Orçamento suplementar e no termo da presidência do Eurogrupo, em meados de julho? Ou, como a sua área não são as finanças públicas, sucederá a Siza Vieira não Economia, rumando para este para a pasta das Finanças?
António Costa escolheu este engenheiro para a suprarreferida missão, impressionado com o modo como ele abordou a temática em causa numa entrevista televisiva de há cerca de duas semanas. Segundo o Primeiro-Ministro e como escreve o Expresso, a experiência de gestor da Partex, cuja perspetiva geoestratégica da economia mundial o guiou numa carreira de sucesso, deu-lhe “uma perspetiva de como o país deve posicionar-se na nova globalização, com mais autonomia estratégica, valorização de recursos e reindustrialização”. Por outro lado, com o Governo superocupado na resposta às exigências diárias da crise, António Costa quis escolher uma personalidade exterior ao Executivo, capaz de pensar o país a longo prazo e coordenar todo o trabalho prospetivo. E, estando fora do Governo, não tem um interesse político a defender.
Antes do verão o trabalho preliminar estará quase fechado, mas dependente da negociação final da resposta europeia, que virá a condicionar o financiamento e as áreas estratégicas a seguir.
Apesar de, na semana passada, já a trabalhar para o Governo, ter deixado algumas pistas em artigo no “Público” e o Chefe do Governo ter agora na mesa um primeiro esboço, o engenheiro diz que o trabalho, que desempenha pro bono, vai demorar meses e garante que apenas cumpre um “dever cívico” (di-lo tendo em conta que a líder do BE vê regime de incompatibilidades no desempenho destas funções) e que as ideias de vir a integrar o Governo são “especulações sem fundamento”.
Quanto ao programa que está a delinear (já tem um esboço de algumas dezenas de páginas na mesa do Primeiro-Ministro), o gestor explicou ao jornal ECO online alguns dos objetivos estratégicos: transportes ferroviários; infraestruturas portuárias; gestão de recursos de água; competências digitais das pequenas e médias empresas; reforço do investimento no sistema nacional de saúde (em equipamentos e recursos humanos); reconversão industrial; recursos endógenos; coesão territorial ou transição energética. Pretende-se “uma visão integrada de tudo isto”, sendo muito importante “a proteção social das pessoas e das empresas”, bem como a necessidade de “haver um pacto com o Estado para capitalizar as empresas, para não deixar que entrem em coma”. Porém, o programa precisa de perceber que margem financeira há da UE. Só com o novo fundo europeu aprovado isso será possível. Mas o gestor acrescenta que pretende encontrar uma estratégia de prestação de contas que permita “evitar que se cometam os mesmos erros que no passado”.
Além de ter sido convidado por António Costa para preparar com os atuais ministros do Executivo um plano de recuperação para a economia, Costa e Silva pode querer travar outros cenários – não se sabe quais – estando no seu horizonte sair da Partex, mas só no próximo ano.
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Entretanto, Bloco de Esquerda (BE) e CDS-PP rejeitam negociar com “paraministro”. De facto, Catarina Martins, coordenadora do BE, comentando a manchete do Expresso, segundo a qual o gestor petrolífero está a assumir aquele papel, que o partido só negoceia com membros do Governo e, rejeitando a existência de “paraministros”, declarou:
O senhor Primeiro-Ministro é aconselhado por quem acha que pode fazer esse trabalho, é livre de o escolher. O Bloco de Esquerda, naturalmente, negoceia com membros do Governo, como fez até agora e como mandam, aliás, as regras da boa transparência da nossa democracia. (…) A figura de paraministro não pode existir.”.
Depois, observou:
As pessoas que têm competência para tomar decisões em Portugal, que estão sujeitas não só a um regime de incompatibilidades e impedimentos estritos como de transparência sobre os seus rendimentos são membros do Governo: ministros e secretários de Estado”.
Interpelada sobre a hipótese de Costa Silva vir a suceder ao atual Ministro das Finanças, Catarina Martins apenas disse que essa é uma decisão que compete ao Primeiro-Ministro.
De igual forma, o CDS-PP conta discutir o plano de recuperação económica do país com “Costa e Siza”, numa referência ao Primeiro-Ministro e Ministro da Economia, “e não com Costa Silva”, referindo-se ao engenheiro gestor. E esclarece o partido, em comunicado:
O Primeiro-Ministro pode escolher com quem é que os seus ministros se aconselham, mas em matéria de governação do país, o CDS deve falar com o Governo e não com quem o Governo fala”.
Os democratas-cristãos recordam que, há três meses, sugerira, ao Governo a criação dum gabinete de crise “para relançar social e economicamente o país, que integrasse representantes de vários setores fundamentais e todos os partidos com assento parlamentar”. E apontam que, “apesar de tardiamente, vale sempre a pena recuperar esta boa ideia”.
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Não preciso de ser do BE ou do CDS para discordar, em parte, do Primeiro-Ministro. Concordo que tenha escolhido esta personalidade para discutir com os ministros o plano de relançamento da economia, se viu nela o perfil técnico para o efeito. Porém, entendo que a negociação com os partidos com assento parlamentar e com os parceiros sociais – que tem uma feição política em termos da preparação para opções de políticas públicas mais adequadas à conjuntura e a uma prospetiva sustentável de futuro – deve ser liderada por um membro do Governo, de preferência um dos ministros de Estado, podendo, ou não, estar acompanhado pelo assessor. Sempre me criou confusão que um chefe de órgão executivo ponha um técnico a dialogar com os membros dum órgão deliberativo ou com parte interessada numa parceria, sobretudo se toma partido.
Enfim, cabe aos técnicos a discussão técnica como aos cientistas a discussão científica; e cabe aos políticos, obviamente estribados nos pareceres técnicos e científicos, preparar e tomar as decisões políticas consequentes e, em caso de dúvida ou de divergência, arriscar a opção menos gravosa, tendo em vista a minimização dos perigos públicos e a otimização do bem-estar social.    
2020.05.30 – Louro de Carvalho

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