O Cardeal Patriarca, no seu comentário à perícopa dos Atos
dos Apóstolos (At 6,1-7), proclamada como 1.ª leitura da
Missa deste V domingo da Páscoa, vincou este aspeto. Por um lado, o serviço das
mesas exigia homens que fizessem o seu acompanhamento e supervisão com o devido
cuidado, pois, segundo os cristãos helenistas, as suas viúvas estavam a ficar
para trás no atendimento, sendo privilegiadas as do grupo hebraico; por outro,
os apóstolos não podiam esmorecer na oração e na pregação, pois estes eram
considerados serviços fundamentais para sustentar o testemunho do Ressuscitado
e alicerçar a capacidade para a missão, bem como para iluminar a reunião em que
se procedia à fração do pão e à partilha do cálice (cf At 2,42-47).
E Dom Manuel Clemente acomodou na sua reflexão os serviços
que a organização da caridade espoletou a partir das necessidades que emergiram
desta situação de pandemia. De facto, a oração sustentada na Palavra de Deus e
no pão da imortalidade e a ação caritativa em busca da justiça social plasmada
no cuidado do ser humano são marcas identitárias do cristianismo. Por
conseguinte, em toda a ação que a pandemia fez emergir – os que estão na linha
da frente para o cuidado de proximidade a quem precisa, ou os que estão na
retaguarda a prover a que nada falte de essencial a ninguém, bem como os que
tomar decisões ou contribuem para elas e os que zelam para que a população
cumpra – em toda esta ação pode ver-se o rosto da Igreja e o rosto de Cristo
servo, mesmo que alguns se não deem conta de que o estão a espelhar. Na verdade
é o Espírito Santo, com o dom vivificante de Deus, quem inspira toda a boa obra
e conduz a Igreja e aquece o coração das pessoas e faz ver em quem sofre o
Cristo que sofre e apela à ajuda.
Não podemos olvidar que os apóstolos para o novo ministério a
criar solicitaram à comunidade que lhes indicasse “sete homens de boa
reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria”. Pelos nomes gregos que os
rotulam, parece que são oriundos do grupo dos helenistas, que terão um papel
preponderante na ulterior expansão da mensagem apostólica. Com efeito, eram cristãos
de origem judaica, mas oriundos da “diáspora”, ou seja, das comunidades
judaicas espalhadas por todo o império romano e mesmo fora dele e que viviam
temporariamente em Jerusalém; falavam o grego e liam em grego as Escrituras; e
serviriam de facilitadores para contactos noutros pontos do mundo de então.
Os hebreus eram cristãos de origem judaica, originários da
Palestina, que falavam o aramaico, liam as Escrituras em hebraico e tinham sido
convertidos pela pregação de Jesus e dos apóstolos. Porém, estavam ainda muito
agarrados à Lei e às tradições fazendo finca-pé na circuncisão como necessária
para a salvação, pelo que pretendiam que ela fosse imposta a todos. Ainda
acalentavam a ideia de que o povo hebreu era o privilegiado de Deus.
Ora, perante esta necessidade, foi criado um novo serviço
pelos apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo e a emergência a partir da
comunidade; e, face ao problema de serem ou não os pagãos obrigados ao
cumprimento estrito da Lei de Moisés, os apóstolos reuniram o Concílio de Jerusalém,
que deliberou de acordo com o Espírito Santo esclarecedor (vd At cap. 15).
Tudo isto nos mostra que a Igreja surge não com um quadro
ideal de perfeição, mas como uma comunidade real, formada por homens e
mulheres, onde as tensões fazem parte da experiência quotidiana da caminhada. Nem
sempre é fácil perceber que o caminho é Cristo, tal como é a verdade e a vida,
e que ninguém vai ao Pai senão por Ele (cf Jo 14,6) e que em nós o percurso não está acabado: somos limitados e finitos; e a
Igreja é uma comunidade que tem de estar em contínuo processo de conversão, ao
longo de cada passo da sua caminhada na história, tendo de permanentemente ir
beber às fontes, ler os sinais dos tempos no presente e preparar o futuro.
A pari, Lucas testemunha na comunidade a
estrutura hierárquica em que os Doze desempenham o serviço da orientação e da
direção da comunidade, sendo as referências fundamentais a quem os membros da
comunidade recorrem para obviarem aos problemas que surgem. Não obstante, os
Doze rejeitam qualquer laivo de poder absoluto; antes, envolvem a comunidade no
processo, fazendo com que todos participem na procura de soluções para os
problemas comuns.
Outra faceta desta Igreja primeva é a sua vertente de
comunidade de serviço. Para já a missão destes sete homens “cheios do Espírito
Santo e de sabedoria” é o serviço das mesas. Todavia, em breve aparecerão mais
ligados ao serviço da Palavra do que ao serviço das mesas. Seja como for, como
os apóstolos e muitas outras pessoas, estão no exercício dum múnus para que
foram destacados. Assim se vê que a comunidade eclesial é uma realidade cujo
centro dinâmico é o serviço, seja o serviço da Palavra, seja o serviço de assistência
aos irmãos mais pobres. Assim, a Igreja é fundamentalmente a grande diaconia (serviço) com vista à koinonia (comunhão), que nos prepara para ocuparmos as
moradas que o Senhor vai ajeitar para nós junto do Pai para estarmos sempre com
Cristo e com o Pai, visto que Jesus está sempre unido ao Pai (cf Jo 14,2-3.9-11).
E deve atender-se ao papel relevante que o Espírito
desempenha nas “crises” de crescimento que fazem parte da caminhada eclesial. O
Espírito vem ligado à vocação dos chamados ao exercício da diaconia (cf At 6,3) e à missão (impor as mãos significa a escolha para
um serviço comunitário e a invocação do Espírito para que eles possam
concretizar a missão que lhes foi confiada). Assim, a Igreja é a comunidade do Espírito, criada,
vivificada e dinamizada pelo Espírito.
Por isso, o avanço da Boa Nova torna-se irresistível mercê da
ação dos discípulos e da moção do Espírito Santo. Com efeito, os elementos da
comunidade sentem-se pedras vivas que, ocupando cada um o seu lugar neste
edifício espiritual compartilham o sacerdócio a santidade e o ministério de
Cristo. Na verdade, neste edifício espiritual e dinâmico é Ele a pedra angular,
provada, angular, de alicerce, que Deus,
segundo Isaías (28,16), colocaria
em Sião com a inscrição: “quem nela se
apoia, não vacila”. A imagem da pedra angular é retomada no Salmo 118,22 e
adquire conotação messiânica: o Messias é a pedra que muitos rejeitaram, mas
sobre a qual Deus constrói a sua intervenção salvadora na história em favor do
seu Povo.
Assim, os cristãos, oferecendo sacrifícios espirituais e
vivendo uma vida santa, tornam-se, não só o edifício espiritual sobre o qual as
portas do inferno não prevalecerão (Mt 16,18), mas sobremaneira um povo sacerdotal, a nação santa, a comunidade dos
redimidos (cf 1Pe 2,9).
***
Talvez a Igreja se deva interrogar face à diminuição do
número e qualidade de cristãos e face ao surgimento de necessidades novas e das
mudanças profundas, constantes, universais. Porque não perspetivar os
ministérios eclesiais, mesmo os ministérios ordenados noutros parâmetros:
instituir ministérios laicais em regime de permanência, equacionar a ordenação
diaconal e presbiteral de mulheres e a ordenação presbiteral de homens
matrimoniados, intensificar a mobilização de missionários leigos, entregar a
liderança de comunidades a leigos de boa formação. Se a necessidade obriga, se
os problemas surgem, tem de haver remédio e solução.
A leitura do livro “Uma
Igreja de todos e de alguém”, do Padre José Luzia, das Paulinas (2012), poderá ser inspiradora de reflexão sobre os novos
caminhos da Igreja.
2020.05.10
– Louro de Carvalho
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