domingo, 10 de maio de 2020

Foi o serviço eficaz da caridade que induziu a criação do diaconado


O Cardeal Patriarca, no seu comentário à perícopa dos Atos dos Apóstolos (At 6,1-7), proclamada como 1.ª leitura da Missa deste V domingo da Páscoa, vincou este aspeto. Por um lado, o serviço das mesas exigia homens que fizessem o seu acompanhamento e supervisão com o devido cuidado, pois, segundo os cristãos helenistas, as suas viúvas estavam a ficar para trás no atendimento, sendo privilegiadas as do grupo hebraico; por outro, os apóstolos não podiam esmorecer na oração e na pregação, pois estes eram considerados serviços fundamentais para sustentar o testemunho do Ressuscitado e alicerçar a capacidade para a missão, bem como para iluminar a reunião em que se procedia à fração do pão e à partilha do cálice (cf At 2,42-47).
E Dom Manuel Clemente acomodou na sua reflexão os serviços que a organização da caridade espoletou a partir das necessidades que emergiram desta situação de pandemia. De facto, a oração sustentada na Palavra de Deus e no pão da imortalidade e a ação caritativa em busca da justiça social plasmada no cuidado do ser humano são marcas identitárias do cristianismo. Por conseguinte, em toda a ação que a pandemia fez emergir – os que estão na linha da frente para o cuidado de proximidade a quem precisa, ou os que estão na retaguarda a prover a que nada falte de essencial a ninguém, bem como os que tomar decisões ou contribuem para elas e os que zelam para que a população cumpra – em toda esta ação pode ver-se o rosto da Igreja e o rosto de Cristo servo, mesmo que alguns se não deem conta de que o estão a espelhar. Na verdade é o Espírito Santo, com o dom vivificante de Deus, quem inspira toda a boa obra e conduz a Igreja e aquece o coração das pessoas e faz ver em quem sofre o Cristo que sofre e apela à ajuda.
Não podemos olvidar que os apóstolos para o novo ministério a criar solicitaram à comunidade que lhes indicasse “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria”. Pelos nomes gregos que os rotulam, parece que são oriundos do grupo dos helenistas, que terão um papel preponderante na ulterior expansão da mensagem apostólica. Com efeito, eram cristãos de origem judaica, mas oriundos da “diáspora”, ou seja, das comunidades judaicas espalhadas por todo o império romano e mesmo fora dele e que viviam temporariamente em Jerusalém; falavam o grego e liam em grego as Escrituras; e serviriam de facilitadores para contactos noutros pontos do mundo de então.
Os hebreus eram cristãos de origem judaica, originários da Palestina, que falavam o aramaico, liam as Escrituras em hebraico e tinham sido convertidos pela pregação de Jesus e dos apóstolos. Porém, estavam ainda muito agarrados à Lei e às tradições fazendo finca-pé na circuncisão como necessária para a salvação, pelo que pretendiam que ela fosse imposta a todos. Ainda acalentavam a ideia de que o povo hebreu era o privilegiado de Deus.
Ora, perante esta necessidade, foi criado um novo serviço pelos apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo e a emergência a partir da comunidade; e, face ao problema de serem ou não os pagãos obrigados ao cumprimento estrito da Lei de Moisés, os apóstolos reuniram o Concílio de Jerusalém, que deliberou de acordo com o Espírito Santo esclarecedor (vd At cap. 15).    
Tudo isto nos mostra que a Igreja surge não com um quadro ideal de perfeição, mas como uma comunidade real, formada por homens e mulheres, onde as tensões fazem parte da experiência quotidiana da caminhada. Nem sempre é fácil perceber que o caminho é Cristo, tal como é a verdade e a vida, e que ninguém vai ao Pai senão por Ele (cf Jo 14,6) e que em nós o percurso não está acabado: somos limitados e finitos; e a Igreja é uma comunidade que tem de estar em contínuo processo de conversão, ao longo de cada passo da sua caminhada na história, tendo de permanentemente ir beber às fontes, ler os sinais dos tempos no presente e preparar o futuro.
A pari, Lucas testemunha na comunidade a estrutura hierárquica em que os Doze desempenham o serviço da orientação e da direção da comunidade, sendo as referências fundamentais a quem os membros da comunidade recorrem para obviarem aos problemas que surgem. Não obstante, os Doze rejeitam qualquer laivo de poder absoluto; antes, envolvem a comunidade no processo, fazendo com que todos participem na procura de soluções para os problemas comuns.
Outra faceta desta Igreja primeva é a sua vertente de comunidade de serviço. Para já a missão destes sete homens “cheios do Espírito Santo e de sabedoria” é o serviço das mesas. Todavia, em breve aparecerão mais ligados ao serviço da Palavra do que ao serviço das mesas. Seja como for, como os apóstolos e muitas outras pessoas, estão no exercício dum múnus para que foram destacados. Assim se vê que a comunidade eclesial é uma realidade cujo centro dinâmico é o serviço, seja o serviço da Palavra, seja o serviço de assistência aos irmãos mais pobres. Assim, a Igreja é fundamentalmente a grande diaconia (serviço) com vista à koinonia (comunhão), que nos prepara para ocuparmos as moradas que o Senhor vai ajeitar para nós junto do Pai para estarmos sempre com Cristo e com o Pai, visto que Jesus está sempre unido ao Pai (cf Jo 14,2-3.9-11).
E deve atender-se ao papel relevante que o Espírito desempenha nas “crises” de crescimento que fazem parte da caminhada eclesial. O Espírito vem ligado à vocação dos chamados ao exercício da diaconia (cf At 6,3) e à missão (impor as mãos significa a escolha para um serviço comunitário e a invocação do Espírito para que eles possam concretizar a missão que lhes foi confiada). Assim, a Igreja é a comunidade do Espírito, criada, vivificada e dinamizada pelo Espírito.
Por isso, o avanço da Boa Nova torna-se irresistível mercê da ação dos discípulos e da moção do Espírito Santo. Com efeito, os elementos da comunidade sentem-se pedras vivas que, ocupando cada um o seu lugar neste edifício espiritual compartilham o sacerdócio a santidade e o ministério de Cristo. Na verdade, neste edifício espiritual e dinâmico é Ele a pedra angular, provada, angular, de alicerce, que Deus, segundo Isaías (28,16), colocaria em Sião com a inscrição: “quem nela se apoia, não vacila”. A imagem da pedra angular é retomada no Salmo 118,22 e adquire conotação messiânica: o Messias é a pedra que muitos rejeitaram, mas sobre a qual Deus constrói a sua intervenção salvadora na história em favor do seu Povo. 
Assim, os cristãos, oferecendo sacrifícios espirituais e vivendo uma vida santa, tornam-se, não só o edifício espiritual sobre o qual as portas do inferno não prevalecerão (Mt 16,18), mas sobremaneira um povo sacerdotal, a nação santa, a comunidade dos redimidos (cf 1Pe 2,9).
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Talvez a Igreja se deva interrogar face à diminuição do número e qualidade de cristãos e face ao surgimento de necessidades novas e das mudanças profundas, constantes, universais. Porque não perspetivar os ministérios eclesiais, mesmo os ministérios ordenados noutros parâmetros: instituir ministérios laicais em regime de permanência, equacionar a ordenação diaconal e presbiteral de mulheres e a ordenação presbiteral de homens matrimoniados, intensificar a mobilização de missionários leigos, entregar a liderança de comunidades a leigos de boa formação. Se a necessidade obriga, se os problemas surgem, tem de haver remédio e solução.
A leitura do livro “Uma Igreja de todos e de alguém”, do Padre José Luzia, das Paulinas (2012), poderá ser inspiradora de reflexão sobre os novos caminhos da Igreja.
2020.05.10 – Louro de Carvalho

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