terça-feira, 26 de maio de 2020

Pelo 25.º aniversário da publicação da Carta Encíclica “Ut unum sint”


Passou, a 25 de maio, o 25.º aniversário da publicação da Carta Encíclica “Ut unum sint”, de São João Paulo II. Em 1995, era dia da Solenidade da Ascensão do Senhor.
Para assinalar a efeméride, Francisco dirigiu uma carta ao cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em que exprime o sentimento de gratidão ao seu venerável predecessor e sublinha a ideia-força do compromisso pela magna questão da Unidade, rogada por Cristo ao Pai no discurso testamentário subsequente à Ultima Ceia em que instituiu a Eucaristia e estabeleceu o mandato do amor fraterno em serviço recíproco, afetivo e efetivo – no quadro íntimo da paixão que ia sofrer propter nos homines.  
O Santo Padre lembra, na carta, o contexto epocal: com o olhar voltado para o horizonte do Jubileu do Ano 2000 (comemoração da Encarnação do Filho de Deus, que Se fez homem para salvar o homem), o Papa Woijtyla queria que a Igreja mantivesse bem presente e viva a oração do seu Mestre e Senhor: “Que todos sejam um”. Assim, vem com a Encíclica confirmar, de modo irreversível, o empenho ecuménico da Igreja Católica, colocando-o sob o signo do Espírito Santo, artífice da unidade na diversidade, princípio da unidade da Igreja.
Porém, como refere o Vatican News, a encíclica da Unidade reitera que “a legítima diversidade não se opõe de forma alguma à unidade da Igreja, antes lhe aumenta o decoro contribuindo significativamente para o cumprimento da sua missão”  (n. 50).
E o Papa Francisco, embora compreenda a “impaciência” de quem pensa que poderia e deveria ser feito mais, dá graças ao Senhor pela via que nos levou a “percorrer como cristãos na busca da plena comunhão” e exorta à fé e ao reconhecimento porque “muitos passos foram feitos nestas décadas para curar feridas seculares e milenárias”. Com efeito, o Pontífice, dirigindo o seu pensamento também aos Irmãos que estão à frente das diversas Igrejas e comunidade cristãs e a todos os cristãos de todas as tradições, “que são os nossos companheiros de viagem”, frisa que são visíveis os progressos no maior conhecimento e estima recíprocos, no avanço no diálogo teológico e caritativo, e em várias formas de colaboração no diálogo da vida, no plano pastoral e cultural.
Agradecendo a quem trabalha e trabalhou no Dicastério dedicado ao ecumenismo, o Papa Bergoglio anunciou duas iniciativas: um Vademecum ecuménico para os Bispos, a publicar no 2.º semestre “como encorajamento e guia no exercício da suas responsabilidades ecuménicas”; e o lançamento da revista Acta Œcumenica, como subsídio para quem trabalha a serviço da unidade. Depois, fazendo memória da via percorrida, recorda a importância de perscrutar o horizonte, perguntando-se ‘Quanta est nobis via?(n. 77), “quanta estrada nos resta por fazer?”. E, concluindo que a unidade não é principalmente o resultado da nossa ação, mas dom do Espírito Santo (não acontecerá como um milagre, mas caminhando juntos), exorta:
Invoquemos confiantes, portanto, o Espírito, para que guie os nossos passos e cada um sinta, com renovado vigor, o apelo a trabalhar pela causa ecuménica. Ele inspire novos gestos proféticos e reforce a caridade fraterna entre todos os discípulos de Cristo, ‘para que o mundo creia’ (Jo 17,21) e se multiplique o louvor ao Pai que está nos Céus.”.
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Constituindo um apelo apaixonado aos cristãos para que respondam à oração de Jesus pela unidade de todos, a Encíclica ajuda-nos a olhar para a realidade das comunidades cristãs de hoje com um renovado compromisso ecuménico. Com 25 anos sobre a sua publicação, mantém íntegra a sua frescura e impacto profético. Voltada para o futuro aponta a meta, que parece longínqua. Na verdade, o Papa polaco sente fortemente este ardente desejo do Senhor, fá-lo seu; e o ecumenismo torna-se uma das prioridades do Pontificado, pois a divisão dos cristãos é o escândalo que afeta a obra de Jesus, porque a fé em Cristo postula necessariamente a unidade, posto que a fé, enquanto ato de obediência amplia os horizontes do coração e da mente.
Porém, como anota Sergio Centofanti, publicado pelo “Jornal da Madeira”, no dia 25, é o Papa da unidade que sofre a grande dor do cisma: alguns irmãos não entendem este impulso para o futuro”. Trata-se do cisma de Marcel Lefebvre, que em 1988 consumou a separação de Roma.
Os tradicionalistas acusavam o Papa e o Vaticano II de “falso ecumenismo”, que, destruindo a verdadeira fé e introduzindo “uma conceção protestante da Missa e dos Sacramentos, leva “a Igreja à ruína e os católicos à apostasia”, sendo que a Providência confiara a Lefebvre a missão de se opor à Roma modernista, para que, voltando a ser a Roma católica, reencontre a sua Tradição bimilenária.
Tendo Lefebvre morrido em 1991, os sucessores atacaram a Encíclica por alegadamente levar ao relativismo dogmático (e já o conter) – posição baseada em “noção incompleta e contraditória da Tradição”, como afirmara Wojtyla na Carta Apostólica “Ecclesia Dei”, pois não considera a Tradição viva e em crescimento transmitida de geração em geração nem compreende que a Tradição não pode separar-se da comunhão com o Papa e com os pastores de todo o mundo.
O documento pontifício, olhando corajosamente o futuro, indica o diálogo como prioridade e passo necessário para descobrir a riqueza dos outros, vê os passos dados para a unidade com as diversas Igrejas e Comunidades cristãs, vincando a mútua abolição das excomunhões entre Roma e Constantinopla e as Declarações Cristológicas comuns com as Igrejas do Oriente, e ressalva que, tal como foi dito acima, “a diversidade legítima não se opõe de forma alguma à unidade”. Na verdade, “polémicas e controvérsias intolerantes” transformaram em “afirmações incompatíveis” dois pontos de vista de escrutínio da mesma realidade. Porém, está aberto um caminho que ajuda “a descobrir a insondável riqueza da verdade” e a presença de elementos de santificação “para além das fronteiras visíveis da Igreja Católica”.
E o Papa Wojtyla advertia que não se trata de “modificar o depósito da fé” e “mudar o sentido dos dogmas”, mas que “a expressão da verdade pode ser multiforme”, pois “a doutrina deve ser apresentada de modo compreensível para aqueles a quem o próprio Deus a destina”, qualquer cultura a que pertençam, evitando qualquer forma de “particularismo exclusivismo étnico ou preconceito racial”, como “qualquer sobranceria nacionalista”.
A Encíclica indica a necessidade de “o modo e o método de enunciar a fé católica” não serem “obstáculo ao diálogo com os irmãos”, embora haja “hierarquia nas verdades da doutrina católica”. Segundo São João Paulo II, a Igreja é chamada por Cristo a contínua reforma”, que “pode exigir revisões de declarações e atitudes”, e o “diálogo não se articula exclusivamente em torno da doutrina”, mas envolve “a pessoa toda”, porque “é também um diálogo de amor”, pois é do amor que “nasce o desejo de unidade”, e é um caminho que exige “trabalho paciente e corajoso”, não se podendo impor “outras obrigações além das indispensáveis”.
Não obstante, como observa o Papa polaco, no ecumenismo, a primazia pertence à oração comum em convergência para o essencial. Com efeito, os cristãos, orando juntos, descobrem que o que nos une é muito mais forte do que aquilo que nos divide, sendo que a renovação litúrgica realizada na Igreja Católica e noutras Comunidades eclesiais gerou convergências sobre o essencial e, juntos, cada vez nos voltamos mais para o Pai num só coração, de modo que, às vezes, parece estar perto a selagem desta comunhão real, embora ainda não plena. E, a par deste diálogo orante, a Encíclica aponta a crescente colaboração dos cristãos pertencentes a várias confissões no compromisso com “a liberdade, a justiça, a paz, o futuro do mundo”, já que “a voz comum dos cristãos tem mais impacto que uma voz isolada” para “fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos”, em especial os pobres, humilhados e indefesos. Não se trata, como frisa Wojtyla, de mera ação humanitária, mas de responder à palavra de Jesus lida no cap. 25 do Evangelho de Mateus: “Tive fome e me destes de comer…”.
São João Paulo II propõe uma mudança de linguagem e de atitudes de modo a evitar o estilo oposicionista, agressivo e antagónico, a visão derrotista que vê tudo negativo, o fechamento não evangélico na condenação dos outros e o desprezo resultante duma “presunção insalubre”. Ao invés, há que envidar todos os esforços, com a ajuda de Deus, para demolir muros de divisão e desconfiança, ultrapassar obstáculos e preconceitos, eliminando termos que ferem e escolhendo a rota da humildade, mansidão e generosidade fraternas – sem falar mais de hereges ou inimigos da fé, mas de “outros cristãos”, “outros batizados”. Tal reconversão lexical espelha significativa evolução das mentalidades e a via de conversão que postula o arrependimento mútuo pelos erros cometidos, que levou Woijtyla a pedir perdão pelas faltas dos membros da Igreja.
Entretanto, há que assentir que a unidade plena tem em Pedro o ponto visível de referência, pelo que São João Paulo II apela às Comunidades cristãs a que encontrem uma forma de exercício do primado petrino que, “sem renunciar de forma alguma ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova”, como “um serviço de amor reconhecido por uns e por outros”.
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Em suma, a “Ut unum sint” sintetiza, de modo peculiar a caminhada da Igreja nos 2000 anos da sua história, com uma luz que aponta o caminho a seguir na mesma direção dos que nos precederam e mostra a índole viva da Tradição em crescimento, que tem, segundo a “Dei Verbum”, origem nos Apóstolos e progride na Igreja com a assistência do Espírito Santo, sendo graças ao Espírito que a inteligência da fé cresce rumo à “unidade na diversidade”. E São João Paulo II afirma, citando São Cipriano de Cartago, que os irmãos, neste caminho, devem aprender a reconciliar-se com o altar, porque “Deus não aceita o sacrifício dos que estão em desacordo” e, ao invés, o maior sacrifício a oferecer a Deus é a paz e harmonia fraternas, o povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.   
Segundo Arturo Mari (cf L'Osservatore Romano, de 25 de maio), 25 anos depois, a encíclica sobre o empenho ecuménico continua a ser preciosa fonte para a compreensão da vocação ecuménica da Igreja e pretexto para uma reflexão sobre o papel de São João Paulo II no desenvolvimento do caminho ecuménico. Da leitura dos seus textos, mais que das interpretações que se vêm fazendo, fruto da apreciação dum gesto ou palavra fora do contexto, colhe-se quanto para si foi prioritário “o compromisso quotidiano para a construção da unidade visível da Igreja”.
Propondo “empenho, construção, unidade, alimentados por uma conversão do coração da parte de todos os cristãos”, retomou um tema recuperado pelo Vaticano II (e querido da Aula conciliar que lhe dedicou sobretudo o Decreto “Unitatis Redintegratio” e a Declaração “Nostra Aetate”), da descoberta de “uma relação privilegiada com o povo judaico, na profunda distinção entre caminho ecuménico e diálogo inter-religioso, na descoberta da própria identidade enquanto premissa irrenunciável e fundamental para viver a unidade na diversidade”.
2020.05.26 – Louro de Carvalho

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