Passou, a 25 de maio, o 25.º aniversário da publicação da Carta Encíclica “Ut unum sint”, de São João Paulo II. Em 1995, era
dia da Solenidade da Ascensão do Senhor.
Para assinalar
a efeméride, Francisco dirigiu uma carta ao cardeal Kurt Koch, presidente do
Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em que exprime o
sentimento de gratidão ao seu venerável predecessor e sublinha a ideia-força
do compromisso
pela magna questão da Unidade, rogada por Cristo ao Pai no discurso testamentário
subsequente à Ultima Ceia em que instituiu a Eucaristia e estabeleceu o mandato
do amor fraterno em serviço recíproco, afetivo e efetivo – no quadro íntimo da
paixão que ia sofrer propter nos homines.
O Santo
Padre lembra, na carta, o contexto epocal: com o olhar voltado para o horizonte
do Jubileu do Ano 2000 (comemoração da
Encarnação do Filho de Deus, que Se fez homem para salvar o homem), o Papa Woijtyla queria que a Igreja mantivesse bem presente
e viva a oração do seu Mestre e Senhor: “Que
todos sejam um”. Assim, vem com a Encíclica confirmar, de modo irreversível,
o empenho
ecuménico da Igreja Católica, colocando-o sob o signo do Espírito
Santo, artífice da unidade na diversidade, princípio da unidade da Igreja.
Porém, como
refere o Vatican News, a encíclica da
Unidade
reitera que “a legítima diversidade não se opõe de
forma alguma à unidade da Igreja, antes lhe aumenta o decoro contribuindo
significativamente para o cumprimento da sua missão” (n. 50).
E o Papa Francisco,
embora compreenda a “impaciência” de quem pensa que poderia e deveria ser feito
mais, dá graças ao Senhor pela via que nos levou a “percorrer como
cristãos na busca da plena comunhão” e exorta à fé e ao reconhecimento porque
“muitos passos foram feitos nestas décadas para curar feridas seculares e
milenárias”. Com efeito, o Pontífice, dirigindo o seu pensamento também aos
Irmãos que estão à frente das diversas Igrejas e comunidade cristãs e a todos
os cristãos de todas as tradições, “que são os nossos companheiros de viagem”,
frisa que são visíveis os progressos no maior conhecimento e estima recíprocos,
no avanço no diálogo teológico e caritativo, e em várias formas de colaboração
no diálogo da vida, no plano pastoral e cultural.
Agradecendo
a quem trabalha e trabalhou no Dicastério dedicado ao ecumenismo, o Papa
Bergoglio anunciou duas iniciativas: um Vademecum ecuménico para os Bispos, a publicar no 2.º
semestre “como encorajamento e guia no exercício da suas responsabilidades
ecuménicas”; e o lançamento da
revista Acta Œcumenica, como subsídio para quem trabalha a
serviço da unidade. Depois, fazendo memória da via percorrida, recorda a
importância de perscrutar o horizonte, perguntando-se ‘Quanta est nobis via?’
(n. 77), “quanta estrada nos resta por fazer?”. E, concluindo
que a unidade não é principalmente o resultado da nossa ação, mas dom do
Espírito Santo (não acontecerá como um milagre, mas
caminhando juntos), exorta:
“Invoquemos confiantes, portanto, o Espírito, para que guie os nossos
passos e cada um sinta, com renovado vigor, o apelo a trabalhar pela causa
ecuménica. Ele inspire novos gestos proféticos e reforce a caridade fraterna
entre todos os discípulos de Cristo, ‘para que o mundo creia’ (Jo 17,21) e se multiplique o
louvor ao Pai que está nos Céus.”.
***
Constituindo um apelo apaixonado aos cristãos para que respondam à oração de Jesus
pela unidade de todos, a Encíclica ajuda-nos a olhar para a realidade das
comunidades cristãs de hoje com um renovado compromisso ecuménico. Com 25
anos sobre a sua publicação, mantém íntegra a sua frescura e impacto profético.
Voltada para o futuro aponta a meta, que parece longínqua. Na verdade, o Papa
polaco sente fortemente este ardente desejo
do Senhor, fá-lo seu; e o ecumenismo torna-se uma das prioridades do
Pontificado, pois a divisão dos cristãos é o escândalo que afeta a obra de
Jesus, porque a fé em Cristo postula necessariamente a unidade, posto que a fé,
enquanto ato de obediência amplia os horizontes do coração e da mente.
Porém, como
anota Sergio Centofanti, publicado
pelo “Jornal da Madeira”, no dia 25, é o Papa da unidade que
sofre a grande dor do cisma: alguns irmãos não entendem este impulso para o
futuro”. Trata-se do cisma de Marcel Lefebvre, que em 1988 consumou a separação
de Roma.
Os tradicionalistas
acusavam o Papa e o Vaticano II de “falso ecumenismo”, que, destruindo a
verdadeira fé e introduzindo “uma conceção protestante da Missa e dos
Sacramentos, leva “a Igreja à ruína e os católicos à apostasia”, sendo que a
Providência confiara a Lefebvre a missão de se opor à Roma modernista, para
que, voltando a ser a Roma católica, reencontre a sua Tradição bimilenária.
Tendo Lefebvre
morrido em 1991, os sucessores atacaram a Encíclica por alegadamente levar ao relativismo
dogmático (e já o conter) – posição baseada
em “noção incompleta e contraditória da Tradição”, como afirmara Wojtyla na Carta
Apostólica “Ecclesia Dei”, pois não considera a Tradição viva e em crescimento
transmitida de geração em geração nem compreende que a Tradição não pode
separar-se da comunhão com o Papa e com os pastores de todo o mundo.
O documento
pontifício, olhando corajosamente o futuro, indica o diálogo como prioridade
e passo necessário para descobrir a riqueza dos outros, vê os passos dados para
a unidade com as diversas Igrejas e Comunidades cristãs, vincando a mútua abolição
das excomunhões entre Roma e Constantinopla e as Declarações Cristológicas
comuns com as Igrejas do Oriente, e ressalva que, tal como foi dito acima, “a diversidade
legítima não se opõe de forma alguma à unidade”. Na verdade, “polémicas e
controvérsias intolerantes” transformaram em “afirmações incompatíveis” dois
pontos de vista de escrutínio da mesma realidade. Porém, está aberto um caminho
que ajuda “a descobrir a insondável riqueza da verdade” e a presença de
elementos de santificação “para além das fronteiras visíveis da Igreja
Católica”.
E o Papa Wojtyla
advertia que não se trata de “modificar o depósito da fé” e “mudar o sentido
dos dogmas”, mas que “a expressão da verdade pode ser multiforme”,
pois “a doutrina deve ser apresentada de modo compreensível para aqueles a quem
o próprio Deus a destina”, qualquer cultura a que pertençam, evitando qualquer
forma de “particularismo exclusivismo étnico ou preconceito racial”, como
“qualquer sobranceria nacionalista”.
A Encíclica
indica a necessidade de “o modo e o método de enunciar a fé católica” não serem
“obstáculo ao diálogo com os irmãos”, embora haja “hierarquia nas verdades da
doutrina católica”. Segundo São João Paulo II, a Igreja é chamada por Cristo a contínua
reforma”, que “pode exigir revisões de declarações e atitudes”, e o “diálogo não
se articula exclusivamente em torno da doutrina”, mas envolve “a pessoa toda”,
porque “é também um diálogo de amor”, pois é do amor que “nasce o desejo de
unidade”, e é um caminho que exige “trabalho paciente e corajoso”, não se
podendo impor “outras obrigações além das indispensáveis”.
Não obstante,
como observa o Papa polaco, no ecumenismo, a primazia pertence à oração
comum em convergência para o essencial. Com efeito, os cristãos, orando
juntos, descobrem que o que nos une é muito mais forte do que aquilo que nos
divide, sendo que a renovação litúrgica realizada na Igreja Católica e noutras
Comunidades eclesiais gerou convergências sobre o essencial e, juntos, cada vez
nos voltamos mais para o Pai num só coração, de modo que, às vezes, parece
estar perto a selagem desta comunhão real, embora ainda não plena. E, a par deste
diálogo orante, a Encíclica aponta a crescente colaboração dos cristãos
pertencentes a várias confissões no compromisso com “a liberdade, a justiça, a paz, o
futuro do mundo”, já que “a voz comum dos cristãos tem mais impacto que
uma voz isolada” para “fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades
de todos”, em especial os pobres, humilhados e indefesos. Não se trata, como
frisa Wojtyla, de mera ação humanitária, mas de responder à palavra de Jesus
lida no cap. 25 do Evangelho de Mateus: “Tive
fome e me destes de comer…”.
São João
Paulo II propõe uma mudança de linguagem e de atitudes de modo a evitar o
estilo oposicionista, agressivo e antagónico, a visão derrotista que vê tudo
negativo, o fechamento não evangélico na condenação dos outros e o desprezo
resultante duma “presunção insalubre”. Ao invés, há que envidar todos os
esforços, com a ajuda de Deus, para demolir muros de divisão e desconfiança, ultrapassar
obstáculos e preconceitos, eliminando termos que ferem e escolhendo a rota da
humildade, mansidão e generosidade fraternas – sem falar mais de hereges ou
inimigos da fé, mas de “outros cristãos”, “outros batizados”. Tal reconversão
lexical espelha significativa evolução das mentalidades e a via de conversão
que postula o arrependimento mútuo pelos erros cometidos, que levou Woijtyla a pedir
perdão pelas faltas dos membros da Igreja.
Entretanto,
há que assentir que a unidade plena tem em Pedro o ponto visível de referência,
pelo que São João Paulo II apela às Comunidades cristãs a que encontrem uma
forma de exercício do primado petrino que, “sem renunciar de forma alguma ao
que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova”, como “um
serviço de amor reconhecido por uns e por outros”.
***
Em suma, a “Ut unum sint” sintetiza,
de modo peculiar a caminhada da Igreja nos 2000 anos da sua história, com uma
luz que aponta o caminho a seguir na mesma direção dos que nos precederam e
mostra a índole viva da Tradição em crescimento, que tem, segundo a “Dei Verbum”, origem nos Apóstolos e
progride na Igreja com a assistência do Espírito Santo, sendo graças ao
Espírito que a inteligência da fé cresce rumo à “unidade na diversidade”. E São
João Paulo II afirma, citando São Cipriano de Cartago, que os irmãos, neste
caminho, devem aprender a reconciliar-se com o altar, porque “Deus não aceita o sacrifício dos que estão
em desacordo” e, ao invés, o maior sacrifício a oferecer a Deus é a paz e
harmonia fraternas, o povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo”.
Segundo Arturo Mari (cf L'Osservatore Romano,
de 25 de maio), 25 anos depois, a encíclica sobre o empenho ecuménico continua a ser preciosa
fonte para a compreensão da vocação ecuménica da Igreja e pretexto para uma
reflexão sobre o papel de São João Paulo II no desenvolvimento do caminho
ecuménico. Da leitura dos seus textos, mais que das interpretações que se vêm fazendo,
fruto da apreciação dum gesto ou palavra fora do contexto, colhe-se quanto para
si foi prioritário “o compromisso
quotidiano para a construção da unidade visível da Igreja”.
Propondo “empenho, construção, unidade, alimentados por uma conversão do
coração da parte de todos os cristãos”, retomou um tema recuperado pelo
Vaticano II (e querido da Aula conciliar que lhe dedicou sobretudo
o Decreto “Unitatis Redintegratio” e a
Declaração “Nostra Aetate”), da descoberta de “uma relação
privilegiada com o povo judaico, na profunda distinção entre caminho ecuménico
e diálogo inter-religioso, na descoberta da própria identidade enquanto
premissa irrenunciável e fundamental para viver a unidade na diversidade”.
2020.05.26 – Louro de Carvalho
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